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terça-feira, 28 de maio de 2024

Princípio da participação dos interessados e a democracia participativa - a Audiência Prévia dos Interessados e a Consulta Pública

 

Abreviações

CRP – Constituição da República Portuguesa

CPA – Código do Processo Administrativo

 

Introdução

O Princípio da Participação é um princípio administrativo fundamental, para além de ser um princípio constitucional, que encontra a sua base nos artigos 12º do CPA e  267º/1 da CRP.

O Professor Freitas do Amaral afirma que o CPA dos anos 90 foi uma grande revolução do direito do português pelo facto de ter consagrado pela primeira vez um conjunto de preceitos jurídicos que alteraram todo o procedimento da atividade administrativa. E bastaria, efetivamente, a norma do direito de audiência para atingir este efeito, por ser uma norma que obriga a administração a ouvir os particulares que seriam lesados por uma atuação administrativa e a chamá-los para se pronunciarem sobre o conteúdo da decisão que os vai implicar. Uma decisão administrativa tomada com a participação dos interessados enriquece e democratiza o agir administrativo, na medida em que também se tornará muito mais conforme à prossecução do interesse público. A Administração consegue assim, através de determinados mecanismos, proteger, ouvir e incluir os interessados na realização de um procedimento administrativo.

No decorrer desta exposição, ambiciona-se aprofundar estes corolários que garantem a concretização prática do Princípio da Participação: a Audiência Prévia dos Interessados e a Consulta Pública.

 

Âmbito de incidência da legitimidade para a participação – quem são os interessados?

O Princípio da Participação constitui um direito fundamental para os interessados, mas o conceito de interessados pode parecer um pouco abrangente - há que identificar quem serão os titulares deste direito, de forma a saber quem o pode exercer.

Devem e têm legitimidade para usufruir da Audiência os titulares de direitos e interesses legalmente protegidos que os vejam afetados de modo direto e imediato. Podemos, portanto, entender que a Audiência tem em vista uma participação de âmbito concreto – é pessoal e individual (não obstante de poderem existir interesses coletivos), na medida em que há aqui uma dimensão de afetação direta do interessado e só esse pode participar.

Na Consulta Pública, em contraste com o que foi dito relativamente à Audiência Prévia dos Interessados, há um âmbito de incidência mais geral no que toca a ter legitimidade para participar: não se distinguem membros do público, podendo a participação provir de qualquer pessoa ou, em alguns casos, de qualquer pessoa que seja efetivamente destinatária das normas.

 

A legitimidade procedimental

A legitimidade procedimental é, manifestamente o poder de participação num dado procedimento administrativo com vista à defesa de certos interesses, quer sejam individuais, coletivos ou difusos. A legitimidade procedimental encontra o seu fundamento no artigo 68º do CPA e no princípio da participação, cuja base legal já referi: o artigo 267º, nº5, da CRP.

No artigo 68.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) encontramos os requisitos essenciais que determinada pessoa precisa de preencher para poder desencadear o procedimento administrativo ou para participar nele na qualidade de interessado. Este artigo estabelece ainda quatro tipos de legitimidade procedimental – a legitimidade singular, a legitimidade coletiva, a legitimidade para defesa de interesses difusos e, por fim, a legitimidade de órgãos administrativos.

A legitimidade singular é concedida a todos aqueles que sejam titulares de direitos ou interesses legalmente protegidos no âmbito de decisões tomadas no procedimento; já a legitimidade coletiva é atribuída às associações para as mesmas defenderem os seus interesses coletivos ou para fazerem uma defesa coletiva de interesses individuais dos seus associados que caibam no âmbito dos fins visados e que, assim, sejam interessados.

A legitimidade para defesa de interesses difusos dá a todos os cidadãos, associações e fundações representativas de interesses e autarquias locais o poder de participarem em procedimentos passíveis de causarem prejuízos bens coletivos fundamentais (como a saúde pública ou o ambiente).

Finalmente, a legitimidade de órgãos administrativos é conferida aos mesmos quando as pessoas coletivas nas quais se integram são titulares dos interesses que foram postos em causa, sendo diretamente implicados pelas decisões que forem tomadas após o dado procedimento administrativo.

 

A Audiência Prévia dos Interessados

Com fundamento na dimensão constitucional do Princípio da Participação, o legislador consagrou o Princípio da Audiência dos Interessados nos artigos 269º, nº3, da CRP e 100º e seguintes do CPA. Nas palavras do Professor Doutor Regente Vasco Pereira da Silva, este marco era considerado algo nunca atingível à data do Código do Procedimento Administrativo dos anos 80 – mais à frente, veremos porquê.

A Audiência Prévia dos Interessados consiste numa diligência judicial prévia à decisão que visa a defesa, por parte do interessado, dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, após ser confrontado pela Administração. Coaduna-se esta diligência, assim, com o princípio da defesa. O interessado pode nesta etapa, adaptando-se às características e finalidades da atividade administrativa em questão, dar a conhecer a sua versão dos factos. Esta versão poderá até, resultando numa certa conciliação entre as partes, influenciar a decisão final. Para o Professor Vasco Pereira da Silva, o direito de audiência constitui um direito fundamental e é o corolário natural do princípio da participação.

A Audiência Prévia ocorre em todo e qualquer procedimento administrativo que tenha por objeto um regulamento que afete, com as suas disposições, de modo direto e imediato, direitos ou interesses legalmente protegidos de cidadãos. Sendo uma diligência judicial, tem como participantes um juiz e os mandatários das partes processuais. Este mecanismo é desencadeado pela Administração através da notificação em prazo razoável de, no mínimo, 30 dias (nº.1 do artigo 100º do CPA); durante a Audiência, a Administração, diante do conjunto de fatos e interesses a serem compostos, deve esboçar a decisão fundamentada que pretende tomar e dar conhecimento dela aos interessados, para que estes possam participar e fazer uso do seu direito ao contraditório. No decorrer da Audiência, podem ser delimitados os termos do litígio e indicados meios de prova e diligências probatórias; especialmente, tenta-se suprimir as imprecisões ou insuficiências quanto à matéria factual com base no que é afirmado pelo interessado.

A Audiência Prévia pode ser escrita ou oral (nº.2 do artigo 100º do CPA) e tem caráter obrigatório, ainda que com exceções; embora possa, justificadamente, ser dispensada em alguns casos (estando estes enumerados no artigo 124º do CPA), para além dos mesmos serem manifestamente residuais, a doutrina tende também a salvaguardar a sua necessidade absoluta, vendo-a como um meio para clarear litígios e melhorar a posição e as possibilidades de defesa do interessado. Evidentemente, note-se que este também tem de ter acesso às informações procedimentais.

Como já foi analisado, a Audiência assenta no direito à defesa, sustenta e permite conceder o direito ao contraditório do interessado.

A realização da Audiência Prévia visa a análise e a clarificação da matéria de facto, bem como a delimitação clara do objeto do litígio e as matérias probatórias, acabando por se definir a posterior tramitação do processo. Assim, esta figura pode ainda possibilitar a conciliação para a resolução de litígios e uma tomada de decisão que tenha mais em conta os interesses defendidos pelo interessado.

O nosso CPA consagrou o direito de audiência como um mecanismo de presença obrigatória em todos os procedimentos administrativos, ainda que no artigo 124º se prevejam possibilidades de despensa, todas razoáveis mediante a devida fundamentação. As situações excecionais são: motivos de urgência (alínea a)); quando os interessados já solicitaram um adiamento por falta de comparência justificada e, por facto imputável aos mesmos, não tenha sido possível fixar uma nova data (alínea b)); quando há um número de interessados de tal forma impraticável, e nesse caso passa-se à consulta pública (alínea d); quando a audiência pudesse comprometer a execução ou utilidade da decisão (alínea c)); quando os interessados já se pronunciaram no procedimento sobre aquelas questões (alínea e)); quando a decisão seja integralmente favorável ao particular (alínea f)).

A regra é que as audiências são obrigatórias e, assim sendo, as eventualidades em que elas podem não ocorrer são muito reduzidas, tendo essas ocasiões raras uma razão de ser baseada em motivos de urgência e utilidade.

 

A Consulta Pública

Quando existe um número de interessados que seja muito elevado, mas ainda seja possível haver uma consulta, deve haver uma consulta pública. A ideia é que mesmo nos casos em que a audiência pode ser dispensada com uma decisão fundamentada, ainda assim pode haver uma consulta pública. A audiência deve existir a todo o custo, na medida do possível, em todos os casos.

A Consulta Pública corresponde a uma fase de procedimentos administrativos ou legislativos que tem como objetivo incentivar e garantir a participação democrática dos cidadãos. Com vista a serem recolhidas opiniões do público sobre possíveis soluções a adotar e prioridades a considerar, a Consulta Pública concede aos cidadãos um acesso instantâneo, fácil e livre a informação e documentação relativa a um determinado assunto que a Administração pretende tratar.

Sem prejuízo de estar consagrada no artigo 101º do CPA, a Consulta Pública, ao visar o incentivo e a participação democrática dos cidadãos, encontra o seu fundamento no artigo 9.º, alínea c), da CRP.

Como acabei de referir, a Consulta Pública tem lugar quando o número de interessados é demasiado elevado para uma Audiência (artigo 100º, alínea c), do CPA), mas também existe, essencialmente, nos casos em a natureza da matéria assim o justifica (101º do CPA) – são estes, na sua maioria, casos de construção de matéria legislativa ou procedimentos administrativos de certas áreas do Direito que prevejam fases obrigatórias de consulta pública.

Nestas circunstâncias, o órgão competente deve submeter o projeto de regulamento ao público mediante a sua publicação no Diário da República ou numa publicação oficial da entidade pública, bem como no sítio institucional desta última, com uma visibilidade adequada que permita a sua compreensão. O sítio institucional do Governo criado para este efeito tem o nome de ConsultaLex e permite, então, aos cidadãos participar no procedimento legislativo e regulamentar através da consulta de diplomas e da formulação de sugestões, podendo estes acompanhar o processo de elaboração do diploma até à fase de aprovação final.

Por oposição ao que sucede com a Audiência Prévia, na Consulta Pública não existe uma notificação a cada membro do público, exatamente pelo seu âmbito participativo mais geral; a informação está sempre acessível publicamente, tendo o cidadão de ter a iniciativa de procurar participar e querer fazer parte do procedimento, isto é, é o cidadão que pode ou não desencadear a sua participação. Faz-se interessado quem assim o pretender - nada obriga à participação de um cidadão num ato de Consulta Pública.

A Consulta Pública, para além de apelar ao princípio da transparência da Administração, incentiva ao interesse pela matéria e ao envolvimento dos cidadãos nos assuntos administrativos, democratizando mais cada decisão, indo ao encontro de uma concretização prática do princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2º da CRP); permite ainda que os cidadãos adquiram mais espírito crítico face a temas administrativos e que defendam um ponto de vista acerca de determinado assunto que a Administração queira ver tratado, e que, de certa forma, também os implica. Isto não só traz ao campo administrativo novas formas de raciocínio e vias de solução para problemas (o que se transforma em algo benéfico para a Administração) como pode traduzir-se num melhor acatamento das decisões administrativas, uma vez que terão sido tomadas tendo em conta as posições dos particulares.

 

Princípios da atividade administrativa que servem de base à participação dos interessados

Como já referi, o Princípio da Participação é um princípio administrativo fundamental, para além de ser um princípio constitucional. E, como no direito está tudo interligado, este princípio coaduna-se com muitos outros, sendo esta visão “em teia” fundamental para darmos um passo em frente e analisarmos um ponto muito relevante, que são as consequências práticas numa ocasião eventual em que o princípio da participação não seja respeitado.

Em primeiro lugar, podemos começar com os dois princípios mais óbvios: serão eles o da colaboração (artigo 11º do CPA) e o da prossecução do interesse público e proteção dos direitos e interesses do cidadão (artigo 4º do CPA).

A colaboração recíproca entre o particular e a Administração, alicerçada na relação de confiança entre ambos, é sem dúvida crucial para um bom funcionamento do procedimento administrativo; assim, enquanto a Administração deve fornecer todas as informações necessárias aos particulares, estes últimos podem esclarecer-se acerca de qualquer decisão administrativa, dar informações pertinentes e sugestões, contribuindo para o bom funcionamento administrativo. A participação dos particulares na formação das decisões administrativas é um aspeto do princípio do procedimento devido (due process of law), que em Portugal já está a ter alguma autonomia face ao princípio da boa administração (artigo 5º). De seguida, temos a prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e dos interesses dos particulares, sendo que este princípio tem ainda consagração constitucional e, nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, tem uma grande importância, desde logo, porque junta dois princípios distintos: o princípio da prossecução do interesse público (segundo o qual os fins da atuação administrativa têm sempre que ser prosseguidos, sob pena de ocorrer uma violação de lei) e o princípio da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos (ao abrigo do qual os particulares têm direitos, nomeadamente direitos fundamentais, e esses direitos têm de ser protegidos pelo ordenamento jurídico). Os princípios não deixam de ser independentes um do outro e de terem valor próprio, mas a junção dos dois traz o significado de que os interesses públicos têm de ser prosseguidos mediante respeito e proteção dos direitos dos particulares, não podendo preterir uma coisa para se chegar à outra. Esta é uma base muito importante para o princípio da participação: não se pode prosseguir o interesse público sem simultaneamente proteger os direitos dos particulares, e o direito a participarem em algo que lhes diz respeito é um desses direitos. Tem de haver uma relação de equilíbrio e entreajuda entre as duas coisas.

O Professor Paulo Otero menciona ainda que a Audiência Prévia é uma expressão do direito ao contraditório e da defesa do interessado: o particular deve ter direito a expressar-se de forma contrária se assim o pretender. Isto releva especialmente quando falamos em atos de natureza ablativa para o particular, que lhe irão ser desfavorecedores.

Podemos, ainda, fazer uma ligação do direito à audiência com o princípio geral da boa fé (artigo 10º CPA), remetendo este ponto à ideia de que todos os princípios podem ser importados para direito administrativo, compartilhada pelo Professor Sérvulo Correia e, ainda mais, pelo Professor Regente. Se existe um procedimento que vai desencadear uma decisão que afetará um determinado particular, a administração não deve decidir sem o ouvir.

 

A violação do direito à audiência prévia

Entrando nesta parte importantíssima do tema, há que relembrar em primeiro lugar que a falta de concessão do direito de audiência (excetuando, claro, os casos de dispensa previstos no artigo 124º) é uma violação do princípio da legalidade (artigo 3º), uma vez que este é um direito que está consagrado na CRP e no CPA – trata-se de uma violação de lei, é uma atuação ilegal.

Na vigência do CPA anterior, o Professor Marcelo Rebelo de Sousa pronunciou-se a favor da nulidade em consequência da violação do direito à audiência. O Professor exalta principalmente a ideia dos elementos essenciais do estado administrativo e a ideia essencial do procedimento administrativoPara dar um pouco de contexto, recordemo-nos que, nos anos 80 e 90, não fazia nenhum sentido o direito de audiência no nosso país, dado que, embora o mesmo fosse viável em alguns países da Europa, como a Alemanha e os países nórdicos, Portugal não se desenvolvia nesse sentido. Ainda havia a ideia de que, nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, “a administração era o poder e o poder não dá satisfações a ninguém, o poder não tem que ouvir alguém que vai ser lesado sobre uma atuação administrativa”. Este princípio da participação, hoje, é um princípio básico da administração que temos hoje garantido não só no CPA mas até a nível constitucional, e o facto de a CRP regular este direito fundamental procedimental implica que a violação desse direito seja uma violação de uma norma constitucional - por essa razão, o ato deveria sofrer a sanção administrativa mais grave, sendo que efetivamente a CRP considera indispensável que haja audiência dos interessados.

O Professor Regente considera que a ausência do direito de audiência corresponde à violação de um direito fundamental, gerando assim, igualmente, a nulidade. O Raciocínio do Professor passa pela remissão aos artigos 16º e 17º da CRP, nos quais se identifica uma cláusula aberta de direitos fundamentais, conferindo os mesmos a possibilidade de incluir este direito no catálogo dos direitos, liberdades e garantias ali consagrados. Deste modo, em suma, o Professor Vasco Pereira da Silva chega à nulidade através da classificação do direito de audiência como um direito fundamental, enquanto o professor Marcelo Rebelo de Sousa alcança o mesmo resultado com o facto de esta violação por em causa os elementos essenciais da atuação administrativa. A solução é a mesma, os caminhos é que são um pouco diferentes.

Em contraste com as posições acima referidas, temos a posição doutrinária defendida pelos Professores Freitas do Amaral e Pedro Machete: optam pela anulabilidade do 163º/1, referindo que o direito à audiência não constitui direito fundamental. Esta é a posição da jurisprudência. A fundamentação utilizada pelos Professores é esta: a lei prevê que na sanção disciplinar (isto é, na sanção mais grave no quadro da função pública), se houver uma punição correspondente à expulsão do funcionário da administração, essa sanção corresponde à anulabilidade. Segundo o Professor Freitas do Amaral, não se compreenderia que no caso mais grave de exercício de um poder administrativo houvesse apenas anulabilidade e que em todos os outros houvesse nulidade. O Professor Vasco Pereira da Silva considera que o argumento está invertido -  O que dele resulta é que o legislador, ao dizer que há uma mera anulabilidade naquele caso está a violar a constituição e que essa norma é inconstitucional. Porque o que legislador deveria dizer é que nesse caso, como nos outros casos em que está em causa um dever de audiência, há nulidade. Há uma inversão. O que está errado não é o legislador constituinte nem o legislador ordinário, quando prevê essa possibilidade. O que está errado é a aplicação dessa norma no procedimento disciplinar conduzir apenas a uma anulabilidade. Portanto, torna-se algo que não faz muito sentido.

Outro argumento utilizado pelo Professor Pedro Machete é o caráter vago e abstrato da disposição constitucional. O Professor Regente discorda, referindo que este problema é muito comum, mas no caso nem é assim tão notório, tanto que se percebe perfeitamente que se está a implicar, na sequência da participação, uma tomada de decisão no dado caso concreto.

Na visão do Professor Paulo Otero, a preterição de AP gera sempre um vicio de conteúdo material, gera sempre a violação de um direito fundamental; todavia, salienta que nem toda a violação de direito fundamental gera nulidade, só havendo lugar para este desvalor jurídico quando há uma violação do seu conteúdo essencial, e isso só acontece quando estão em causa atos apelativos ou de natureza sancionatória/impositiva de sacrifícios ao particular.

Conforme mencionado, o STA tem acolhido a anulabilidade defendida pelos Professores Freitas do Amaral e Pedro Machete. Há dois anos, houve um acórdão (de 7 abril 2022 - processo 03478/14) no qual, recorrendo à tese de doutoramento do Professor Vasco Pereira da Silva, se concluiu que, quer na fase declarativa, quer na fase executiva, a falta de Audiência Prévia dá lugar à nulidade; ainda assim, este acórdão foi uma decisão isolada, tendo o Tribunal voltado a optar pela anulabilidade em casos posteriores.

 

Eventual regressão no direito à audiência e novas alterações ao CPA

O professor regente crítica o STA pela decisão preferencial da anulabilidade mas, ao mesmo tempo, a anulabilidade é uma forma de invalidade e, por isso, desde que se decida pela invalidade, nesses casos em que se verifica a falta de Audiência há forma de sancionar a atuação através da anulação do ato. De todo o modo, ainda assim, continua a haver o risco de esta formalidade tão importante começar a não ser respeitada, sendo que no caso de não ser respeitada, esse desrespeito pode não trazer consequências suficientemente graves. Na visão do Professor Regente, esta é uma porta aberta para simplesmente começar a desrespeitar o princípio da Audiência Prévia sem grandes receios e de forma mais recorrente; efetivamente, o direito de audiência tem uma importância fundamental e é por isso que a sua consagração na nossa CRP é fundamental, para tentar garantir ao máximo que é respeitado. O Professor faz ainda uma equiparação a países da Europa Democrática e releva que, na maior parte deles, o princípio da audiência de interessados tem natureza de direito fundamental.

Existe ainda um outro ponto de discussão, que é o facto de, para além deste valor procedimental da audiência do interessado, a audiência também ter um valor material e poder gerar uma ilegalidade material se não se verificar um cumprimento da forma correta – nestas circunstâncias em que o procedimento não seja o correto, a Administração está a violar a lei, sendo que não basta ouvir o interessado: há que ouvir o interessado de acordo com o procedimento correto, o que implica ter em conta os argumentos que foram apresentados na audiência pelo particular na hora da tomada de decisão, embora tal não signifique, evidentemente, que a Administração tenha de decidir de acordo com a opinião do particular. Na doutrina alemã clarifica-se que o poder de decidir é um poder que obriga a tomar em consideração todos os interesses manifestados no procedimento e, por essa razão, a doutrina e a jurisprudência alemã acreditam que pode haver uma ilegalidade se os particulares forem ouvidos, mas ninguém tomar em consideração aquilo que eles disseram.

O Professor sugere ainda um outro caminho, que se baseia no princípio da prossecução do interesse público e no respeito pelos direitos dos particulares, e na verdade é um caminho muito simples: a Administração Pública tem sempre de prosseguir o interesse público, mas também tem sempre de respeitar os direitos e interesses dos particulares (não podendo abdicar de uma coisa pela outra, como já foi referido nesta exposição); e se a Administração não considerar os direitos e interesses dos particulares está a cometer uma ilegalidade.

Esta ideia também se liga ao dever de fundamentação: a Administração tem o dever de fundamentar a sua decisão e, sobretudo no caso de optar por uma decisão que vá contra aquilo que o interessado explanou na audiência, deve explicar porquê, com base em matéria de facto e de direito. Se não o faz, podemos estar perante uma legalidade formal e material. A fundamentação é obrigatória no conjunto de situações que consta no artigo 152.º n.º 1 do CPA: na alínea a) estão os atos primários desfavoráveis, embora a lei também admita a dispensa (n.º 2). A fundamentação do ato administrativo deve, de acordo com o artigo 153.º do CPA: a) ser expressa; b) conter a exposição, ainda que sucinta, dos seus fundamentos de facto e de direito; e c) Deve ser clara, coerente e completa.

Relativamente a alterações recentes ao CPA, foi aprovado no ano passado o DL nº 11/2023, de 10 de fevereiro – este diploma trouxe duas novidades para a figura da Audiência Prévia. No regime anterior, a Administração Pública notificava os interessados, e se os interessados dissessem algo de útil na Audiência e a Administração quisesse aproveitar, era realizada uma nova redação e depois disso realizava-se uma segunda Audiência baseada na nova redação; acontece que, após estas alterações, já só é permitida uma Audiência a não ser que haja uma alteração objetiva dos factos, ao abrigo dos nos 3 e 4 do artigo 121º. Para além disso, acrescenta-se que não há qualquer suspensão de prazos perante a realização da Audiência Prévia, o que sucedia antes da aprovação deste novo diploma com base no anterior nº 3, no qual se lia “a realização da Audiência suspende a contagem de prazos em todos os procedimentos administrativos”. Embora, por um lado, se perceba que a nova medida de uma única Audiência pode acelerar o procedimento, o que favorece o princípio da boa administração (artigo 5º) na sua vertente da celeridade, a mesma retira um momento de participação ao interessado, embora não tal não configure um problema muito substancial.

 

 

Conclusão

O princípio da participação dos interessados é completamente vital para o bom funcionamento administrativo e funciona como uma das concretizações do Estado de Direito Democrático. A implementação eficaz dos mecanismos de Audiência Prévia e Consulta Pública fortalece a legitimidade das decisões administrativas e promove uma Administração mais eficiente, mais colaborativa e mais justa. Considero que, de facto, o direito de audiência constitui um direito fundamental e, de dia para dia, parece que os preceitos que o garantem vão sendo aligeirados, o que contrasta um pouco com a fortificação do princípio da participação anteriormente observada.

 

 Marta Cordeiro,

nº 65994

Bibliografia e Webgrafia

http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/6be0039071f61a61802568c000407128/a5fbe8cdb8a94d7280256aed0036b44e?OpenDocument&ExpandSection=-1

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Alteração CPA.pdf (ccdr-n.pt)

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- DE SOUSA, Marcelo Rebelo (1999). Lições de Direito Administrativo – Volume I. Lisboa, LEX,  3ª Edição

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