Abreviações
CRP – Constituição da República Portuguesa
CPA – Código do Processo Administrativo
Introdução
O Princípio da Participação é um princípio
administrativo fundamental, para além de ser um princípio constitucional, que
encontra a sua base nos artigos 12º do CPA e 267º/1 da CRP.
O Professor Freitas do Amaral afirma que o
CPA dos anos 90 foi uma grande revolução do direito do português pelo facto de
ter consagrado pela primeira vez um conjunto de preceitos jurídicos que
alteraram todo o procedimento da atividade administrativa. E bastaria,
efetivamente, a norma do direito de audiência para atingir este efeito, por ser
uma norma que obriga a administração a ouvir os particulares que seriam lesados
por uma atuação administrativa e a chamá-los para se pronunciarem sobre o
conteúdo da decisão que os vai implicar. Uma decisão administrativa tomada com
a participação dos interessados enriquece e democratiza o agir administrativo,
na medida em que também se tornará muito mais conforme à prossecução do
interesse público. A Administração consegue assim, através de determinados
mecanismos, proteger, ouvir e incluir os interessados na realização de um
procedimento administrativo.
No decorrer desta exposição, ambiciona-se
aprofundar estes corolários que garantem a concretização prática do Princípio
da Participação: a Audiência Prévia dos Interessados e a Consulta Pública.
Âmbito de incidência da legitimidade para
a participação – quem são os interessados?
O Princípio da Participação constitui um
direito fundamental para os interessados, mas o conceito de interessados pode
parecer um pouco abrangente - há que identificar quem serão os titulares deste
direito, de forma a saber quem o pode exercer.
Devem e têm legitimidade para usufruir da
Audiência os titulares de direitos e interesses legalmente protegidos que os
vejam afetados de modo direto e imediato. Podemos, portanto, entender que a
Audiência tem em vista uma participação de âmbito concreto – é pessoal e
individual (não obstante de poderem existir interesses coletivos), na medida em
que há aqui uma dimensão de afetação direta do interessado e só esse pode
participar.
Na Consulta Pública, em contraste com o
que foi dito relativamente à Audiência Prévia dos Interessados, há um âmbito de
incidência mais geral no que toca a ter legitimidade para participar: não se
distinguem membros do público, podendo a participação provir de qualquer pessoa
ou, em alguns casos, de qualquer pessoa que seja efetivamente destinatária das
normas.
A legitimidade procedimental
A legitimidade procedimental é,
manifestamente o poder de participação num dado procedimento administrativo com
vista à defesa de certos interesses, quer sejam individuais, coletivos ou
difusos. A legitimidade procedimental encontra o seu fundamento no artigo 68º
do CPA e no princípio da participação, cuja base legal já referi: o artigo
267º, nº5, da CRP.
No artigo 68.º do Código de Procedimento
Administrativo (CPA) encontramos os requisitos essenciais que determinada
pessoa precisa de preencher para poder desencadear o procedimento
administrativo ou para participar nele na qualidade de interessado. Este artigo
estabelece ainda quatro tipos de legitimidade procedimental – a legitimidade
singular, a legitimidade coletiva, a legitimidade para defesa de interesses
difusos e, por fim, a legitimidade de órgãos administrativos.
A legitimidade singular é concedida a
todos aqueles que sejam titulares de direitos ou interesses legalmente
protegidos no âmbito de decisões tomadas no procedimento; já a legitimidade
coletiva é atribuída às associações para as mesmas defenderem os seus
interesses coletivos ou para fazerem uma defesa coletiva de interesses
individuais dos seus associados que caibam no âmbito dos fins visados e que,
assim, sejam interessados.
A legitimidade para defesa de interesses
difusos dá a todos os cidadãos, associações e fundações representativas de
interesses e autarquias locais o poder de participarem em procedimentos
passíveis de causarem prejuízos bens coletivos fundamentais (como a saúde
pública ou o ambiente).
Finalmente, a legitimidade de órgãos
administrativos é conferida aos mesmos quando as pessoas coletivas nas quais se
integram são titulares dos interesses que foram postos em causa, sendo
diretamente implicados pelas decisões que forem tomadas após o dado
procedimento administrativo.
A Audiência Prévia dos Interessados
Com fundamento na dimensão constitucional
do Princípio da Participação, o legislador consagrou o Princípio da Audiência
dos Interessados nos artigos 269º, nº3, da CRP e 100º e seguintes do CPA. Nas
palavras do Professor Doutor Regente Vasco Pereira da Silva, este marco era
considerado algo nunca atingível à data do Código do Procedimento
Administrativo dos anos 80 – mais à frente, veremos porquê.
A Audiência Prévia dos Interessados
consiste numa diligência judicial prévia à decisão que visa a defesa, por parte
do interessado, dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, após ser
confrontado pela Administração. Coaduna-se esta diligência, assim, com o
princípio da defesa. O interessado pode nesta etapa, adaptando-se às
características e finalidades da atividade administrativa em questão, dar a
conhecer a sua versão dos factos. Esta versão poderá até, resultando numa certa
conciliação entre as partes, influenciar a decisão final. Para o Professor
Vasco Pereira da Silva, o direito de audiência constitui um direito fundamental
e é o corolário natural do princípio da participação.
A Audiência Prévia ocorre em todo e
qualquer procedimento administrativo que tenha por objeto um regulamento que
afete, com as suas disposições, de modo direto e imediato, direitos ou
interesses legalmente protegidos de cidadãos. Sendo uma diligência judicial,
tem como participantes um juiz e os mandatários das partes processuais. Este
mecanismo é desencadeado pela Administração através da notificação em prazo
razoável de, no mínimo, 30 dias (nº.1 do artigo 100º do CPA); durante a
Audiência, a Administração, diante do conjunto de fatos e interesses a serem
compostos, deve esboçar a decisão fundamentada que pretende tomar e dar
conhecimento dela aos interessados, para que estes possam participar e fazer
uso do seu direito ao contraditório. No decorrer da Audiência, podem ser
delimitados os termos do litígio e indicados meios de prova e diligências
probatórias; especialmente, tenta-se suprimir as imprecisões ou insuficiências
quanto à matéria factual com base no que é afirmado pelo interessado.
A Audiência Prévia pode ser escrita ou
oral (nº.2 do artigo 100º do CPA) e tem caráter obrigatório, ainda que com
exceções; embora possa, justificadamente, ser dispensada em alguns casos
(estando estes enumerados no artigo 124º do CPA), para além dos mesmos serem
manifestamente residuais, a doutrina tende também a salvaguardar a sua
necessidade absoluta, vendo-a como um meio para clarear litígios e melhorar a
posição e as possibilidades de defesa do interessado. Evidentemente, note-se
que este também tem de ter acesso às informações procedimentais.
Como já foi analisado, a Audiência assenta
no direito à defesa, sustenta e permite conceder o direito ao contraditório do
interessado.
A realização da Audiência Prévia visa a
análise e a clarificação da matéria de facto, bem como a delimitação clara do
objeto do litígio e as matérias probatórias, acabando por se definir a
posterior tramitação do processo. Assim, esta figura pode ainda possibilitar a
conciliação para a resolução de litígios e uma tomada de decisão que tenha mais
em conta os interesses defendidos pelo interessado.
O nosso CPA consagrou o direito de
audiência como um mecanismo de presença obrigatória em todos os procedimentos
administrativos, ainda que no artigo 124º se prevejam possibilidades de
despensa, todas razoáveis mediante a devida fundamentação. As situações
excecionais são: motivos de urgência (alínea a)); quando os interessados já
solicitaram um adiamento por falta de comparência justificada e, por facto
imputável aos mesmos, não tenha sido possível fixar uma nova data (alínea b));
quando há um número de interessados de tal forma impraticável, e nesse caso
passa-se à consulta pública (alínea d); quando a audiência pudesse comprometer
a execução ou utilidade da decisão (alínea c)); quando os interessados já se
pronunciaram no procedimento sobre aquelas questões (alínea e)); quando a
decisão seja integralmente favorável ao particular (alínea f)).
A regra é que as audiências são
obrigatórias e, assim sendo, as eventualidades em que elas podem não ocorrer
são muito reduzidas, tendo essas ocasiões raras uma razão de ser baseada em
motivos de urgência e utilidade.
A Consulta Pública
Quando existe um número de interessados
que seja muito elevado, mas ainda seja possível haver uma consulta, deve haver
uma consulta pública. A ideia é que mesmo nos casos em que a audiência pode ser
dispensada com uma decisão fundamentada, ainda assim pode haver uma consulta
pública. A audiência deve existir a todo o custo, na medida do possível, em
todos os casos.
A Consulta Pública corresponde a uma fase
de procedimentos administrativos ou legislativos que tem como objetivo
incentivar e garantir a participação democrática dos cidadãos. Com vista a
serem recolhidas opiniões do público sobre possíveis soluções a adotar e
prioridades a considerar, a Consulta Pública concede aos cidadãos um acesso
instantâneo, fácil e livre a informação e documentação relativa a um
determinado assunto que a Administração pretende tratar.
Sem prejuízo de estar consagrada no artigo
101º do CPA, a Consulta Pública, ao visar o incentivo e a participação
democrática dos cidadãos, encontra o seu fundamento no artigo 9.º, alínea c),
da CRP.
Como acabei de referir, a Consulta Pública
tem lugar quando o número de interessados é demasiado elevado para uma
Audiência (artigo 100º, alínea c), do CPA), mas também existe, essencialmente,
nos casos em a natureza da matéria assim o justifica (101º do CPA) – são estes,
na sua maioria, casos de construção de matéria legislativa ou procedimentos
administrativos de certas áreas do Direito que prevejam fases obrigatórias de
consulta pública.
Nestas circunstâncias, o órgão competente
deve submeter o projeto de regulamento ao público mediante a sua publicação no
Diário da República ou numa publicação oficial da entidade pública, bem como no
sítio institucional desta última, com uma visibilidade adequada que permita a
sua compreensão. O sítio institucional do Governo criado para este efeito tem o
nome de ConsultaLex e permite, então, aos cidadãos participar no procedimento
legislativo e regulamentar através da consulta de diplomas e da formulação de
sugestões, podendo estes acompanhar o processo de elaboração do diploma até à
fase de aprovação final.
Por oposição ao que sucede com a Audiência
Prévia, na Consulta Pública não existe uma notificação a cada membro do
público, exatamente pelo seu âmbito participativo mais geral; a informação está
sempre acessível publicamente, tendo o cidadão de ter a iniciativa de procurar
participar e querer fazer parte do procedimento, isto é, é o cidadão que pode
ou não desencadear a sua participação. Faz-se interessado quem
assim o pretender - nada obriga à participação de um cidadão num ato de
Consulta Pública.
A Consulta Pública, para além de apelar ao
princípio da transparência da Administração, incentiva ao interesse pela
matéria e ao envolvimento dos cidadãos nos assuntos administrativos,
democratizando mais cada decisão, indo ao encontro de uma concretização prática
do princípio do Estado de Direito Democrático (artigo 2º da CRP); permite ainda
que os cidadãos adquiram mais espírito crítico face a temas administrativos e
que defendam um ponto de vista acerca de determinado assunto que a
Administração queira ver tratado, e que, de certa forma, também os implica.
Isto não só traz ao campo administrativo novas formas de raciocínio e vias de
solução para problemas (o que se transforma em algo benéfico para a
Administração) como pode traduzir-se num melhor acatamento das decisões
administrativas, uma vez que terão sido tomadas tendo em conta as posições dos
particulares.
Princípios da atividade administrativa que
servem de base à participação dos interessados
Como já referi, o Princípio da
Participação é um princípio administrativo fundamental, para além de ser um
princípio constitucional. E, como no direito está tudo interligado, este
princípio coaduna-se com muitos outros, sendo esta visão “em teia” fundamental
para darmos um passo em frente e analisarmos um ponto muito relevante, que são
as consequências práticas numa ocasião eventual em que o princípio da
participação não seja respeitado.
Em primeiro lugar, podemos começar com os
dois princípios mais óbvios: serão eles o da colaboração (artigo 11º do CPA) e
o da prossecução do interesse público e proteção dos direitos e interesses do
cidadão (artigo 4º do CPA).
A colaboração recíproca entre o particular
e a Administração, alicerçada na relação de confiança entre ambos, é sem dúvida
crucial para um bom funcionamento do procedimento administrativo; assim,
enquanto a Administração deve fornecer todas as informações necessárias aos
particulares, estes últimos podem esclarecer-se acerca de qualquer decisão
administrativa, dar informações pertinentes e sugestões, contribuindo para o
bom funcionamento administrativo. A participação dos particulares na formação
das decisões administrativas é um aspeto do princípio do procedimento devido (due
process of law), que em Portugal já está a ter alguma autonomia face ao
princípio da boa administração (artigo 5º). De seguida, temos a prossecução do
interesse público e da proteção dos direitos e dos interesses dos particulares,
sendo que este princípio tem ainda consagração constitucional e, nas palavras
do Professor Vasco Pereira da Silva, tem uma grande importância, desde logo,
porque junta dois princípios distintos: o princípio da prossecução do interesse
público (segundo o qual os fins da atuação administrativa têm sempre que ser
prosseguidos, sob pena de ocorrer uma violação de lei) e o princípio da
proteção dos direitos e interesses dos cidadãos (ao abrigo do qual os
particulares têm direitos, nomeadamente direitos fundamentais, e esses direitos
têm de ser protegidos pelo ordenamento jurídico). Os princípios não deixam de
ser independentes um do outro e de terem valor próprio, mas a junção dos dois
traz o significado de que os interesses públicos têm de ser prosseguidos
mediante respeito e proteção dos direitos dos particulares, não podendo
preterir uma coisa para se chegar à outra. Esta é uma base muito importante
para o princípio da participação: não se pode prosseguir o interesse público
sem simultaneamente proteger os direitos dos particulares, e o direito a
participarem em algo que lhes diz respeito é um desses direitos. Tem de haver
uma relação de equilíbrio e entreajuda entre as duas coisas.
O Professor Paulo Otero menciona ainda que
a Audiência Prévia é uma expressão do direito ao contraditório e da defesa do
interessado: o particular deve ter direito a expressar-se de forma contrária se
assim o pretender. Isto releva especialmente quando falamos em atos de natureza
ablativa para o particular, que lhe irão ser desfavorecedores.
Podemos, ainda, fazer uma ligação do
direito à audiência com o princípio geral da boa fé (artigo 10º CPA), remetendo
este ponto à ideia de que todos os princípios podem ser importados para direito
administrativo, compartilhada pelo Professor Sérvulo Correia e, ainda mais,
pelo Professor Regente. Se existe um procedimento que vai desencadear uma
decisão que afetará um determinado particular, a administração não deve decidir
sem o ouvir.
A violação do direito à
audiência prévia
Entrando nesta parte importantíssima do
tema, há que relembrar em primeiro lugar que a falta de concessão do direito de
audiência (excetuando, claro, os casos de dispensa previstos no artigo 124º) é
uma violação do princípio da legalidade (artigo 3º), uma vez que este é um
direito que está consagrado na CRP e no CPA – trata-se de uma violação de lei,
é uma atuação ilegal.
Na vigência do CPA anterior, o Professor
Marcelo Rebelo de Sousa pronunciou-se a favor da nulidade em consequência da
violação do direito à audiência. O Professor exalta principalmente a ideia dos
elementos essenciais do estado administrativo e a ideia essencial do
procedimento administrativo. Para dar um pouco de contexto,
recordemo-nos que, nos anos 80 e 90, não fazia nenhum sentido o direito de
audiência no nosso país, dado que, embora o mesmo fosse viável em alguns países
da Europa, como a Alemanha e os países nórdicos, Portugal não se desenvolvia
nesse sentido. Ainda havia a ideia de que, nas palavras do Professor Vasco
Pereira da Silva, “a administração era o poder e o poder não dá satisfações a
ninguém, o poder não tem que ouvir alguém que vai ser lesado sobre uma atuação
administrativa”. Este princípio da participação, hoje, é um princípio básico da
administração que temos hoje garantido não só no CPA mas até a nível
constitucional, e o facto de a CRP regular este direito fundamental
procedimental implica que a violação desse direito seja uma violação de uma
norma constitucional - por essa razão, o ato deveria sofrer a sanção
administrativa mais grave, sendo que efetivamente a CRP considera indispensável
que haja audiência dos interessados.
O Professor Regente considera que a
ausência do direito de audiência corresponde à violação de um direito
fundamental, gerando assim, igualmente, a nulidade. O Raciocínio do Professor
passa pela remissão aos artigos 16º e 17º da CRP, nos quais se identifica uma
cláusula aberta de direitos fundamentais, conferindo os mesmos a possibilidade
de incluir este direito no catálogo dos direitos, liberdades e garantias ali
consagrados. Deste modo, em suma, o Professor Vasco Pereira da Silva chega à
nulidade através da classificação do direito de audiência como um direito
fundamental, enquanto o professor Marcelo Rebelo de Sousa alcança o mesmo
resultado com o facto de esta violação por em causa os elementos essenciais da
atuação administrativa. A solução é a mesma, os caminhos é que são um pouco
diferentes.
Em contraste com as posições acima
referidas, temos a posição doutrinária defendida pelos Professores Freitas do
Amaral e Pedro Machete: optam pela anulabilidade do 163º/1, referindo que o
direito à audiência não constitui direito fundamental. Esta é a posição da
jurisprudência. A fundamentação utilizada pelos Professores é esta: a lei prevê
que na sanção disciplinar (isto é, na sanção mais grave no quadro da função
pública), se houver uma punição correspondente à expulsão do funcionário da
administração, essa sanção corresponde à anulabilidade. Segundo o Professor
Freitas do Amaral, não se compreenderia que no caso mais grave de exercício de
um poder administrativo houvesse apenas anulabilidade e que em todos os outros
houvesse nulidade. O Professor Vasco Pereira da Silva considera que o argumento
está invertido - O que dele resulta é que o legislador, ao dizer que
há uma mera anulabilidade naquele caso está a violar a constituição e que essa
norma é inconstitucional. Porque o que legislador deveria dizer é que nesse
caso, como nos outros casos em que está em causa um dever de audiência, há
nulidade. Há uma inversão. O que está errado não é o legislador constituinte
nem o legislador ordinário, quando prevê essa possibilidade. O que está errado
é a aplicação dessa norma no procedimento disciplinar conduzir apenas a uma
anulabilidade. Portanto, torna-se algo que não faz muito sentido.
Outro argumento utilizado pelo Professor
Pedro Machete é o caráter vago e abstrato da disposição constitucional. O
Professor Regente discorda, referindo que este problema é muito comum, mas no
caso nem é assim tão notório, tanto que se percebe perfeitamente que se está a
implicar, na sequência da participação, uma tomada de decisão no dado caso
concreto.
Na visão do Professor Paulo Otero, a
preterição de AP gera sempre um vicio de conteúdo material, gera sempre a
violação de um direito fundamental; todavia, salienta que nem toda a violação
de direito fundamental gera nulidade, só havendo lugar para este desvalor
jurídico quando há uma violação do seu conteúdo essencial, e isso só acontece
quando estão em causa atos apelativos ou de natureza sancionatória/impositiva
de sacrifícios ao particular.
Conforme mencionado, o STA tem acolhido a
anulabilidade defendida pelos Professores Freitas do Amaral e Pedro Machete. Há
dois anos, houve um acórdão (de 7 abril 2022 - processo 03478/14) no qual,
recorrendo à tese de doutoramento do Professor Vasco Pereira da Silva, se
concluiu que, quer na fase declarativa, quer na fase executiva, a falta de
Audiência Prévia dá lugar à nulidade; ainda assim, este acórdão foi uma decisão
isolada, tendo o Tribunal voltado a optar pela anulabilidade em casos
posteriores.
Eventual regressão no direito à audiência
e novas alterações ao CPA
O professor regente crítica o STA pela
decisão preferencial da anulabilidade mas, ao mesmo tempo, a anulabilidade é
uma forma de invalidade e, por isso, desde que se decida pela invalidade,
nesses casos em que se verifica a falta de Audiência há forma de sancionar a
atuação através da anulação do ato. De todo o modo, ainda assim, continua a
haver o risco de esta formalidade tão importante começar a não ser respeitada,
sendo que no caso de não ser respeitada, esse desrespeito pode não trazer
consequências suficientemente graves. Na visão do Professor Regente, esta é uma
porta aberta para simplesmente começar a desrespeitar o princípio da Audiência
Prévia sem grandes receios e de forma mais recorrente; efetivamente, o direito
de audiência tem uma importância fundamental e é por isso que a sua consagração
na nossa CRP é fundamental, para tentar garantir ao máximo que é respeitado. O
Professor faz ainda uma equiparação a países da Europa Democrática e releva
que, na maior parte deles, o princípio da audiência de interessados tem
natureza de direito fundamental.
Existe ainda um outro ponto de discussão,
que é o facto de, para além deste valor procedimental da audiência do
interessado, a audiência também ter um valor material e poder gerar uma
ilegalidade material se não se verificar um cumprimento da forma correta –
nestas circunstâncias em que o procedimento não seja o correto, a Administração
está a violar a lei, sendo que não basta ouvir o interessado: há que ouvir o
interessado de acordo com o procedimento correto, o que implica ter em conta os
argumentos que foram apresentados na audiência pelo particular na hora da
tomada de decisão, embora tal não signifique, evidentemente, que a
Administração tenha de decidir de acordo com a opinião do particular.
Na doutrina alemã clarifica-se que o poder de decidir é um poder que obriga a
tomar em consideração todos os interesses manifestados no procedimento e, por
essa razão, a doutrina e a jurisprudência alemã acreditam que pode haver uma
ilegalidade se os particulares forem ouvidos, mas ninguém tomar em consideração
aquilo que eles disseram.
O Professor sugere ainda um outro caminho,
que se baseia no princípio da prossecução do interesse público e no respeito
pelos direitos dos particulares, e na verdade é um caminho muito simples: a
Administração Pública tem sempre de prosseguir o interesse público, mas também
tem sempre de respeitar os direitos e interesses dos particulares (não podendo
abdicar de uma coisa pela outra, como já foi referido nesta exposição); e se a
Administração não considerar os direitos e interesses dos particulares está a cometer uma ilegalidade.
Esta ideia também se liga ao dever de
fundamentação: a Administração tem o dever de fundamentar a sua decisão e,
sobretudo no caso de optar por uma decisão que vá contra aquilo que o
interessado explanou na audiência, deve explicar porquê, com base em matéria de
facto e de direito. Se não o faz, podemos estar perante uma legalidade
formal e material. A fundamentação é obrigatória no conjunto de
situações que consta no artigo 152.º n.º 1 do CPA: na alínea a) estão os atos
primários desfavoráveis, embora a lei também admita a dispensa (n.º 2). A
fundamentação do ato administrativo deve, de acordo com o artigo 153.º do CPA:
a) ser expressa; b) conter a exposição, ainda que sucinta, dos seus fundamentos
de facto e de direito; e c) Deve ser clara, coerente e completa.
Relativamente a alterações recentes ao
CPA, foi aprovado no ano passado o DL nº 11/2023, de 10 de fevereiro – este
diploma trouxe duas novidades para a figura da Audiência Prévia. No regime
anterior, a Administração Pública notificava os interessados, e se os
interessados dissessem algo de útil na Audiência e a Administração quisesse
aproveitar, era realizada uma nova redação e depois disso realizava-se uma
segunda Audiência baseada na nova redação; acontece que, após estas alterações,
já só é permitida uma Audiência a não ser que haja uma alteração objetiva dos
factos, ao abrigo dos nos 3 e 4 do artigo 121º. Para além
disso, acrescenta-se que não há qualquer suspensão de prazos perante a
realização da Audiência Prévia, o que sucedia antes da aprovação deste novo
diploma com base no anterior nº 3, no qual se lia “a realização da Audiência
suspende a contagem de prazos em todos os procedimentos administrativos”.
Embora, por um lado, se perceba que a nova medida de uma única Audiência pode
acelerar o procedimento, o que favorece o princípio da boa administração
(artigo 5º) na sua vertente da celeridade, a mesma retira um momento de
participação ao interessado, embora não tal não configure um problema muito
substancial.
Conclusão
O princípio da participação dos
interessados é completamente vital para o bom funcionamento administrativo e
funciona como uma das concretizações do Estado de Direito Democrático. A
implementação eficaz dos mecanismos de Audiência Prévia e Consulta Pública
fortalece a legitimidade das decisões administrativas e promove uma
Administração mais eficiente, mais colaborativa e mais justa. Considero que, de
facto, o direito de audiência constitui um direito fundamental e, de dia para
dia, parece que os preceitos que o garantem vão sendo aligeirados, o que
contrasta um pouco com a fortificação do princípio da participação
anteriormente observada.
Marta Cordeiro,
nº 65994
Bibliografia e Webgrafia
https://www.consultalex.gov.pt/
https://www.scielo.br/j/rdgv/a/LcvzxXL4YSfZjLPVz6BDjSN/?format=pdf&lang=pt
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https://diariodarepublica.pt/dr/lexionario/termo/legitimidade-procedimental
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Coimbra, Coimbra Editora – Dissertação de Mestrado em Ciências
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Jurídico-Políticas
- DE SOUSA, Marcelo Rebelo (1999). Lições
de Direito Administrativo – Volume I. Lisboa, LEX, 3ª Edição
- DE SOUSA, Marcelo Rebelo & MATOS, André Salgado (2008). Direito Administrativo Geral. Tomo III. Responsabilidade Civil Administrativa. Dom Quixote
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