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sábado, 25 de outubro de 2025

Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27-02-2025 (Proc. 01686/24.6BELSB)- Auria Carvalho 68425

 

Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27-02-2025 (Proc. 01686/24.6BELSB)

Introdução

O Direito é um rio que corre entre normas e justiça, e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 27 de fevereiro de 2025, processo n.º 01686/24.6BELSB, relatora Ana Celeste Carvalho, revela a tensão entre formalismo processual e tutela do mérito.

O caso aborda a ilegitimidade passiva singular, tema técnico mas com grande relevância prática: para contestar um ato administrativo, é essencial que a ação seja dirigida à entidade correta.

O presente trabalho tem por objetivo comentar e analisar o referido acórdão, explorando o seu enquadramento jurídico, as soluções adotadas pelo STA e os princípios que dele irradiam. Mais do que uma dissecação fria, pretende-se aqui compreender o espírito da decisão — o modo como ela equilibra o dever de sanação dos vícios processuais com a inevitável rigidez dos pressupostos processuais.

Como se verá, o Tribunal reafirmou que a ilegitimidade passiva singular não é sanável: quando o autor dirige a ação contra uma entidade que não tem qualquer relação jurídica com o ato impugnado, o erro é fatal. O processo, nesse ponto, não é um campo de correção, mas um espelho que devolve ao autor o reflexo do seu próprio lapso.

 

II. Enquadramento Jurídico

1. Pressupostos processuais

Pressupostos processuais são condições essenciais para que o tribunal possa apreciar o mérito. Entre eles, destaca-se a legitimidade das partes: a correspondência entre o sujeito processual e a relação jurídica controvertida. No contencioso administrativo, o artigo 10.º do CPTA define a entidade que deve ser demandada, assegurando que o processo reflita a verdadeira relação jurídica.

2. Ilegitimidade passiva singular

A ilegitimidade singular passiva ocorre quando o autor dirige a ação contra uma entidade estranha ao litígio, sem vínculo jurídico com o ato. A doutrina e a jurisprudência distinguem entre:

  • erro de órgão ou departamento (sanável);
  • erro de representação do Estado (sanável);
  • erro quanto à pessoa coletiva distinta (insanável).

A reforma do CPTA de 2015 reforçou o papel do juiz como gestor do processo, permitindo corrigir lapsos formais, mas sem alterar a essência da relação jurídica.

3. Tensão entre formalismo e justiça

Há um equilíbrio delicado: o formalismo protege a segurança jurídica, enquanto a efetividade processual exige acesso real ao direito. O acórdão posiciona-se firmemente em favor da coerência normativa, preservando a legitimidade como pilar do processo.

 

 

III. Análise do Acórdão

1. Contexto factual

O autor demandou o Ministério da Administração Interna (MAI) para impugnar ato praticado pela Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. (AIMA, I.P.). O tribunal de primeira instância considerou o MAI parte ilegítima e absolveu-o. O recurso procurava a correção do erro, invocando o dever de gestão processual.

2. Fundamentação do STA

O STA reafirma o dever do juiz de promover a saneação de vícios processuais, mas distingue:

  • Erro de órgão ou representação do Estado: sanável;
  • Erro quanto à pessoa coletiva distinta: insanável.

No caso, a MAI não tinha relação com o ato impugnado. Assim, a ilegitimidade singular passiva não podia ser corrigida, e o processo contra o MAI foi extinto.

O Tribunal equilibra o dever de gestão processual com o princípio da legalidade, evitando que o processo se transforme em instrumento de improviso administrativo. O formalismo aqui atua como um farol, garantindo estabilidade e previsibilidade.

 

IV. Apreciação Crítica

Entre formalismo e efetividade

O acórdão evidencia a tensão entre formalismo e tutela do mérito. A opção do STA em favor da legitimidade rigorosa garante a segurança jurídica, mas pode sacrificar o acesso à justiça em casos de erro formal.

Pode argumentar-se que, ao declarar a ilegitimidade insuprível, o STA afasta o princípio da decisão de mérito consagrado no artigo 278.º, n.º 3 do CPC, e, em certa medida, o princípio constitucional do acesso ao direito (art. 20.º da Constituição).

Porém, há também quem sustente que permitir a substituição da entidade demandada seria subverter o próprio conceito de legitimidade processual. Afinal, não se trata de um erro material na designação, mas da escolha de uma entidade diferente — e, nesse caso, corrigir o erro seria abrir a porta à reconfiguração da instância por via judicial.

2. Dimensão simbólica e literária

A ilegitimidade passiva funciona como uma ausência de vínculo: o autor fala para uma entidade que não é interlocutora do litígio. O processo, personificado, tropeça à entrada, impedido de avançar por uma porta que só a entidade correta detém a chave.

3. Crítica construtiva

Embora juridicamente coerente, a decisão evidencia a rigidez do sistema. Eventualmente, uma maior flexibilidade legislativa permitiria corrigir erros claros de identificação sem perda de instância, conciliando formalismo e justiça material.

4. Expressões idiomáticas e o pulsar da língua

É curioso como, mesmo em contexto jurídico, o acórdão parece sugerir que “cada qual deve responder pelo que faz”. O velho ditado popular — “cada macaco no seu galho” — ganha aqui uma ressonância jurídica: cada entidade responde pelos seus próprios atos, e não pelos de outra.

Esta fusão entre linguagem técnica e senso comum é um dos méritos do direito administrativo português: a forma e o fundo dialogam, ainda que em registos diferentes.

Em termos dogmáticos, o acórdão é coerente, sólido e bem fundamentado. A linha de separação entre erro sanável e ilegitimidade insuprível é clara e consistente com a jurisprudência anterior. Contudo, a decisão também mostra os limites do sistema: a rigidez que, em nome da forma, pode sacrificar a justiça concreta.

O acórdão de 27-02-2025 é, portanto, uma lição de prudência e de rigor. Mas é também um lembrete de que o direito processual, por mais perfeito que seja, nunca poderá eliminar o drama humano do erro.

 Conclusão 

O acórdão de 27 de fevereiro de 2025 é, no fundo, um retrato fiel do Direito Administrativo português contemporâneo: técnico, denso, coerente mas também humano nas suas limitações. Entre a razão e a emoção, o Tribunal escolheu a razão, ciente de que é ela que garante a estabilidade do sistema.

O acórdão 01686/24.6BELSB reafirma a insupribilidade da ilegitimidade singular passiva, destacando a importância da legitimidade processual. Ao escolher o rigor normativo sobre a flexibilidade do mérito, o STA protege a coerência do sistema administrativo.

Simbolicamente, o processo é como um rio que só flui quando o leito é correto: sem legitimidade, a corrente estagna. O acórdão é um lembrete de que o Direito, embora técnico e rígido, continua a pulsar sob a forma, preservando ordem, previsibilidade e justiça potencial.

 

 

Auria Carvalho

Nº aluna: 38425.

4º ano , SUB 1

 

 

 

 


 Bibliografia 

  • Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 2025.
  • Código de Processo Civil (CPC).
  • Constituição da República Portuguesa, art. 20.º.
  • Acórdão do STA, 27-02-2025, Proc. 01686/24.6BELSB.
  • Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, Almedina, 2022.
  • Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra, 2012.

 

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