Abreviações
CRP
– Constituição da República Portuguesa
RRCEE
– Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades
Públicas
CPA
– Código do Processo Administrativo
Introdução
e contexto histórico
No
âmbito do agir administrativo, por vezes, a produção de danos que implicam a
esfera jurídica dos particulares torna-se inevitável.
A
génese do princípio da responsabilidade da Administração Pública no ordenamento
jurídico português situou-se numa altura em que havia uma total
irresponsabilidade do Estado – esta visão tornou-se cada vez menos viável com a evolução
administrativa no sentido da construção de um Estado de Direito Democrático e
intervencionista, e nesse sentido foram então criados os alicerces da responsabilização
da Administração, começando pelo DL n.º 48051, de 21 de novembro de 1967. Mais
tarde, este é substituído pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro. As
constituições anteriores a 1976 apenas previam uma atribuição de responsabilidade
civil extracontratual da Administração de forma pessoal e exclusiva aos
serviços públicos.
Esta
base jurídica – juntamente com o atual artigo 22º da CRP, que consagra a nível
constitucional a responsabilidade das entidades públicas – tornou-se indispensável
ao reequilíbrio e recomposição da ordem jurídica perante situações anormais em
que se verifica uma lesão de direitos de particulares em consequência de uma
conduta administrativa. Releva ainda o artigo 271º da CRP, que vem reforçar a
mesma ideia. A responsabilidade da Administração, tal como sucede entre
particulares, pode obviamente ser contratual ou extracontratual – nesta
exposição, após algum contexto histórico, irei dar um maior realce à vertente
extracontratual, uma vez que é essa a mais complexa, a que suscita mais preocupações
e dificuldades de entendimento.
O
Direito da União Europeia e a responsabilidade dos Estados por violações no
âmbito administrativo
Neste
tema, é de relevar a extrema importância, tal como é recorrente nesta área, do
Direito da União Europeia. Como é já de se saber, os princípios do primado e da
cooperação leal obrigam os Estados-Membros da União Europeia a respeitar os
preceitos de direito eurocomunitário. Entre a vasta jurisprudência que poderia ser
aqui mencionada, o nosso foco neste contexto terá de incidir principalmente sobre
os acórdãos Humblet[1],
Francovich[2] e Brasserie du Pêcheur[3].
O
acórdão Humblet terá surgido em 1960, na Bélgica, e estabeleceu que, no
caso de o TJUE considerar que determinado ato legislativo ou administrativo
realizado por um Estado Membro é contrário ao direito da União, esse Estado seria
obrigado, por força do artigo 86.° do Tratado CECA a revogar o ato em questão e
a reparar os efeitos ilícitos que este possa ter produzido.
Cerca
de 30 anos mais tarde, com o acórdão Francovich (nascido na Itália), foi
de vez consagrado o princípio da responsabilidade extracontratual dos Estados
pela violação de direito eurocomunitário, tendo o TJUE estabelecido que, para o
direito comunitário funcionar, tem de obrigar necessariamente os Estados-Membros
a reparar os prejuízos causados aos particulares pelas violações de direito
comunitário que lhes sejam imputáveis, assegurando assim e protegendo os direitos
dos particulares enquanto cidadãos da UE. O particular pode exigir perante o
Estado-Membro uma indemnização por danos causados nesse caso sem ter de existir
antes uma declaração de incumprimento por parte do TJUE.
5 anos depois, nasce o acórdão Brasserie
du Pêcheur, que veio reforçar o mesmo princípio e clarificar algumas ideias que
já vinham do acórdão anterior, como os meios a que os particulares podem
legitimamente recorrer para fazerem valer os seus direitos. Foram ainda
identificados três requisitos mediante os quais, sendo verificados
cumulativamente, garantiriam o direito à reparação: a regra de direito violada tem
de ter por objeto a atribuição de direitos a particulares; a violação tem de
ser suficientemente caracterizada e tem de existir nexo de causalidade entre o
prejuízo sofrido pelo particular lesado e a violação da obrigação por parte do
Estado-Membro.
O
acórdão Hedley Lomas[4]
veio, seguidamente, esclarecer que estes três requisitos não só são aplicáveis
quando o Estado pratica atos da sua competência normativa ou legislativa, como
também o são no caso de o Estado violar normas de direito da UE no exercício
das suas funções administrativas: e assim chegamos ao momento em que se vê
estabelecido que particulares podem responsabilizar o Estado por algo que a sua
Administração faça, no âmbito do direito europeu.
A
CRP de 1976
Como
sabemos, o direito de regresso é um direito de crédito, consistindo no direito de
determinado devedor de exigir a outrem a realização de uma dada prestação que lhe foi paga a mais. A primeira
consagração constitucional deste direito ocorreu na Constituição de 1976, tendo
nesta sido estabelecida a responsabilidade civil extracontratual administrativa
através dos dois preceitos constitucionais já referidos – o artigo 22.º e o artigo
271.º.
Pode
entender-se que o artigo 22º é um preceito que institui a defesa e proteção de
particulares face a atos praticados pelo Estado e pela Administração Pública, independentemente
de a culpa, depois de provada, ser à base do dolo ou da negligência. O Professor
Tiago Serrão releva ainda que a responsabilidade também pode incluir a violação
de direitos de liberdade que cause danos morais, e não só patrimoniais, causados
pelos titulares dos seus órgãos ou quaisquer outros servidores públicos.
O
artigo 271º vem consagrar a responsabilidade civil, criminal e disciplinar dos
funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas pelas ações ou
omissões ilícitas praticadas no exercício das suas funções. Este artigo apenas
fala em condutas ilícitas, e por essa razão deve ser interpretado em conjunto
com o artigo 22º: aos olhos de alguns autores, o artigo 22º tem uma dupla
valência que inclui tanto a responsabilidade objetiva (que corresponde à
responsabilidade pelo risco) como a responsabilidade subjetiva (a
responsabilidade culposa) – desta forma, concluímos que este último artigo alarga
o âmbito da responsabilização.
O
n.º 2 dirige-se aos atos realizados mediante cumprimento de ordens vindas de um
superior hierárquico, excluindo a responsabilidade do subalterno; no n.º 3 encontramos
a exceção ao princípio hierárquico – o subalterno deve cumprir as ordens do seu
superior hierárquico, mesmo que resultem em danos, e não pode ser
responsabilizado se tiver reclamado ou pedido transmissão ou confirmação por
escrito, mas se a ordem constituir crime, não a deve seguir, sob pena de não
estar isento de responsabilização, como costuma suceder, ao abrigo do número
anterior.
Já
o n.º 4 do artigo 271.º, novamente em articulação com o artigo 22º, estabelece uma
responsabilidade solidária entre o Estado e as entidades públicas que o servem,
pretendendo garantir que sejam sempre cobertos todos os prejuízos causados a
particulares, assim como prevê o direito de regresso nas relações internas do
Estado e demais entidades públicas contra os titulares dos seus órgãos,
funcionários e agentes, fazendo uma remissão para uma lei ordinária.
Como
refere a Professora Carla Amado Gomes, os juízes do Tribunal Constitucional veem,
ainda, nos artigos 2º (consagração do princípio do Estado de Direito Democrático)
e 9º (alínea b)) da CRP um alicerce à sustentação de um direito geral à
reparação de danos, que veria as suas concretizações especiais nos artigos 22º,
37º/4, 60º/1 e 62º/2.
O
regime atual português - a Lei 67º/2007, de 31 de Dezembro (RRCEE)
Este
regime aponta para 4 tipos de responsabilidade – a responsabilidade pelo risco
(artigo 11º do RRCEE), a responsabilidade por falta do serviço (artigo 7º/3 e 4
do RRCEE), a responsabilidade por culpa in vigilando (artigo 10º/3 do RRCEE) e,
por fim, a responsabilidade por falta leve (artigos 7º/1 e 10º/2 do RRCEE). Este
diploma vem de alguma forma contribuir e dar mais estrutura à ideia que advém do
artigo 22º da CRP – a ideia de um modelo abrangente e misto, muito inclusivo nas
circunstâncias que regula e, assim, muito dedicado a conferir uma proteção máxima
aos particulares lesados.
Responsabilidade
pelo risco (artigo 11º do RRCEE)
O
artigo 11º estabelece que o Estado e as demais pessoas coletivas de direito
público respondem pelos danos decorrentes de atividades, coisas ou serviços
administrativos especialmente perigosos, salvo quando, nos termos gerais, se
prove que houve força maior ou concorrência de culpa do lesado, podendo o
tribunal, neste último caso, tendo em conta todas as circunstâncias, reduzir ou
excluir a indemnização.
A
responsabilidade pelo risco remete para os riscos inerentes ao exercício das
funções, isto é, com o facto de a atividade exercida poder ou não dar origem a
danos a particulares, e nesse caso haver responsabilização; aqui falamos
nomeadamente de atividades relacionadas com coisas especialmente perigosas. A Professora
Carla Amado Gomes nota que o conceito de perigosidade deveria estar minimamente
caracterizado e o Professor Vaz Serra define atividades perigosas como as “que
criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda
mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal
derivada das outras atividades”. No regime anterior, o critério da perigosidade
consistia na importância e na gravidade dos danos – o novo artigo 11º vem
dispensar este critério de qualificação que a jurisprudência considerava. De
todo o modo, a responsabilidade pelo risco costuma abranger os tipos de
atividades nos quais se encontra uma exposição superior à comum a riscos, como
atividades relacionadas com a condução.
Os
cinco requisitos que conhecemos para a existência de responsabilidade civil são
a existência de facto, a ilicitude, a culpa (dolosa ou negligente), o dano e o
nexo de causalidade entre o facto e o dano. Todavia, os casos que se encontram sujeitos
ao conteúdo deste artigo não dependem da existência de culpa: porque ainda que
o agente possa ter agido com culpa, existem casos em que a culpa pode ser
difícil de provar pelo lesado, e desta forma, mesmo não se provando, o lesado é
sempre protegido e tem direito a ser indemnizado. Por outro lado, se houver culpa
do lesado, essa culpa pode gerar a redução da indemnização ou até mesmo a perda
do direito à mesma. A Professora Carla Amado Gomes refere que a utilização do
fator de culpa do lesado como fator de exclusão do direito à indemnização “não
é pacífica”, mas teve acolhimento jurisprudencial pelo interferência da culpa não exclusiva do lesado
com a responsabilidade pelo STJ numa decisão de 2007. Esta interpretação mais atualista,
a que o STJ também recorreu, admite que se pondere uma concorrência de culpas
entre a do lesado e a do lesante, embora isto não pareça fazer muito sentido se
estamos a falar em casos de responsabilidade pelo risco, que é uma forma de
responsabilização objetiva.
Responsabilidade
por falta do serviço (artigo 7º/3 e 4 do RRCEE)
Nos
casos de responsabilidade por falta de serviço, o que está em causa é uma
omissão – é a falta de uma ação que era expectável e deveria ter sido praticada
mas, ao não ser, causou danos ao particular. O artigo 7º/3 refere que há lugar
para responsabilidade quando os danos não tenham resultado do comportamento
concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente determinado, ou não seja
possível provar a autoria pessoal da ação ou omissão, mas devam ser atribuídos
a um funcionamento anormal do serviço; e o nº4 vem determinar o conceito de “funcionamento
anormal do serviço”: existe funcionamento anormal do serviço quando, atendendo
às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível
ao serviço uma atuação suscetível de evitar os danos produzidos. Carlos Cadilha
designa estes casos por casos de “culpa anónima” – esta é uma expressão que
efetivamente faz, na minha perspetiva, bastante sentido pelo facto que não se
conseguir atribuir a culpa concretamente a alguém, sendo que a ação faltou simplesmente
devido a circunstâncias anormais. A ideia ainda é reforçada pelo artigo 9º/2 do
mesmo diploma, atribuindo este ilicitude a esta forma de conduta.
Responsabilidade
por culpa in vigilando (artigo 10º/3 do RRCEE)
Estabelece
o artigo 10º/3 que, para além dos
demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação
dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido
incumprimento de deveres de vigilância. É, assim, uma forma de
responsabilidade subjetiva. Existe nestas situações uma presunção de culpa, o
que significa que apenas compete ao lesado a apresentação dos factos que
suscitam a presunção de culpa do agente administrativo e fundamentar o nexo de
causalidade ente o facto e o dano que alega ter sofrido.
Responsabilidade
por falta leve (artigos 7º/1 e 10º/2 do RRCEE)
Por
fim, o Estado e as demais pessoas
coletivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que
resultem de ações ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos
titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função
administrativa e por causa desse exercício (artigo 7º/1). Determina ainda o
artigo 10º/2 que se presume a existência de culpa leve na prática de atos
jurídicos ilícitos. Na opinião da Professora Carla Amado Gomes, na maior
parte das situações que se encontram aqui compreendidas, a supressão da falta
leve seria difícil tendo em conta que o nosso ordenamento jurídico é complexo e
está sempre a sofrer alterações; quanto mais leve for a falta que suporta a
imputação, maior será a possibilidade de esta se vir a verificar porque vai ser
cada vez mais difícil provar que a mesma não se verificou.
Conclusão
Em
suma, há que referir, como já foi previamente mencionado, que a consagração
atual da responsabilidade extracontratual do Estado e das demais entidades
públicas é muito abrangente e confere, por essa razão, uma proteção mais ampla
aos direitos dos particulares. Face à consagração anterior, a Lei nº 67/2007 trouxe como novidade a
responsabilização por falta leve (artigo 7º/1 do RRCEE) e a presunção de culpa
do seu artigo 10º, sendo que obriga à responsabilidade solidária para faltas
grosseiras e dolosas (artigo 8º/1). Para além disso, os pressupostos da
responsabilidade pelo risco tornaram-se mais abrangentes, como vimos (artigo
11º).
Bibliografia
e Webgrafia
Diplomas:
CRP; CPA; Lei 67º/2007, de 31 de dezembro; DL n.º 48051, de 21 de novembro de
1967
-
Ac. Francovich - https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A61990CJ0006
-
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-
Ac. Brasserie du Pêcheur - https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A61993CJ0046
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Ac. Hedley Lomas - https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A61994CJ0005
OSÓRIO, Alcides Daniel Guimarães. A
responsabilidade civil extracontratual da administração por violação do direito
da União Europeia – responsabilidade por facto ilícito. Dissertação de Mestrado
em Direito - Ciências Jurídico-Administrativas. Porto, 2012
SERRÃO, Tiago. Alguns
problemas de constitucionalidade do regime da responsabilidade civil
extracontratual do Estado e das demais entidades públicas in “A constituição e
a Administração Pública”. Lisboa, AAFDL Editora, 2018.
GOMES, Carla Amado. Nota breve
sobre a tendência de objectivização da responsabilidade civil extracontratual
das entidades públicas no regime aprovado pela lei 67/2007, de 31 de dezembro. Lisboa,
2013.
[1] Acórdão
do Tribunal de 16 de Dezembro de 1960, Processo 6/60. Jean-E. Humblet
contra Estado belga.
[2] Acórdão
do Tribunal de 19 de Novembro de 1991, Processos apensos C-6/90 e C-9/90.
Andrea Francovich e Danila Bonifaci e outros contra República Italiana.
[3] Acórdão
do Tribunal de 5 de Março de 1996, Processos apensos C-46/93 e C-48/93. Brasserie
du Pêcheur SA contra Bundesrepublik Deutschland e The Queen contra Secretary of
State for Transport, ex parte: Factortame Ltd e outros.
[4] Acórdão
do Tribunal de 23 de Maio de 1996, Processo C-5/94. The Queen contra Ministry
of Agriculture, Fisheries and Food, ex parte: Hedley Lomas (Ireland) Ltd.
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