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terça-feira, 28 de maio de 2024

A responsabilidade extracontratual da Administração Pública

 

Abreviações

CRP – Constituição da República Portuguesa

RRCEE – Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas

CPA – Código do Processo Administrativo

 

Introdução e contexto histórico

No âmbito do agir administrativo, por vezes, a produção de danos que implicam a esfera jurídica dos particulares torna-se inevitável. No artigo 16º do CPA, encontra-se consagrada a responsabilidade da Administração Pública perante danos causados no exercício da sua atividade, remetendo o artigo para outro diploma – a Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro.

A génese do princípio da responsabilidade da Administração Pública no ordenamento jurídico português situou-se numa altura em que havia uma total irresponsabilidade do Estado – esta visão  tornou-se cada vez menos viável com a evolução administrativa no sentido da construção de um Estado de Direito Democrático e intervencionista, e nesse sentido foram então criados os alicerces da responsabilização da Administração, começando pelo DL n.º 48051, de 21 de novembro de 1967. Mais tarde, este é substituído pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro. As constituições anteriores a 1976 apenas previam uma atribuição de responsabilidade civil extracontratual da Administração de forma pessoal e exclusiva aos serviços públicos.

Esta base jurídica – juntamente com o atual artigo 22º da CRP, que consagra a nível constitucional a responsabilidade das entidades públicas – tornou-se indispensável ao reequilíbrio e recomposição da ordem jurídica perante situações anormais em que se verifica uma lesão de direitos de particulares em consequência de uma conduta administrativa. Releva ainda o artigo 271º da CRP, que vem reforçar a mesma ideia. A responsabilidade da Administração, tal como sucede entre particulares, pode obviamente ser contratual ou extracontratual – nesta exposição, após algum contexto histórico, irei dar um maior realce à vertente extracontratual, uma vez que é essa a mais complexa, a que suscita mais preocupações e dificuldades de entendimento.

 

O Direito da União Europeia e a responsabilidade dos Estados por violações no âmbito administrativo

Neste tema, é de relevar a extrema importância, tal como é recorrente nesta área, do Direito da União Europeia. Como é já de se saber, os princípios do primado e da cooperação leal obrigam os Estados-Membros da União Europeia a respeitar os preceitos de direito eurocomunitário. Entre a vasta jurisprudência que poderia ser aqui mencionada, o nosso foco neste contexto terá de incidir principalmente sobre os acórdãos Humblet[1], Francovich[2] e Brasserie du Pêcheur[3].

O acórdão Humblet terá surgido em 1960, na Bélgica, e estabeleceu que, no caso de o TJUE considerar que determinado ato legislativo ou administrativo realizado por um Estado Membro é contrário ao direito da União, esse Estado seria obrigado, por força do artigo 86.° do Tratado CECA a revogar o ato em questão e a reparar os efeitos ilícitos que este possa ter produzido.

Cerca de 30 anos mais tarde, com o acórdão Francovich (nascido na Itália), foi de vez consagrado o princípio da responsabilidade extracontratual dos Estados pela violação de direito eurocomunitário, tendo o TJUE estabelecido que, para o direito comunitário funcionar, tem de obrigar necessariamente os Estados-Membros a reparar os prejuízos causados aos particulares pelas violações de direito comunitário que lhes sejam imputáveis, assegurando assim e protegendo os direitos dos particulares enquanto cidadãos da UE. O particular pode exigir perante o Estado-Membro uma indemnização por danos causados nesse caso sem ter de existir antes uma declaração de incumprimento por parte do TJUE.

5 anos depois, nasce o acórdão Brasserie du Pêcheur, que veio reforçar o mesmo princípio e clarificar algumas ideias que já vinham do acórdão anterior, como os meios a que os particulares podem legitimamente recorrer para fazerem valer os seus direitos. Foram ainda identificados três requisitos mediante os quais, sendo verificados cumulativamente, garantiriam o direito à reparação: a regra de direito violada tem de ter por objeto a atribuição de direitos a particulares; a violação tem de ser suficientemente caracterizada e tem de existir nexo de causalidade entre o prejuízo sofrido pelo particular lesado e a violação da obrigação por parte do Estado-Membro.

O acórdão Hedley Lomas[4] veio, seguidamente, esclarecer que estes três requisitos não só são aplicáveis quando o Estado pratica atos da sua competência normativa ou legislativa, como também o são no caso de o Estado violar normas de direito da UE no exercício das suas funções administrativas: e assim chegamos ao momento em que se vê estabelecido que particulares podem responsabilizar o Estado por algo que a sua Administração faça, no âmbito do direito europeu.  

 

A CRP de 1976

Como sabemos, o direito de regresso é um direito de crédito, consistindo no direito de determinado devedor de exigir a outrem a realização de uma dada prestação  que lhe foi paga a mais. A primeira consagração constitucional deste direito ocorreu na Constituição de 1976, tendo nesta sido estabelecida a responsabilidade civil extracontratual administrativa através dos dois preceitos constitucionais já referidos – o artigo 22.º e o artigo 271.º.

Pode entender-se que o artigo 22º é um preceito que institui a defesa e proteção de particulares face a atos praticados pelo Estado e pela Administração Pública, independentemente de a culpa, depois de provada, ser à base do dolo ou da negligência. O Professor Tiago Serrão releva ainda que a responsabilidade também pode incluir a violação de direitos de liberdade que cause danos morais, e não só patrimoniais, causados pelos titulares dos seus órgãos ou quaisquer outros servidores públicos.

O artigo 271º vem consagrar a responsabilidade civil, criminal e disciplinar dos funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas pelas ações ou omissões ilícitas praticadas no exercício das suas funções. Este artigo apenas fala em condutas ilícitas, e por essa razão deve ser interpretado em conjunto com o artigo 22º: aos olhos de alguns autores, o artigo 22º tem uma dupla valência que inclui tanto a responsabilidade objetiva (que corresponde à responsabilidade pelo risco) como a responsabilidade subjetiva (a responsabilidade culposa) – desta forma, concluímos que este último artigo alarga o âmbito da responsabilização.

O n.º 2 dirige-se aos atos realizados mediante cumprimento de ordens vindas de um superior hierárquico, excluindo a responsabilidade do subalterno; no n.º 3 encontramos a exceção ao princípio hierárquico – o subalterno deve cumprir as ordens do seu superior hierárquico, mesmo que resultem em danos, e não pode ser responsabilizado se tiver reclamado ou pedido transmissão ou confirmação por escrito, mas se a ordem constituir crime, não a deve seguir, sob pena de não estar isento de responsabilização, como costuma suceder, ao abrigo do número anterior.

Já o n.º 4 do artigo 271.º, novamente em articulação com o artigo 22º, estabelece uma responsabilidade solidária entre o Estado e as entidades públicas que o servem, pretendendo garantir que sejam sempre cobertos todos os prejuízos causados a particulares, assim como prevê o direito de regresso nas relações internas do Estado e demais entidades públicas contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, fazendo uma remissão para uma lei ordinária.

Como refere a Professora Carla Amado Gomes, os juízes do Tribunal Constitucional veem, ainda, nos artigos 2º (consagração do princípio do Estado de Direito Democrático) e 9º (alínea b)) da CRP um alicerce à sustentação de um direito geral à reparação de danos, que veria as suas concretizações especiais nos artigos 22º, 37º/4, 60º/1 e 62º/2.

 

O regime atual português - a Lei 67º/2007, de 31 de Dezembro (RRCEE)

Este regime aponta para 4 tipos de responsabilidade – a responsabilidade pelo risco (artigo 11º do RRCEE), a responsabilidade por falta do serviço (artigo 7º/3 e 4 do RRCEE), a responsabilidade por culpa in vigilando (artigo 10º/3 do RRCEE) e, por fim, a responsabilidade por falta leve (artigos 7º/1 e 10º/2 do RRCEE). Este diploma vem de alguma forma contribuir e dar mais estrutura à ideia que advém do artigo 22º da CRP – a ideia de um modelo abrangente e misto, muito inclusivo nas circunstâncias que regula e, assim, muito dedicado a conferir uma proteção máxima aos particulares lesados.

 

Responsabilidade pelo risco (artigo 11º do RRCEE)

O artigo 11º estabelece que o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público respondem pelos danos decorrentes de atividades, coisas ou serviços administrativos especialmente perigosos, salvo quando, nos termos gerais, se prove que houve força maior ou concorrência de culpa do lesado, podendo o tribunal, neste último caso, tendo em conta todas as circunstâncias, reduzir ou excluir a indemnização.

A responsabilidade pelo risco remete para os riscos inerentes ao exercício das funções, isto é, com o facto de a atividade exercida poder ou não dar origem a danos a particulares, e nesse caso haver responsabilização; aqui falamos nomeadamente de atividades relacionadas com coisas especialmente perigosas. A Professora Carla Amado Gomes nota que o conceito de perigosidade deveria estar minimamente caracterizado e o Professor Vaz Serra define atividades perigosas como as “que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras atividades”. No regime anterior, o critério da perigosidade consistia na importância e na gravidade dos danos – o novo artigo 11º vem dispensar este critério de qualificação que a jurisprudência considerava. De todo o modo, a responsabilidade pelo risco costuma abranger os tipos de atividades nos quais se encontra uma exposição superior à comum a riscos, como atividades relacionadas com a condução.

Os cinco requisitos que conhecemos para a existência de responsabilidade civil são a existência de facto, a ilicitude, a culpa (dolosa ou negligente), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Todavia, os casos que se encontram sujeitos ao conteúdo deste artigo não dependem da existência de culpa: porque ainda que o agente possa ter agido com culpa, existem casos em que a culpa pode ser difícil de provar pelo lesado, e desta forma, mesmo não se provando, o lesado é sempre protegido e tem direito a ser indemnizado. Por outro lado, se houver culpa do lesado, essa culpa pode gerar a redução da indemnização ou até mesmo a perda do direito à mesma. A Professora Carla Amado Gomes refere que a utilização do fator de culpa do lesado como fator de exclusão do direito à indemnização “não é pacífica”, mas teve acolhimento jurisprudencial pelo  interferência da culpa não exclusiva do lesado com a responsabilidade pelo STJ numa decisão de 2007. Esta interpretação mais atualista, a que o STJ também recorreu, admite que se pondere uma concorrência de culpas entre a do lesado e a do lesante, embora isto não pareça fazer muito sentido se estamos a falar em casos de responsabilidade pelo risco, que é uma forma de responsabilização objetiva.

 

Responsabilidade por falta do serviço (artigo 7º/3 e 4 do RRCEE)

Nos casos de responsabilidade por falta de serviço, o que está em causa é uma omissão – é a falta de uma ação que era expectável e deveria ter sido praticada mas, ao não ser, causou danos ao particular. O artigo 7º/3 refere que há lugar para responsabilidade quando os danos não tenham resultado do comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente determinado, ou não seja possível provar a autoria pessoal da ação ou omissão, mas devam ser atribuídos a um funcionamento anormal do serviço; e o nº4 vem determinar o conceito de “funcionamento anormal do serviço”: existe funcionamento anormal do serviço quando, atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma atuação suscetível de evitar os danos produzidos. Carlos Cadilha designa estes casos por casos de “culpa anónima” – esta é uma expressão que efetivamente faz, na minha perspetiva, bastante sentido pelo facto que não se conseguir atribuir a culpa concretamente a alguém, sendo que a ação faltou simplesmente devido a circunstâncias anormais. A ideia ainda é reforçada pelo artigo 9º/2 do mesmo diploma, atribuindo este ilicitude a esta forma de conduta.

 

Responsabilidade por culpa in vigilando (artigo 10º/3 do RRCEE)

Estabelece o artigo 10º/3 que, para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância. É, assim, uma forma de responsabilidade subjetiva. Existe nestas situações uma presunção de culpa, o que significa que apenas compete ao lesado a apresentação dos factos que suscitam a presunção de culpa do agente administrativo e fundamentar o nexo de causalidade ente o facto e o dano que alega ter sofrido.  


Responsabilidade por falta leve (artigos 7º/1 e 10º/2 do RRCEE)

Por fim, o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício (artigo 7º/1). Determina ainda o artigo 10º/2 que se presume a existência de culpa leve na prática de atos jurídicos ilícitos. Na opinião da Professora Carla Amado Gomes, na maior parte das situações que se encontram aqui compreendidas, a supressão da falta leve seria difícil tendo em conta que o nosso ordenamento jurídico é complexo e está sempre a sofrer alterações; quanto mais leve for a falta que suporta a imputação, maior será a possibilidade de esta se vir a verificar porque vai ser cada vez mais difícil provar que a mesma não se verificou.

 

Conclusão

Em suma, há que referir, como já foi previamente mencionado, que a consagração atual da responsabilidade extracontratual do Estado e das demais entidades públicas é muito abrangente e confere, por essa razão, uma proteção mais ampla aos direitos dos particulares. Face à consagração anterior,  a Lei nº 67/2007 trouxe como novidade a responsabilização por falta leve (artigo 7º/1 do RRCEE) e a presunção de culpa do seu artigo 10º, sendo que obriga à responsabilidade solidária para faltas grosseiras e dolosas (artigo 8º/1). Para além disso, os pressupostos da responsabilidade pelo risco tornaram-se mais abrangentes, como vimos (artigo 11º).

 

 

 

Bibliografia e Webgrafia

Diplomas: CRP; CPA; Lei 67º/2007, de 31 de dezembro; DL n.º 48051, de 21 de novembro de 1967

- Ac. Francovich - https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A61990CJ0006

- Ac. Humblet - https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A61960CJ0006

- Ac. Brasserie du Pêcheur - https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A61993CJ0046

- Ac. Hedley Lomas - https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A61994CJ0005

OSÓRIO, Alcides Daniel Guimarães. A responsabilidade civil extracontratual da administração por violação do direito da União Europeia – responsabilidade por facto ilícito. Dissertação de Mestrado em Direito - Ciências Jurídico-Administrativas. Porto, 2012

SERRÃO, Tiago. Alguns problemas de constitucionalidade do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais entidades públicas in “A constituição e a Administração Pública”. Lisboa, AAFDL Editora, 2018.

GOMES, Carla Amado. Nota breve sobre a tendência de objectivização da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas no regime aprovado pela lei 67/2007, de 31 de dezembro. Lisboa, 2013.

https://diariodarepublica.pt/dr/lexionario/termo/direito-regresso-na-responsabilidade-extracontratual-publica



Marta Cordeiro, 
nº 65994

[1] Acórdão do Tribunal de 16 de Dezembro de 1960, Processo 6/60. Jean-E. Humblet contra Estado belga.

[2] Acórdão do Tribunal de 19 de Novembro de 1991, Processos apensos C-6/90 e C-9/90. Andrea Francovich e Danila Bonifaci e outros contra República Italiana.

[3] Acórdão do Tribunal de 5 de Março de 1996, Processos apensos C-46/93 e C-48/93. Brasserie du Pêcheur SA contra Bundesrepublik Deutschland e The Queen contra Secretary of State for Transport, ex parte: Factortame Ltd e outros.

[4] Acórdão do Tribunal de 23 de Maio de 1996, Processo C-5/94. The Queen contra Ministry of Agriculture, Fisheries and Food, ex parte: Hedley Lomas (Ireland) Ltd.

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