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terça-feira, 28 de novembro de 2023

Comentário à Resolução do Conselho de Ministros – n.º132/2023 de 25 de outubro

             Ao abrigo do artigo 66º da Constituição, todos temos direito a um ambiente de vida ecologicamente equilibrado e é dever do Estado, com a devida colaboração dos cidadãos, assegurar o direito ao ambiente com um desenvolvimento sustentável; ainda mais concretamente, de acordo com a alínea g) do artigo 199º, cabe ao Governo praticar todos os atos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades coletivas.

No passado dia 25 de outubro, foi aprovada a Resolução do Conselho de Ministros n.º132/2023, que teve como objetivo definir os critérios ecológicos aplicáveis aos contratos celebrados pelas entidades da Administração Direta e Indireta do Estado. O presente post, na esperança de conseguir transmitir alguns conhecimentos de Direito Administrativo e Direito do Ambiente, servirá de humilde comentário a esta Resolução, que produzirá os seus efeitos a partir do segundo trimestre de 2024, sendo assim aplicável aos procedimentos que forem iniciados a partir dessa mesma data.

 

A ECO360 e a necessidade deste diploma

 

Inicialmente, é feita uma alusão à ECO360 - a Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas para o período 2030 – que fora aprovada anteriormente pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 13/2023, de 10 de fevereiro. Parece ser interessante falarmos brevemente sobre esta figura: a Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas (ENCPE).

Importa-nos falar do seu nascimento e progresso. Foi criada em 2007 a primeira ENCPE através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2007, de 7 de maio, com fins definidos para o período compreendido entre 2008 e 2010. Este instrumento teve um peso bastante relevante no Sistema Nacional de Compras Públicas (SNCP), tendo-o modelado com a incorporação inovadora de alguns critérios ambientais em acordos-quadro para categorias de bens e serviços e, à luz disso, influenciou positivamente os processos de contratação realizados pelas entidades públicas nesse período de tempo. Assim, em 2016, foi aprovada uma nova ENCPE pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 38/2016, de 29 de julho: a ENCPE 2020. Esta nova versão foi mais inclusiva, teve uma área de aplicação mais alargada e por isso evidenciou-se mais a sua eficácia em comparação com a anterior.

Após esta breve e modesta explicação, parece claro: a ECO360 é, à semelhança das versões anteriores, nada mais, nada menos, que uma ferramenta que fora criada para disciplinar as entidades integradoras da Administração Direta e Indireta do Estado, o setor empresarial do Estado e a oferta de produtos, serviços e obras, com vista a reduzir os seus impactos ambientais. Com a mesma, o Governo pretende que a contratação pública sustentável seja um ponto fulcral da decisão de produção e consumo sustentável e que se fortaleça a Contratação Pública Ecológica – o que ajudará fazer cumprir os objetivos das políticas ambientais, a promover um modelo de desenvolvimento económico sustentável que permita riqueza e emprego e, ainda, alimentar uma conduta sustentável de excelência da Administração Pública que influencie as atitudes das empresas e dos cidadãos.

A Resolução do Conselho de Ministros n.º 132/2023 nasceu da necessidade de serem criadas condições que efetivassem um caráter obrigatório da adoção dos critérios ecológicos esboçados pela ECO360; critérios estes que, adicionalmente, também são acolhidos por outros diplomas que se alinham com este, conforme mencionado na Resolução, como o Plano de Recuperação e Resiliência – que prevê a modernização do Sistema Nacional de Compras Públicas, a introdução de critérios ecológicos obrigatórios a ter em conta na aquisição de bens e serviços e a integração de materiais biológicos e sustentáveis –, o Código dos Contratos Públicos – que trata como princípios específicos da contratação pública a sustentabilidade e o cumprimento das normas aplicáveis em matéria ambiental, juntamente com outras normas de Direito Internacional – e a Lei de Bases do Clima – que consolida objetivos, princípios e obrigações para os diferentes níveis de governação para a ação climática através de políticas públicas e instaura novas disposições em termos de política climática.

A presente Resolução visa conseguir assim, manifestamente, a concretização da ECO360, a prossecução da sustentabilidade, o cumprimento dos objetivos das políticas ambientais, e contribuir para a eliminação de constrangimentos e obstáculos à valorização dos recursos biológicos para o desenvolvimento da bioindústria sustentável e circular.

 

Aspetos iniciais

 

Já terei mencionado, até aqui, que estes critérios serão aplicáveis a todos os contratos celebrados pela Administração Pública (Direta e Indireta) do Estado - resta falarmos das entidades que fazem parte dela.

Como já tivemos oportunidade de aprender nas aulas, a Administração Direta do Estado -regulada pela Lei n.º 4/2004, de 15 de janeiro, que define os princípios e normas a que obedece a sua organização - engloba toda a atividade administrativa prosseguida diretamente pelos próprios serviços administrativos do Estado, que estabelecem entre si uma relação hierárquica. Distinguem-se, dentro dela, os órgãos centrais – que têm competência em todo o território nacional – e os órgãos periféricos – cuja competência se limita a uma área circunscrita (sendo que estes últimos podem, ainda, ser classificados como internos ou externos). Os principais órgãos centrais são os Ministérios, as Direções-Gerais, as Direções Regionais, os Gabinetes e as Secretarias-Gerais.

A Administração Indireta é aquela que continua a prosseguir os fins do Estado mas é realizada por outras entidades que não fazem parte do Estado. O Professor Doutor Paulo Otero chamava a estas entidades, nas suas aulas teóricas, de “pessoas coletivas instrumentalizadas”:  têm personalidade jurídica própria e autonomia (administrativa e financeira), sendo responsáveis pelos seus atos. A Administração Indireta do Estado tem uma parte Pública e uma parte Privada; integram a Administração Indireta Pública do Estado, manifestamente, os Institutos Públicos e as Entidades Públicas Empresariais. Os Institutos Públicos (regulados pela Lei n.º 3/2004, de 15 de janeiro, que configura a Lei Quadro dos Institutos Públicos) são pessoas coletivas sem fins lucrativos que se repartem entre serviços personalizados e fundações públicas; as Entidades Públicas Empresariais (regidas pelo Decreto-Lei n.º 133/2013, de 03 de outubro), por sua vez, consistem em empresas públicas concretizadas sob forma jurídico-pública. 

Será igualmente importante entender o que é um critério de adjudicação. Um critério de adjudicação é o método que uma entidade adjudicante – que será a parte contratante – define e utiliza para avaliar as várias propostas apresentadas pelos concorrentes num procedimento de contratação pública e optar por aquela que for economicamente mais vantajosa num dado contrato público. O Código dos Contratos Públicos, no seu artigo 74º, prevê que o critério de adjudicação pode ter uma de duas modalidades: multifator – sendo o critério de adjudicação densificado por um conjunto de fatores, e eventuais subfatores, correspondentes a diversos aspetos da execução do contrato a celebrar – ou monofator – sendo o critério de adjudicação densificado por um fator correspondente a um único aspeto da execução do contrato a celebrar, designadamente o preço.

Nos princípios gerais, alerta-se para a preferência, no ato da contratação pública, pela modalidade multifator e pela inclusão de fatores de sustentabilidade ambiental, pela criação de standards mínimos a nível de sustentabilidade ambiental nas prestações e pelas prestações certificadas por sistemas mais reconhecidos e confiáveis.

 

O conteúdo da Resolução e os princípios que o fundamentam  

 

          Partindo para os critérios ecológicos em específico, em vários pontos, a modalidade multifator do critério de adjudicação é apresentada como obrigatória: a entidade tem de utilizá-la, a não ser que isso implique a existência de uma restrição notória da concorrência. Logo na primeira tipologia de contratos (os contratos de aquisição de peças de vestuário), surgem critérios ecológicos eventuais, relativos a aspetos na execução do contrato e nas especificações técnicas – sendo que este tipo de critérios não é minimamente obrigatório –, mas antes disso, por exemplo, vemos cinco fatores do critério de adjudicação e, enquanto os critérios relativos à Produção Biológica são de natureza voluntária – isto é, a entidade só está obrigada à adoção do critério caso opte pela adoção de critérios ecológicos  –, todos os outros são recomendáveis – o que significa que a aplicação só pode ser dispensada mediante fundamentação.  

A maioria – senão a totalidade – dos critérios presentes nesta Resolução tem como base, como se poderá concluir, um princípio fundamental de Direito do Ambiente: o princípio da prevenção, que encontra o seu fundamento legal na alínea a) do artigo 66º/2 da Constituição. Este princípio reside na necessidade de o Estado agir de forma preventiva de modo a controlar a poluição, evitando o seu aumento e o alastramento dos seus efeitos negativos no meio ambiente. Torna-se mais identificável e evidente, por exemplo, nos critérios ecológicos que foram criados relativamente aos contratos de aquisição de veículos e contratos de aluguer operacional de veículos: a ponderação do custo da exploração do consumo de energia gerado pelo veículo durante o seu tempo estimado de vida, do custo relativo ao consumo de combustíveis fósseis, do custo da exploração das emissões poluentes e do custo do nível de emissões poluentes, bem como a fixação de um nível máximo de emissões poluentes para veículos com motorização a combustão, em especial para emissões de CO2. Com estas regras – todas elas obrigatórias – o Governo ambiciona reduzir substancialmente a queima de combustíveis fósseis, que representa nos dias de hoje 87% das emissões globais de CO2 e, precisamente, a evitar que a atividade administrativa acabe por gerar lesões ambientais ainda mais sérias do que aquelas que já temos e são por nós conhecidas. Nesta linha de pensamento, foram também criadas regras acerca da produção de eletricidade através de fontes de energia renováveis para os contratos de aquisição de eletricidade (que incluem a aquisição para postos públicos de eletricidade para mobilidade elétrica) e da capacidade para a produção de sistemas solares fotovoltaicos (para os contratos de aquisição de serviços de certificação energética, auditoria energética e projeto e de aquisição e instalação de sistema fotovoltaico de autoconsumo).

Mas a ratio do princípio da prevenção, como elucida o Professor Doutor Vasco Pereira da Silva na obra de sua autoria Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, será evitar a produção de efeitos danosos para o ambiente, não servindo o mesmo para confrontar lesões já ocorridas. Para reagir face a estas últimas, entra em ação o princípio do poluidor-pagador, explicitado no artigo 174º/2 do Tratado da União Europeia e protegido pela Constituição, uma vez que é um resultado essencial e direto da norma da alínea h) do seu artigo 66º/2. A referida alínea consagra a obrigação do Estado de garantir que a política fiscal compatibiliza o desenvolvimento com a proteção do ambiente e da qualidade de vida – e a forma de concretizar isto passará, fundamentalmente, pela responsabilização a nível fiscal dos das entidades que lucram com uma dada atividade por elas exercida que traz consequências ambientais e prejudica, desta forma, a sociedade no seu todo. Não me alongarei acerca deste princípio, uma vez que não tem tanta incidência na Resolução que é protagonista deste post. Direi apenas que são diretrizes como as dispostas no âmbito da execução dos contratos de aquisição de serviços de certificação energética, auditoria energética e projeto e de aquisição e instalação de sistema fotovoltaico de autoconsumo que abrem portas à sua concretização, mantendo o proponente ciente de que tem de cumprir toda a legislação ambiental aplicável, de que será responsável por garantir o cumprimento integral das medidas de prevenção e mitigação ambiental  (alíneas a) e b)) e de que será ele a entidade vista como produtora e ficará responsável pelos resíduos que criar – deixando em aberto a eventualidade de estes resíduos virem a causar danos ambientais, no caso de não serem tomadas as diligências acertadas, e o proponente vir a ser responsabilizado por esses danos. A atribuição financeira que este preceito retrata deverá abrigar não só os danos causados, mas também as medidas preventivas que auxiliem ao entrave ou minimização de condutas semelhantes de risco para o ambiente, e os custos da reconstituição da situação, na medida em que esta for possível – considerando que, embora seja concebível agir de forma a combater e tentar reduzir os prejuízos que a dita atividade terá provocado no campo ambiental, não será possível neutraliza-los na sua totalidade em muitos casos, diria que estas medidas têm, a meu ver, um caráter maioritariamente compensatório; é também percetível um sentido sancionatório, na medida em que as entidades tentarão reduzir os seus impactos ambientais para não terem de pagar estas compensações financeiras.

Um outro princípio fundamental com preceito constitucional em matéria do ambiente é o princípio do aproveitamento racional dos recursos disponíveis, que reside na alínea d) do artigo 66º/2 da CRP. Concretiza-se em critérios como o da obtenção de madeira através de florestas com certificado de gestão sustentável (que é um critério ecológico obrigatório relativo a contratos de aquisição de madeira e cortiça e contratos de empreitada de obras públicas que envolvam a utilização de madeira e cortiça) –  este é essencial na medida em que esta matéria-prima é um recurso limitado e não renovável. As práticas nestas florestas diferenciam-se, para lá de se alinharem com a legislação aplicável, pela conservação da biodiversidade e pelo maior controlo e uso mínimo de químicos, obtendo uma produção mais sustentável. Ao obrigar à adoção de critérios ambientais, como este, na tomada de decisões por parte das entidades públicas, há a intenção de alertar para a escassez dos bens e interditar atividades que levem ao esbanjamento ou ao desgaste sério dos recursos naturais de que ainda dispomos (pretende-se, para além disso, alguma seriedade e transparência dos proponentes, no critério seguinte, tendo estes de comprovar a origem das matérias). O mesmo sucede em vários outros pontos da Resolução, como na menção da utilização de um teor mínimo de fibras recicladas na execução de contratos de aquisição de peças vestuário (sem prejuízo de este critério não ser absolutamente obrigatório, sendo recomendável) e nas medidas acerca do papel impostas para os contratos de aquisição de papel para fotocópia e impressão.

Falemos agora do quarto (e último) princípio fundamental ambiental que tem sede na nossa Constituição: o princípio do desenvolvimento sustentável, presente também no artigo 66º/2. Este preceito faz exigir que as decisões jurídicas de desenvolvimento económico sejam bem fundamentadas a nível ecológico; é crucial que sejam tomados em linha de consideração os danos ecológicos que uma determinada medida possa trazer e que não sejam apenas vistas as vantagens económicas que dela pudessem advir. Esta ideia está presente logo desde o início, com o estabelecimento da natureza recomendável dos critérios ecológicos: exigir a uma entidade pública que fundamente a não adoção de determinado critério é, exatamente, obrigá-la a refletir, a ponderar os custos ecológicos da sua atividade e fazer com que esta não os possa sacrificar de forma arbitrária.

É notória, por fim, a preocupação com a consciencialização dos cidadãos, presente em diretrizes como a realização de um mínimo de uma ação de formação de trabalhadores por ano e a sensibilização de clientes com vista à prevenção do desperdício alimentar – no âmbito dos contratos de aquisição de produtos alimentares, serviço de catering e serviços de venda automática –, e a exigência de realização de uma ação de formação e sensibilização dos seus trabalhadores, por ano, sobre boas práticas ambientais – no contexto dos contratos de aquisição de serviços de higiene e limpeza.

 

Considerações finais

 

É de referir que o acatamento de todos os critérios ecológicos aqui desenvolvidos será acautelado pelo conjunto de sujeitos que já fiscalizam e garantem, por norma, o cumprimento das normas aplicáveis à contratação pública: serão estes, com fundamento legal nos artigos 454º-A e 454º-B do Código dos Contratos Públicos, o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, o Tribunal de Contas, a Inspeção-Geral de Finanças e todas as outras entidades que forem dotadas de competências de inspeção e de controlo interno.

Como já dei a entender anteriormente, a utilização dos critérios ecológicos aqui presentes nos contratos públicos da Administração Pública apenas se aplicará aos procedimentos pré-contratuais e contratos que forem iniciados a partir do dia 1 de abril do próximo ano (o 1º dia útil do 2º trimestre de 2024).

Não obstante de tudo o que foi aqui abordado, a aplicação dos critérios ecológicos aos contratos públicos da Administração Pública do Estado não tem um peso absoluto. A aplicação dos critérios não poderá pôr em causa a aplicabilidade das normas técnicas vigentes em matéria de ambiente, saúde e segurança.

Para finalizar: sem esta última deixa, ficaria por reforçar a marca importantíssima que nos deixam os princípios constitucionais trabalhados ao longo deste post. Com eles, torna-se possível a visão, nada menos que justa, de que os atos que implicarem danos sérios no meio ambiente possam estar feridos de inconstitucionalidade.

 

Marta Cordeiro, n.º 65994


Bibliografia e Webgrafia


DA SILVA, Vasco Pereira (2002). Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente. Coimbra, Livraria Almedina, 1ª Edição.

DIAS, José Eduardo Figueiredo, OLIVEIRA, Fernanda Paula (2010). Noções Fundamentais de Direito Administrativo. Coimbra, Livraria Almedina, 2ª Edição.

RAIMUNDO, Miguel Assis (2013). A Formação dos Contratos Públicos – uma Concorrência Ajustada ao Interesse Público

https://dre.tretas.org/dre/5528632/resolucao-do-conselho-de-ministros-132-2023-de-25-de-outubro

Legal_Update_Definicao_dos_Criterios_Ecologicos_na_Contratacao_Publica.pdf (cnmf.pt)

https://files.dre.pt/1s/2023/02/03000/0019300224.pdf

florestas com certificação de gestão sustentável - Procurar (bing.com)

Queima de combustíveis fósseis representa 87% das emissões globais de CO2, diz relatório | Energia e Ciência | Um só Planeta (globo.com)

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