Ao abrigo do artigo 66º da Constituição, todos temos direito a um ambiente de vida ecologicamente equilibrado e é dever do Estado, com a devida colaboração dos cidadãos, assegurar o direito ao ambiente com um desenvolvimento sustentável; ainda mais concretamente, de acordo com a alínea g) do artigo 199º, cabe ao Governo praticar todos os atos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades coletivas.
No passado dia 25 de outubro, foi aprovada a Resolução do Conselho de
Ministros n.º132/2023, que teve como objetivo definir os critérios ecológicos
aplicáveis aos contratos celebrados pelas entidades da Administração Direta e Indireta
do Estado. O presente post, na esperança de conseguir transmitir alguns conhecimentos
de Direito Administrativo e Direito do Ambiente, servirá de humilde comentário
a esta Resolução, que produzirá os seus efeitos a partir do segundo trimestre
de 2024, sendo assim aplicável aos procedimentos que forem iniciados a partir
dessa mesma data.
A ECO360 e
a necessidade deste diploma
Inicialmente, é feita uma alusão à ECO360 - a Estratégia Nacional para
as Compras Públicas Ecológicas para o período 2030 – que fora aprovada anteriormente
pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 13/2023, de 10 de fevereiro. Parece
ser interessante falarmos brevemente sobre esta figura: a Estratégia
Nacional para as Compras Públicas Ecológicas (ENCPE).
Importa-nos falar do seu nascimento e progresso. Foi criada em 2007
a primeira ENCPE através da Resolução do
Conselho de Ministros n.º 65/2007, de 7 de maio, com fins definidos para o
período compreendido entre 2008 e 2010. Este instrumento teve um peso bastante
relevante no Sistema Nacional de Compras Públicas (SNCP), tendo-o modelado com
a incorporação inovadora de alguns critérios ambientais em acordos-quadro para
categorias de bens e serviços e, à luz disso, influenciou positivamente os
processos de contratação realizados pelas entidades públicas nesse período de
tempo. Assim, em 2016, foi aprovada uma nova ENCPE pela Resolução do Conselho
de Ministros n.º 38/2016, de 29 de julho: a ENCPE 2020. Esta nova versão foi
mais inclusiva, teve uma área de aplicação mais alargada e por isso
evidenciou-se mais a sua eficácia em comparação com a anterior.
Após esta breve e modesta explicação, parece claro: a ECO360 é, à
semelhança das versões anteriores, nada mais, nada menos, que uma ferramenta
que fora criada para disciplinar as entidades integradoras da Administração
Direta e Indireta do Estado, o setor empresarial do Estado e a oferta de produtos, serviços e obras, com vista a reduzir os seus
impactos ambientais. Com a mesma, o Governo pretende que a contratação pública
sustentável seja um ponto fulcral da decisão de produção e consumo sustentável
e que se fortaleça a Contratação Pública Ecológica – o que ajudará fazer
cumprir os objetivos das políticas ambientais, a promover um modelo de
desenvolvimento económico sustentável que permita riqueza e emprego e, ainda, alimentar
uma conduta sustentável de excelência da Administração Pública que influencie as
atitudes das empresas e dos cidadãos.
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 132/2023 nasceu da
necessidade de serem criadas condições que efetivassem um caráter obrigatório da
adoção dos critérios ecológicos esboçados pela ECO360; critérios estes que,
adicionalmente, também são acolhidos por outros diplomas que se alinham com
este, conforme mencionado na Resolução, como o Plano de Recuperação e
Resiliência – que prevê a modernização do Sistema Nacional de Compras Públicas,
a introdução de critérios ecológicos obrigatórios a ter em conta na aquisição
de bens e serviços e a integração de materiais biológicos e sustentáveis –, o
Código dos Contratos Públicos – que trata como princípios específicos da
contratação pública a sustentabilidade e o cumprimento das normas aplicáveis em
matéria ambiental, juntamente com outras normas de Direito Internacional – e a
Lei de Bases do Clima – que consolida objetivos, princípios e obrigações para
os diferentes níveis de governação para a ação climática através de políticas
públicas e instaura novas disposições em termos de política climática.
A presente Resolução visa conseguir assim, manifestamente, a
concretização da ECO360, a prossecução da sustentabilidade, o cumprimento dos
objetivos das políticas ambientais, e contribuir para a eliminação de constrangimentos
e obstáculos à valorização dos recursos biológicos para o desenvolvimento da
bioindústria sustentável e circular.
Aspetos iniciais
Já terei mencionado,
até aqui, que estes critérios serão aplicáveis a todos os contratos celebrados
pela Administração Pública (Direta e Indireta) do Estado - resta falarmos das
entidades que fazem parte dela.
Como já tivemos oportunidade de aprender nas aulas, a Administração Direta do Estado -regulada pela Lei n.º 4/2004, de 15 de janeiro, que define os princípios e normas a que obedece a sua organização - engloba toda a atividade administrativa prosseguida diretamente pelos próprios serviços administrativos do Estado, que estabelecem entre si uma relação hierárquica. Distinguem-se, dentro dela, os órgãos centrais – que têm competência em todo o território nacional – e os órgãos periféricos – cuja competência se limita a uma área circunscrita (sendo que estes últimos podem, ainda, ser classificados como internos ou externos). Os principais órgãos centrais são os Ministérios, as Direções-Gerais, as Direções Regionais, os Gabinetes e as Secretarias-Gerais.
A Administração Indireta é aquela que continua a prosseguir os fins do Estado mas é realizada por outras entidades que não fazem parte do Estado. O Professor Doutor Paulo Otero chamava a estas entidades, nas suas aulas teóricas, de “pessoas coletivas instrumentalizadas”: têm personalidade jurídica própria e autonomia (administrativa e financeira), sendo responsáveis pelos seus atos. A Administração Indireta do Estado tem uma parte Pública e uma parte Privada; integram a Administração Indireta Pública do Estado, manifestamente, os Institutos Públicos e as Entidades Públicas Empresariais. Os Institutos Públicos (regulados pela Lei n.º 3/2004, de 15 de janeiro, que configura a Lei Quadro dos Institutos Públicos) são pessoas coletivas sem fins lucrativos que se repartem entre serviços personalizados e fundações públicas; as Entidades Públicas Empresariais (regidas pelo Decreto-Lei n.º 133/2013, de 03 de outubro), por sua vez, consistem em empresas públicas concretizadas sob forma jurídico-pública.
Será igualmente
importante entender o que é um critério de adjudicação. Um critério de
adjudicação é o método que uma entidade adjudicante – que será a parte contratante
– define e utiliza para avaliar as várias propostas apresentadas pelos
concorrentes num procedimento de contratação pública e optar por aquela que for
economicamente mais vantajosa num dado contrato público. O Código dos Contratos
Públicos, no seu artigo 74º, prevê que o critério de adjudicação pode ter uma
de duas modalidades: multifator – sendo o critério de adjudicação densificado
por um conjunto de fatores, e eventuais subfatores, correspondentes a diversos
aspetos da execução do contrato a celebrar – ou monofator – sendo o critério de
adjudicação densificado por um fator correspondente a um único aspeto da
execução do contrato a celebrar, designadamente o preço.
Nos princípios
gerais, alerta-se para a preferência, no ato da contratação pública, pela
modalidade multifator e pela inclusão de fatores de sustentabilidade ambiental,
pela criação de standards mínimos a nível de sustentabilidade ambiental nas
prestações e pelas prestações certificadas por sistemas mais reconhecidos e
confiáveis.
O conteúdo da Resolução e os
princípios que o fundamentam
Partindo
para os critérios ecológicos em específico, em vários pontos, a modalidade
multifator do critério de adjudicação é apresentada como obrigatória: a
entidade tem de utilizá-la, a não ser que isso implique a existência de uma restrição
notória da concorrência. Logo na primeira tipologia de contratos (os contratos
de aquisição de peças de vestuário), surgem critérios ecológicos eventuais,
relativos a aspetos na execução do contrato e nas especificações técnicas –
sendo que este tipo de critérios não é minimamente obrigatório –, mas antes
disso, por exemplo, vemos cinco fatores do critério de adjudicação e, enquanto os
critérios relativos à Produção Biológica são de natureza voluntária – isto é, a
entidade só está obrigada à adoção do critério caso opte pela adoção de
critérios ecológicos –, todos os outros
são recomendáveis – o que significa que a aplicação só pode ser dispensada mediante
fundamentação.
A maioria – senão
a totalidade – dos critérios presentes nesta Resolução tem como base, como se
poderá concluir, um princípio fundamental de Direito do Ambiente: o princípio
da prevenção, que encontra o seu fundamento legal na alínea a) do artigo
66º/2 da Constituição. Este princípio reside na necessidade de o Estado agir de
forma preventiva de modo a controlar a poluição, evitando o seu aumento e o alastramento
dos seus efeitos negativos no meio ambiente. Torna-se mais identificável e evidente,
por exemplo, nos critérios ecológicos que foram criados relativamente aos contratos
de aquisição de veículos e contratos de aluguer operacional de veículos: a ponderação
do custo da exploração do consumo de energia gerado pelo veículo durante o seu
tempo estimado de vida, do custo relativo ao consumo de combustíveis fósseis, do
custo da exploração das emissões poluentes e do custo do nível de emissões
poluentes, bem como a fixação de um nível máximo de emissões poluentes para
veículos com motorização a combustão, em especial para emissões de CO2.
Com estas regras – todas elas obrigatórias – o Governo ambiciona reduzir
substancialmente a queima de combustíveis fósseis, que representa nos dias de
hoje 87% das emissões globais de CO2 e, precisamente, a evitar que a
atividade administrativa acabe por gerar lesões ambientais ainda mais sérias do
que aquelas que já temos e são por nós conhecidas. Nesta linha de pensamento,
foram também criadas regras acerca da produção de eletricidade através de fontes
de energia renováveis para os contratos de aquisição de eletricidade (que incluem
a aquisição para postos públicos de eletricidade para mobilidade elétrica) e da
capacidade para a produção de sistemas solares fotovoltaicos (para os contratos
de aquisição de serviços de certificação energética, auditoria energética e
projeto e de aquisição e instalação de sistema fotovoltaico de autoconsumo).
Mas a ratio
do princípio da prevenção, como elucida o Professor Doutor Vasco Pereira da
Silva na obra de sua autoria Verde Cor de Direito – Lições de Direito do
Ambiente, será evitar a produção de efeitos danosos para o ambiente, não servindo
o mesmo para confrontar lesões já ocorridas. Para reagir face a estas últimas,
entra em ação o princípio do poluidor-pagador, explicitado no artigo
174º/2 do Tratado da União Europeia e protegido pela Constituição, uma vez que
é um resultado essencial e direto da norma da alínea h) do seu artigo 66º/2. A
referida alínea consagra a obrigação do Estado de garantir que a política
fiscal compatibiliza o desenvolvimento com a proteção do ambiente e da
qualidade de vida – e a forma de concretizar isto passará, fundamentalmente,
pela responsabilização a nível fiscal dos das entidades que lucram com uma dada
atividade por elas exercida que traz consequências ambientais e prejudica,
desta forma, a sociedade no seu todo. Não me alongarei acerca deste princípio, uma
vez que não tem tanta incidência na Resolução que é protagonista deste post.
Direi apenas que são diretrizes como as dispostas no âmbito da execução dos
contratos de aquisição de serviços de certificação energética, auditoria
energética e projeto e de aquisição e instalação de sistema fotovoltaico de
autoconsumo que abrem portas à sua concretização, mantendo o proponente ciente
de que tem de cumprir toda a legislação ambiental aplicável, de que será
responsável por garantir o cumprimento integral das medidas de prevenção e
mitigação ambiental (alíneas a) e b)) e
de que será ele a entidade vista como produtora e ficará responsável pelos
resíduos que criar – deixando em aberto a eventualidade de estes resíduos virem
a causar danos ambientais, no caso de não serem tomadas as diligências acertadas,
e o proponente vir a ser responsabilizado por esses danos. A atribuição
financeira que este preceito retrata deverá abrigar não só os danos causados,
mas também as medidas preventivas que auxiliem ao entrave ou minimização de condutas
semelhantes de risco para o ambiente, e os custos da reconstituição da situação,
na medida em que esta for possível – considerando que, embora seja concebível agir
de forma a combater e tentar reduzir os prejuízos que a dita atividade terá provocado
no campo ambiental, não será possível neutraliza-los na sua totalidade em
muitos casos, diria que estas medidas têm, a meu ver, um caráter maioritariamente
compensatório; é também percetível um sentido sancionatório, na medida em que as
entidades tentarão reduzir os seus impactos ambientais para não terem de pagar
estas compensações financeiras.
Um outro
princípio fundamental com preceito constitucional em matéria do ambiente é o princípio
do aproveitamento racional dos recursos disponíveis, que reside na alínea
d) do artigo 66º/2 da CRP. Concretiza-se em critérios como o da obtenção de
madeira através de florestas com certificado de gestão sustentável (que é um
critério ecológico obrigatório relativo a contratos de aquisição de madeira e
cortiça e contratos de empreitada de obras públicas que envolvam a utilização
de madeira e cortiça) – este é essencial
na medida em que esta matéria-prima é um recurso limitado e não renovável. As
práticas nestas florestas diferenciam-se, para lá de se alinharem com a
legislação aplicável, pela conservação da biodiversidade e pelo maior controlo
e uso mínimo de químicos, obtendo uma produção mais sustentável. Ao obrigar à
adoção de critérios ambientais, como este, na tomada de decisões por parte das
entidades públicas, há a intenção de alertar para a escassez dos bens e interditar
atividades que levem ao esbanjamento ou ao desgaste sério dos recursos naturais
de que ainda dispomos (pretende-se, para além disso, alguma seriedade e transparência
dos proponentes, no critério seguinte, tendo estes de comprovar a origem das
matérias). O mesmo sucede em vários outros pontos da Resolução, como na menção
da utilização de um teor mínimo de fibras recicladas na execução de contratos
de aquisição de peças vestuário (sem prejuízo de este critério não ser
absolutamente obrigatório, sendo recomendável) e nas medidas acerca do papel
impostas para os contratos de aquisição de papel para fotocópia e impressão.
Falemos agora
do quarto (e último) princípio fundamental ambiental que tem sede na nossa
Constituição: o princípio do desenvolvimento sustentável, presente
também no artigo 66º/2. Este preceito faz exigir que as decisões jurídicas de
desenvolvimento económico sejam bem fundamentadas a nível ecológico; é crucial
que sejam tomados em linha de consideração os danos ecológicos que uma
determinada medida possa trazer e que não sejam apenas vistas as vantagens económicas
que dela pudessem advir. Esta ideia está presente logo desde o início, com o
estabelecimento da natureza recomendável dos critérios ecológicos: exigir a uma
entidade pública que fundamente a não adoção de determinado critério é,
exatamente, obrigá-la a refletir, a ponderar os custos ecológicos da sua
atividade e fazer com que esta não os possa sacrificar de forma arbitrária.
É notória, por
fim, a preocupação com a consciencialização dos cidadãos, presente em
diretrizes como a realização de um mínimo de uma ação de formação de
trabalhadores por ano e a sensibilização de clientes com vista à prevenção do
desperdício alimentar – no âmbito dos contratos de aquisição de produtos
alimentares, serviço de catering e serviços de venda automática –, e a
exigência de realização de uma ação de formação e sensibilização dos seus
trabalhadores, por ano, sobre boas práticas ambientais – no contexto dos contratos
de aquisição de serviços de higiene e limpeza.
Considerações finais
É de referir
que o acatamento de todos os critérios ecológicos aqui desenvolvidos será acautelado
pelo conjunto de sujeitos que já fiscalizam e garantem, por norma, o cumprimento
das normas aplicáveis à contratação pública: serão estes, com fundamento legal
nos artigos 454º-A e 454º-B do Código dos Contratos Públicos, o Instituto dos
Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, o Tribunal de Contas, a
Inspeção-Geral de Finanças e todas as outras entidades que forem dotadas de competências
de inspeção e de controlo interno.
Como já dei a
entender anteriormente, a utilização dos critérios ecológicos aqui presentes
nos contratos públicos da Administração Pública apenas se aplicará aos
procedimentos pré-contratuais e contratos que forem iniciados a partir do dia 1
de abril do próximo ano (o 1º dia útil do 2º trimestre de 2024).
Não obstante
de tudo o que foi aqui abordado, a aplicação dos critérios ecológicos aos
contratos públicos da Administração Pública do Estado não tem um peso absoluto.
A aplicação dos critérios não poderá pôr em causa a aplicabilidade das normas
técnicas vigentes em matéria de ambiente, saúde e segurança.
Para
finalizar: sem esta última deixa, ficaria por reforçar a marca importantíssima
que nos deixam os princípios constitucionais trabalhados ao longo deste post.
Com eles, torna-se possível a visão, nada menos que justa, de que os atos que
implicarem danos sérios no meio ambiente possam estar feridos de inconstitucionalidade.
Marta Cordeiro, n.º 65994
Bibliografia e Webgrafia
DA SILVA, Vasco Pereira (2002).
Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente. Coimbra, Livraria
Almedina, 1ª Edição.
DIAS, José Eduardo Figueiredo,
OLIVEIRA, Fernanda Paula (2010). Noções Fundamentais de Direito
Administrativo. Coimbra, Livraria Almedina, 2ª Edição.
RAIMUNDO, Miguel Assis (2013). A
Formação dos Contratos Públicos – uma Concorrência Ajustada ao Interesse
Público
https://dre.tretas.org/dre/5528632/resolucao-do-conselho-de-ministros-132-2023-de-25-de-outubro
Legal_Update_Definicao_dos_Criterios_Ecologicos_na_Contratacao_Publica.pdf
(cnmf.pt)
https://files.dre.pt/1s/2023/02/03000/0019300224.pdf
florestas
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