Introdução
O Acórdão Blanco, proferido no dia 18 de Fevereiro de 1873, pelo Tribunal de Conflitos francês, foi a primeira tentativa de esclarecer a obrigação de indemnizar, por prejuízos causados a particulares, por parte do Estado, bem como a competência dos tribunais administrativos para julgar conflitos quando se verificar o envolvimento por parte do Estado.
Caso
Consistia no atropelamento de Agnés Blanco, uma criança de 5 anos, por um vagão da Companhia Nacional da Manufatura do Tabaco (CNMT) em Bordéus. Em consequência do atropelamento, a perna da criança teve de ser amputada. Os pais dirigiram-se ao Tribunal de Bordéus, de modo a interpor uma ação de indemnização contra o Estado alegando responsabilidade civil pela conduta dos funcionários. O Tribunal de 1ª Instância determina que não tem competência para a resolução do conflito. Para além disso, esclarece que mesmo que fosse competente, não tinha norma a aplicar ao caso, uma vez que o Código de Napoleão só podia ser aplicado entre iguais, o que claramente não acontecia uma vez que a CNMT era uma empresa pública, pelo que envolvia Administração Pública e, portanto, não havia norma especial a aplicar. Insatisfeitos, os pais dirigem-se à jurisdição administrativa. Importa salientar que, quem os recebeu foi o Presidente da Câmara que se considera, também, incompetente pois está em causa uma operação e não um ato administrativo. Isto evidencia desde logo uma problemática que vai colmatar na tese defendida pelo Senhor Professor Doutor Vasco Pereira da Silva relativamente à existência de dois traumas no Direito Administrativo que, até aos dias de hoje, se têm refletido. O Senhor Professor, esclarece este Acórdão como o segundo trauma do Direito Administrativo, correspondendo ao limite imposto à justiça por parte da Administração, durante o Estado Liberal. Na prática, o primeiro trauma enunciado, esclarece a impossibilidade dos tribunais julgarem a Administração, pelo que esta, exercia autocontrole. Ora isto põe em causa o princípio da separação de poderes que serve de alicerce aos ideais liberais e Estado Democrático, que se opunha ao Estado de Polícia, autoritário. Na verdade, apesar dos ideais liberais defendidos, o princípio da separação de poderes não produzia integralmente os efeitos devidos, como verificado. Desta forma, a administração durante o Estado Liberal, caracterizava-se também por ser autoritária e assemelhar-se em grande parte ao Estado de Polícia cujo objetivo seria afastar. O segundo trauma, caracterizado pelo Acórdão em questão, demonstra que a Administração atua para pôr em causa os direitos dos particulares (administração agressiva).
Dado que ambas as jurisdições se consideram incompetentes, o Tribunal de Conflitos intervém para decidir qual a jurisdição competente, como mencionado. O Acórdão Blanco determina que a competência é da jurisdição administrativa, ainda que esclareça que não há norma aplicável e a necessidade de criação de uma norma especial neste tipo de conflitos.
Por fim, o Conselho de Estado determina conceder uma pensão vitalícia a Agnés Blanco.
Conclusão
O presente caso tem extrema importância para o Direito Administrativo, uma vez que se estabelece a existência de direitos por parte dos particulares perante a Administração. Mais importante que isso: reconhece-se a ideia de sujeito de direito, fundamental para o Estado de Direito Democrático e para o caminho que o Direito Administrativo veio a percorrer, mais tarde no Estado Social e no Estado Pós-Social.
Apesar da distinção do Senhor Professor Doutor Vasco da Silva Pereira referente aos traumas, à primeira vista, o segundo trauma poderá considerar-se um seguimento do primeiro, e não isoladamente um trauma, uma vez que parece apresentar melhorias, já que a Administração foi de facto condenada pela conduta dos quatro funcionários da Companhia Nacional de Manufatura de Tabaco. Ainda assim, a gravidade de todo o processo, permite a distinção clara entre os dois traumas. Por outras palavras, este trauma poderá ser considerado como tal, uma vez que os pais de Agnés, em busca da justiça, tiveram incessantemente de a procurar, o que não deveria acontecer. Desta forma, o segundo trauma é, verdadeiramente um trauma, não só por evidenciar a despreocupação, ainda evidente, por parte da Administração com os direitos dos particulares, mas pela própria situação de, mediante um Estado fundado em princípios liberais que deveria, sobretudo atender às liberdades individuais, pôr em causa essas mesmas liberdades, quando o Estado comparece no conflito.
- Bibliografia
Pereira da Silva, V. (2016). O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo (2ª edição, 2009 ed.)
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