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segunda-feira, 27 de maio de 2024

DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA


1. Introdução - Em que consiste a discricionariedade administrativa?

        O conceito de "discricionariedade" é objeto de diferentes, e às vezes conflituosas, interpretações doutrinárias, muitas vezes acompanhadas de mal-entendidos. A discricionariedade refere-se, simplesmente, à ideia de escolha, de fazer algo quando se poderia ter feito outra coisa, isto é, mais especificamente, quando a lei permite que se faça algo diferente. 

Essa questão ocorre dentro do domínio da legalidade administrativa, contrariamente ao que acontece com o que diz respeito às relações entre particulares, nas quais as decisões não são discricionárias, mas arbitrárias, pois não são aferidas com base em normas de competência. Os cidadãos atuam no domínio da licitude, podendo fazer tudo o que a lei não proíbe e sem prejudicar os outros, sem necessidade de justificar suas escolhas.

    Por outro lado, uma decisão discricionária, embora envolva escolha, deve respeitar certos parâmetros e limites, tendo que basear-se numa racionalidade própria, uma vez que os órgãos da Administração Pública são estabelecidos para seguir certos interesses, dotados de poderes jurídicos específicos e obrigados a respeitar determinados princípios.

    Desta forma, a maioria das decisões administrativas, ao contrário das decisões dos particulares, precisa ser fundamentada. Suas razões devem ser conhecidas para que possam ser avaliadas em relação aos interesses que devem perseguir, e estão sujeitas a algum tipo de controlo.

    A discricionariedade nunca permite a tomada de qualquer decisão. Ela é parametrizada, ou seja, condicionada. Os parâmetros que devem guiar a escolha discricionária podem delimitar um espaço maior ou menor, conferindo à decisão um grau variável de liberdade. Quanto maior for a liberdade deixada ao decisor, menores serão as restrições da decisão, ou seja, os aspetos desta condicionados de forma mais ou menos precisa pela lei.

    Discricionariedade e vinculação são, portanto, dois elementos presentes em qualquer decisão administrativa, em proporções variáveis. Para descrever esta realidade, dizemos que qualquer decisão envolve o exercício de poderes vinculados e poderes discricionários.


    Segundo João Caupers, podem ser identificados dois grandes tipos de vinculações:

a) Vinculações absolutas: Estabelecidas de forma direta ou indireta por regras jurídicas estritas, que, se contrariadas, invalidam a decisão. 

b) Vinculações tendenciais: Derivam de normas constitucionais que estabelecem princípios orientadores da atividade administrativa, condicionando qualquer decisão administrativa que permita alguma liberdade. 


2. Evolução do entendimento acerca do conceito relativo à discricionariedade administrativa

2.1. Professor Marcello Caetano

O Professor Marcello Caetano tinha uma visão rígida no sentido de que havia uma separação entre vinculação e discricionariedade, distinguindo claramente entre atos discricionários e atos vinculados. Segundo ele, a lei ou estabelecia critérios específicos de atuação para a Administração (atos vinculados) ou permitia uma margem de liberdade (atos discricionários). Portanto, as situações eram bem definidas: ou havia cumprimento estrito da lei, ou havia liberdade de ação. Se a lei estipulava critérios, estes deviam ser seguidos pois, caso contrário, a Administração tinha liberdade de ação.

A discricionariedade representava, na visão do professor, uma exceção ao princípio da legalidade, sendo que o poder discricionário era um poder à margem da lei, não sujeito aos parâmetros legislativos nem ao controlo judicial. Esta era uma ideia clássica do século XIX, que foi concretizada em Portugal no século XX pelo pensamento de Marcello Caetano. Esta perspetiva refletia uma visão autoritária da legalidade, onde a legalidade plena só existia nos casos de vinculação estrita e não na possibilidade de escolha.

Ele reconhecia que poderiam existir limitações procedimentais, chamadas de "processo administrativo gracioso", que estabeleciam requisitos para a tomada de decisão. Ele também considerava que os poderes discricionários, embora livres, deveriam respeitar fins legais, sob pena de ilegalidade, sendo que esta consequência juridica ocorreria se a Administração deixasse de perseguir fins de interesse público para atender a fins privados (o que o Professor Freitas do Amaral chamou de corrupção) ou se substituísse um fim administrativo por outro não previsto legalmente.

No seu entender, existiam dois tipos de vínculos que, externamente, não eram considerados internos, já que a discricionariedade não poderia ser vista do ponto de vista interno. Essa ideia de reserva de lei, posteriormente, foi utilizada pelo Professor Sérvulo Correia, mas já aparecia nos trabalhos de Marcelo Caetano. Ele argumentava que mesmo os atos discricionários poderiam ser controlados através de dois vínculos: o vínculo da competência e o vínculo do fim. Ao falar sobre o vínculo do fim, Marcelo Caetano dava um passo à frente em relação a Otto Mayer e seus contemporâneos, ao afirmar que os objetivos da atuação administrativa são obrigatórios e merecem ser controlados.


2.2. Professor Freitas do Amaral

O professor Freitas do Amaral trouxe uma nova perspectiva ao Direito Administrativo ao afirmar que não existem atuações totalmente discricionárias ou totalmente vinculadas, sendo necessário combinar ambos os aspetos. No entanto, ele ainda considerava que a discricionariedade era um poder livre, permitindo à Administração agir conforme entendesse, o que contradizia a ideia de que qualquer ato possui componentes discricionários e vinculados. 

Esta abordagem marcou uma evolução, mas ainda não refletia totalmente a realidade do Direito Administrativo moderno. De salientar que, nos anos 80, Freitas do Amaral começou a defender que o poder discricionário é um poder jurídico, sem liberdade absoluta, ajustando sua visão anterior, predominante entre os anos 60 e 80, à evolução do Direito Administrativo.

Nesta abordagem, o controlo sobre a atuação administrativa é reforçado em relação ao que era proposto pelo Professor Marcelo Caetano, visto que, para além do controlo sobre competência e procedimento, Freitas do Amaral defendia que os princípios constitucionais aplicáveis à Administração também estabeleciam limites materiais ao exercício do poder. Embora princípios como o da igualdade, imparcialidade e da justiça fossem inicialmente mais restritos, Freitas do Amaral contribuiu para ampliá-los progressivamente, tornando-os mais exigentes constitucionalmente. Assim, ele via a submissão da Administração à Constituição como uma garantia de que os princípios constitucionais nunca seriam desrespeitados, representando uma forma adicional de controlo sobre o exercício do poder discricionário.

O entendimento de Freitas do Amaral sobre o poder discricionário ia além da ideia de que certos poderes são totalmente discricionários ou vinculados. Ele considerava que essa distinção não captava completamente a complexidade do poder discricionário. Além disso, Freitas do Amaral restringia a limitação dos princípios apenas a alguns princípios constitucionais, ignorando a possibilidade de surgimento de princípios decorrentes de outras fontes normativas. Ele também limitava a discricionariedade apenas à decisão final, esquecendo que a aplicação do direito ao caso concreto também envolve escolhas. Por exemplo, quando uma câmara municipal decide demolir um prédio em ruínas, a interpretação de "prédio em ruínas" pode variar dependendo da situação específica, mostrando que a discricionariedade não se limita apenas à decisão final, mas também à aplicação da norma.


2.3. Professor Sérvulo Correia

Com Sérvulo Correia, a compreensão da discricionariedade expandiu-se. Além da discricionariedade na decisão, passou-se a reconhecer a discricionariedade na aplicação da norma, o que implica dois momentos discricionários na atuação administrativa. Isso amplia os parâmetros e as possibilidades de controlo. No entanto, contraditoriamente, Sérvulo Correia fala em "margem de livre apreciação" e "margem de livre decisão", sugerindo uma suposta reserva da administração. 

No entanto, essa ideia de reserva não faz sentido na visão do professor Vasco Pereira da Silva, pois o poder discricionário é essencialmente um poder de cumprimento da lei, uma derivação do princípio da legalidade, como também afirmado por Sérvulo Correia, logo a administração não age de forma livre, ao contrário dos particulares, mas opera dentro de uma vontade normativa construída de forma não arbitrária, estando sujeita às regras e princípios do Direito.


2.4. Professor Vasco Pereira da Silva

O professor defende que a discricionariedade não deve ser confundida com liberdade, ao contrário do que afirmam os Professores Freitas do Amaral e Sérvulo Correia, pois a Administração nunca age de forma livre, visto que se encontra sempre subordinada à busca do interesse público e ao cumprimento das leis. 

A "margem de manobra" que a Administração possui através da discricionariedade não pode ser comparada à liberdade individual: a vontade dos órgãos públicos é sempre normativa, o que significa que a Administração está vinculada pelos seus próprios atos e deve responder por eles. Já dizia o professor Vieira de Andrade, que a discricionariedade não representa uma liberdade, mas sim uma função jurídica, uma responsabilidade que não deve ser confundida com arbitrariedade, nem baseada em vontade pessoal. Isto é, a Administração toma sempre decisões jurídicas que concretizam e aplicam o ordenamento jurídico no caso concreto.

Segundo ele, cada poder administrativo exercido contém tanto aspetos vinculados como discricionários, que se manifestam em três momentos:

1) No momento da interpretação - ocorre quando a Administração faz escolhas pelas quais é responsável. Estas escolhas implicam responsabilidade, pois são limitadas pelo ordenamento jurídico.

2) No momento de apreciação - Obriga a tomar decisões porque, ao analisar os factos, exige a realização de operações jurídicas que podem variar em termos de discricionariedade. A lei pode determinar que a Administração avalie o valor de um bem com base no preço de mercado, uma operação matemática que permite alguma margem de escolha. Além disso, podem ser usados critérios técnicos ou de justiça, tornando necessário fazer escolhas ao aplicar as normas aos factos.

3) No momento da decisão - em que a Administração toma a decisão final sobre a situação em questão, considerando o caso concreto.

O Professor Freitas do Amaral distingue entre figuras afins do poder discricionário e discricionariedade imprópria, mas esta distinção é vista pelo professor Vasco Pereira da Silva como não tendo qualquer sentido uma vez que a discricionariedade envolve sempre uma margem de escolha dentro dos parâmetros legais, e todas as decisões jurídicas incluem elementos discricionários e vinculados.

O controlo do poder discricionário pelo tribunal não se limita ao poder vinculado, pois o tribunal pode julgar o exercício do poder discricionário, explicitando as vinculações a observar pela administração, e reduzir as opções disponíveis, mas sem substituir as escolhas da administração. Em suma, o controlo do poder discricionário envolve uma análise detalhada das vinculações legais e dos princípios jurídicos que balizam as escolhas da administração.


3. Princípios jurídicos e a sua relevância para o controle do poder discricionário

Os limites à atuação da administração pública são definidos pelos princípios do regime jurídico-administrativo, que são, em primeiro lugar, princípios constitucionais que regulam toda a atividade legal de um Estado. Isto também se aplica à atividade discricionária, que está sujeita a diversos limites impostos por esses princípios e deve segui-los rigorosamente para evitar a arbitrariedade administrativa.

Estes princípios, referidos no artigo 266, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e nos artigos 3º a 12º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), incluem a legalidade, a justiça, a prossecução do interesse público, a proporcionalidade, a razoabilidade, a igualdade e a imparcialidade, entre outros. Eles servem como barreiras para todas as ações administrativas, sejam elas vinculadas ou discricionárias.

O princípio da legalidade, em particular, ainda levanta questões quanto à sua violação no exercício do poder discricionário. No entanto, a discricionariedade deriva da lei, conforme aponta César Teixeira, afirmando que o poder discricionário é sempre um poder derivado da lei, ou seja, uma decisão baseada no poder discricionário só pode ser tomada se houver uma lei que a permita.

Outro princípio crucial é o da juridicidade, ou princípio da justiça, que exige que os atos administrativos, além de respeitarem o princípio da legalidade, também não violem outros princípios gerais de direito previstos na Constituição e na lei, sob pena de serem considerados arbitrários e sujeitos a revisão judicial.

Apesar da justiça ser considerada o princípio orientador dos demais princípios, é o princípio da proporcionalidade que fundamenta a maioria dos atos discricionários da administração. Não basta que a administração persiga o objetivo legal previsto visto que a decisão tomada deve ser adequada, necessária e proporcional.

Uma decisão será adequada se o meio utilizado for apto a alcançar o fim desejado, necessária se for o menos invasivo ou gravoso para o contribuinte, e proporcional (em sentido estrito) se houver uma relação equilibrada entre as vantagens da decisão e os sacrifícios decorrentes dela.


4. Controlo do poder discricionário

    As decisões podem ser contestadas por:

  1. Incompetência - A competência do órgão é sempre vinculada.
  2. Vício de forma - Falta de observação de formalidades essenciais antes de tomar a decisão, especialmente falta de fundamentação ou defeitos no procedimento.
  3. Violação da lei - Ofensa a limites impostos ao poder discricionário por lei ou auto vinculação da Administração, e em particular, violação de princípios constitucionais como igualdade, proporcionalidade, boa fé, justiça e imparcialidade.
  4. Defeitos da vontade - Como erro de facto, que é bastante comum.

    Portanto, o controlo jurisdicional não se aplica diretamente ao exercício do poder discricionário. Em vez disso, há um controlo administrativo de mérito sobre o uso do poder e um controlo jurisdicional de legalidade sobre o cumprimento das prescrições legais que condicionam o exercício dos poderes administrativos. O "desvio de poder" é uma ilegalidade típica do exercício de poderes discricionários fora do seu fim, mas não é a única ilegalidade possível.

    Segundo o Professor Freitas do Amaral, a forma mais eficaz de garantir um controlo efetivo do exercício do poder discricionário da Administração é aumentar o número de vinculações legais, ou seja, os aspetos vinculados, no exercício dos poderes administrativos.


Bibliografia 

Amaral, Diogo Freitas do. 2018. Curso de Direito Administrativo volume II. 4ªed. Coimbra: Almedina

Caupers, João, Introdução ao Direito Administrativo, 12º edição

Transcrições das aulas teóricas lecionadas pelo Professor Vasco Pereira da Silva

Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, 6ªedição, Coimbra, Almedina




Aluno: Rui Cardoso

Turma: B, subturma 15

Nº 68149



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