Acórdãos STA Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: Tribunal: Relator:
Descritores:
Sumário:
Nº Convencional: Nº do Documento: Recorrente: Recorrido: Votação: | 1515/00.0 TBLSB 28-05-2024 Maria Leonor Sebastião De Sousa, Alexandre Laurentino, Bernardo Dias, Jorge Costa, Marta Cordeiro
I– APRECIAÇÃO DOS FACTOS PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO ATO ADMINISTRATIVO INVALIDADES DO ATO FUNDAMENTAÇÃO AUDIÊNCIA PRÉVIA ESTADO DE NECESSIDADE
I - Ação intentada pela Associação de Cabeleireiros de Linha no sentido de trazer à luz da Lei a forma, em sua interpretação ilícita, de transformação, usufruto e venda posterior a terceiros por um valor comercial alegadamente desajustado da realidade de mercado, de um espaço municipal. II - Foram também alvo de total escrutínio jurídico as fases intermédias e subjacentes às referidas, nomeadamente, no que toca aos bens móveis (equipamento SARS COVID-19) e sua aquisição por parte da Câmara Municipal de Linha através da empresa municipal “Linha Mais Próxima”, bem como a contratação e pagamento dos salários de uma equipa de 30 cabeleireiros desta empresa que culminaram com a alienação do imóvel e consequente extinção dos postos de trabalho.
TATB000P455051 SCL670560303013/24 Associação de Cabeleireiros Câmara Municipal de Linha UNANIMIDADE |
Toda a matéria de facto já está pressuposta.
Matéria de Direito:
1. O Autor contesta a celebração de uma aquisição, transformação, usufruto e posterior alienação de um espaço municipal, utilizado como salão de cabeleireiro em pleno período de COVID-19 por parte do executivo camarário de Linha, com recurso à empresa municipal “Linha mais próxima”. Esta tramitação terá sido efectuada sem qualquer coincidência na sua implementação com as fases fundamentais para este procedimento administrativo, com especial enfoque no que diz respeito à audiência prévia do art.º 121º/1 do CPA e também à fundamentação das decisões (vide art.º 152º/1 do CPA).
2. Relativamente à fundamentação da decisão por parte dos responsáveis autárquicos, a mesma baseou-se meramente em inquéritos publicados nas redes sociais, na Internet e no próprio site da Câmara de Linha fazendo os responsáveis autárquicos considerar a transformação do espaço e funcionamento do cabeleireiro como uma consequência, não só para o bem-estar dos habitantes do concelho, como também um imperativo técnico, pois seriam os únicos com material de proteção e higienização nos níveis determinados pela DGS, o que, desde logo, inviabilizava qualquer laboração em segurança de outros cabeleireiros.
3. Os municípios podem exercer, auxiliar e colaborar com o tecido empresarial dos concelhos e manter assim, uma posição privilegiada nas opções de perspectivas de desenvolvimento sustentado das mesmas. As empresas locais podem ser aliados plenos do poder autárquico. Essa colaboração é necessária para o sucesso de ambas, mas aqui não se verificou. Houve uma conflitualidade entre os empresários em funções e a nova dinâmica empresarial por parte dos responsáveis camarários que não se complementaram, mas sim, antagonizaram.
4. No âmbito das competências atribuídas aos municípios, estes têm como fim a promoção e desenvolvimento de actividades de reconhecido interesse público local. As empresas locais, que são empresas municipais, têm como objetivo exclusivo a exploração de atividades de interesse geral ou a promoção do desenvolvimento local e regional. Todavia, com base nos artigos 6º, 20º e 45º da Lei nº 50/2012, de 31 de agosto, conclui-se que o objetivo do negócio estabelecido pela empresa municipal não se integra nas competências atribuídas por lei, não podendo prosseguir atividades de natureza exclusivamente administrativa ou com intuito exclusivamente mercantil, e, como refere o artigo 6º, embora possa existir uma finalidade lucrativa, não pode constituir a única e principal finalidade inerente à atividade de uma empresa local.
5. Quanto à criação do salão de cabeleireiros, terá ocorrido uma violação do princípio da Proporcionalidade, previsto no artigo 7º do CPA, positivado no art.º 266º/2 da CRP: a atuação falha em todos os testes que integram este princípio (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), começando logo pela vertente da adequação – não é razoável que, em plena pandemia, a forma de trazer alegria e combater os efeitos psicológicos do contexto pandémico passe pela instalação de um cabeleireiro uma vez que existiam outros cabeleireiros na altura da pandemia que podiam oferecer esse mesmo serviço ainda que, com o apoio do município no que toca à aquisição de bens móveis específicos, nomeadamente, os equipamentos de proteção individual, não afetando a vida quotidiana dos habitantes de Linha. Quanto à necessidade, seria de notar que a quantidade exagerada de funcionários levaria, efetivamente, a um maior risco de propagação da doença (mesmo usando equipamento especializado), podendo esta instalação pôr em causa a saúde pública e tornar-se lesiva para os particulares desnecessariamente. Por fim, no que diz respeito à proporcionalidade em sentido estrito, ao realizarmos uma ponderação entre custos e benefícios, iremos observar um custo excessivo, quer seja na medida do preço dos equipamentos e salários dos 30 funcionários que terão de ser pagos em contraste com a rentabilidade reduzida que o salão teria, quer seja no próprio risco de propagação da doença. A decisão de instalação do salão é altamente desproporcional.
6. O princípio da boa administração, previsto no art.º 5º do CPA também se encontra violado, uma vez que este princípio se traduz na ideia de que a Administração Pública deve pautar-se por critérios de eficiência, economicidade e celeridade, sendo constituído pelo vetor económico-financeiro e da celeridade, e na verdade a criação do salão não é de todo a favor da economicidade, pelo facto de se tornar excessivamente dispendioso. A violação deste princípio traduz-se numa ilicitude que gera responsabilidade civil e disciplinar, significando isso que não confere invalidade. Este é, ainda, um princípio sindicável. No âmbito da celeridade, era mais exequível equipar os cabeleireiros que já existiam do que construir um novo.
7. Na fase posterior de venda do imóvel, já em período pós-COVID-19, não foi possível apurar com rigor e exatidão os motivos subjacentes a uma venda manifestamente desproporcional com os valores do mercado, sendo verificado no decorrer da audiência que esse tema, em bom rigor retrata o cuidado na prossecução do interesse público (art.º 266º/1 da CRP) foi tratado de forma displicente.
8. Na mesma medida, não foram apurados por este Tribunal, no decorrer da audiência, indícios ou provas que nos possam conduzir a uma violação do princípio da imparcialidade no sentido negativo (art.º 69º e 73º do CPA). Contudo, no que toca ao princípio da imparcialidade em sentido positivo, considera-se que haja a violação do mesmo uma vez que não houve a participação dos interessados legalmente protegidos (art.º 12º do CPA), nem a colaboração dos mesmos com a Câmara de Linha (art.º 11º do CPA).
9. Com base no princípio da legalidade, em simbiose entre precedência e preferência de lei, a Câmara, ao abrigo do art.º 33º/1, alínea g) “Adquirir, alienar ou onerar bens imóveis de valor até 1000 vezes a RMMG” e alínea h) “Alienar em hasta pública, independentemente de autorização da assembleia municipal, bens imóveis de valor superior ao referido na alínea anterior, desde que a alienação decorra da execução das opções do plano e a respetiva deliberação tenha sido aprovada por maioria de dois terços dos membros da Assembleia Municipal em efetividade de funções”, não tem competência, sem a aprovação da Assembleia Municipal, para alienar, uma vez que não existe qualquer prova documental ou atas autárquicas junto aos autos, que certifiquem que a Assembleia Municipal se pronunciou sobre tais factos.
10. Não só a Câmara de Linha não tem competência, como também a alienação efetuada, em período pós-pandémico, a fundamentação padece de validade uma vez que a Câmara de Linha utiliza a situação pandémica como justificação para preterir todo o procedimento administrativo.
11. Com base na teoria do Professor Sérvulo Correia, o estado de necessidade afigura-se como uma permissão normativa de atuação administrativa discrepante das regras estatuídas, como modo de contornar ou atenuar um perigo iminente e atual para um interesse público causado por circunstância excecional não provado pelo agente, dependendo da juridicidade excecional de tal conduta da observância de parâmetros de proporcionalidade e brevidade e da indemnização dos sacrifícios por essa via infligidos a particulares.
12. Tendo em conta o exposto, a fundamentação, ao abrigo do art.º 153º/2 do CPA, é contraditória e obscura, porque a justificação é a de que o ato foi feito no período de exceção, o que não se veio a verificar.
13. Sendo assim, pela doutrina do Professor Vasco Pereira da Silva, a fundamentação considera-se como conteúdo essencial do procedimento, e também é considerado um direito fundamental dos particulares, dando azo à nulidade do ato referido, disposto no art.º 161º/2, als. d) e l) do CPA. Ao abrigo do art.º 162º/1, este ato não produz quaisquer efeitos jurídicos nem deste ato se consegue extrair o aproveitamento do mesmo, o que implicaria dizer que, ao abrigo do art.º 163º/5 do CPA, o ato não seria aproveitado por ser emanado em situação de exceção.
14. Na formação deste ato, como no da venda de um bem imóvel, foi dispensada a audiência prévia (art.º 121º/1 do CPA) e esta, no entendimento do Professor Vasco Pereira da Silva, é considerada um direito fundamental ao abrigo do art.º 267º/5 da CRP com o recurso à cláusula aberta dos direitos fundamentais dos artigos 16º e 17º da Lei Fundamental que recebe o art.º 41º da CDFUE numa ótica ascendente e, por exemplo, o art.º 12º e 121º/1 do CPA numa lógica descendente, que culminaria na declaração de nulidade do ato por força do art.º 161º/2, al. d) do CPA.
15. À semelhança do que aconteceu com o bem imóvel, a Câmara de Linha carecia de competência para a aquisição de equipamentos e sua venda, comprovado no art.º 33º, al. cc) do RJAL, não tendo também desta forma a empresa municipal competência para a realização do ato de alienação, pode-se observar novamente a violação do princípio da legalidade (art.º 3º/2 do CPA).
16. A aquisição de bens móveis, referente ao equipamento pela Administração Pública, i.e., o equipamento de proteção individual contra o SARS COVID-19, no art.º 20º do CCP, prescreve que se pode adotar um procedimento para a celebração de um contrato de aquisição de bens móveis por motivos de urgência e assim está sujeita a ajuste direto. Na altura da aquisição, o município de Linha encontrava-se em estado de exceção (entende-se por estado de necessidade), o que, por motivos de urgência, e por ajuste direto como é referido no art.º 20º do CCP, justifica a falta de concurso público. O concurso público é obrigatório nos termos do artigo mencionado, al. a)., mas, como se verifica o estado de exceção, é admissível por motivos de saúde pública e de prossecução do interesse público (art.º 266º/1 da CRP).
17. Este material justificar-se-ia caso tivesse sido entregue aos restantes cabeleireiros existentes do município de Linha.
18. Os contratos celebrados pela Administração Pública, quer sejam regulados pelo direito administrativo, quer pelo direito privado, a lei submete os mesmos a um especial procedimento de formação, regulado por normas decorrentes da UE. A conceção tradicional, que é refletida pelo art.º 20º/1 do CCP, caracteriza-se pela dicotomia contratos administrativos e contratos de direito privado, com a nova e moderna conceção, a dicotomia deixa de fazer sentido, o que faz com que se olhe para um regime comum de toda a contratação.
Existem dois factos que comprovam:
- O DUE ter deixado de automatizar, havendo apenas o regime dos contratos públicos;
- Em Portugal, o legislador transpôs as diretivas (art.º 112º/8 da CRP) e criou o CCP, onde se unificou, estando todos os contratos públicos neste regime jurídico, sendo que são todos estes atos fiscalizados pelo Tribunal Administrativo.
19. Relativamente ao preço do salão de cabeleireiros e o equipamento especializado foram vendidos a um preço claramente reduzido relativamente aos valores de mercado, o que pode criar elevadas suspeitas de favorecimento indevido ou ato de desvio de poder para fins de interesse privado (como compreendido, no ponto 8, no que toca ao princípio da imparcialidade, art.º 9º do CPA, mas este não ficou provado e art.º 161º/2, al. e) do CPA).
20. No negócio do salão de cabeleireiros e do equipamento, ficou por realizar uma das fases do procedimento formal do ato que implicava a transparência (art.º 10º do CPA) e a concorrência exigida, i.e., conforme os critérios subjacentes ao princípio da boa-fé.
21. Ponderados em sede de avaliação na audiência de julgamento bem como na ponderação efetuada em toda a tramitação do processo em apreço, nº 1515/00.0 TBLSB é passível de uma primeira dedução e posterior conclusão devidamente corroborada que:
a) Em todas as fases, desde a celebração de uma aquisição, transformação, usufruto e posterior alienação de um espaço municipal, foram preteridas as fases primordiais que vão desde:
i) Audiência prévia (art.º 121/1 do CPA);
ii) Fundamentação (arts.º 152º e 153º do CPA), na qual dão como justificação de se encontrarem em estado de exceção, quando não se verifica o mesmo;
iii) Ausência de notificação dos interessados (art.º 122º do CPA), porque o órgão responsável tem o dever de notificar os interessados para que, em prazo não inferior a dez dias, profiram sobre a matéria em causa;
iv) Relativamente aos pontos i) e ii), conforme doutrina supramencionada, são nulos pelo art.º 161º/2, als. d) e l) do CPA.
b) A violação dos princípios supramencionados geram a anulabilidade ao abrigo do art.º 163º/1 do CPA.
Decisão:
Conclui este douto Tribunal com base nos factos provados, seguir a decisão tomada, com idênticos pressupostos legais, a jurisprudência do STA, processo nº 03478/14.1, de 7 de abril de 2022, acórdão esse que não segue a jurisprudência maioritária, que os atos de alienação, aquisição, fruição e venda são, portanto, nulos:
a) Declara-se a nulidade da criação, pelo art.º 161º/2, al. l) do CPA, pela preterição do procedimento administrativo;
b) Declara-se a nulidade da venda, pelo art.º 161º/2, al. d) do CPA, pela ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental, a audiência dos interessados e os prejuízos subjacentes;
c) Declara-se a nulidade do ato por falta de fundamentação, ao abrigo do art.º 161º/2, al. e) do CPA.
Alunos:
Maria Leonor De Sousa
Alexandre Laurentino
Bernardo Dias
Marta Cordeiro
Jorge Costa
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