O Princípio da Legalidade e as suas exceções
Antes de mais, cabe-nos enquadrar o Princípio da Legalidade. Este encontra-se enquadrado no final do Artigo 266º da nossa Constituição da República Portuguesa (CRP), sendo que para o Professor Paulo Otero, o nº1 deste Artigo não pode ser lido sem a contemplação do Artigo 1º da CRP. Visto que a Administração Pública (AP) tem de estar subordinada à legalidade do nosso ordenamento jurídico, este princípio basilar encontra-se no Artigo 3º do Código de Procedimento Administrativo, sob pena de ilegalidade pois, todos os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito. O Princípio da Legalidade não abrange exclusivamente o respeito à lei em sentido formal, ou material, a Ap tem que se subordinar a todo o bloco legal (Constituição, lei ordinária, o regulamento, os direitos resultantes do contrato administrativo e de direito privado, de ato administrativo constitutivo de direitos, princípios gerais de Direito, Direito Internacional que vigore na ordem interna) e, caso haja uma violação por parte da AP, dá lugar a uma ilegalidade.
Este Princípio tem duas modalidades, a preferência de lei e a reserva de lei. Quanto à preferência de lei, esta diz-nos que não há nenhum ato inferior à lei que possa contrariar a legalidade e a reserva de lei espelha que nenhum ato, também de categoria inferior à lei, possa ser praticado sem fundamento no bloco de legalidade.
Posto isto, também conseguimos encontrar exceções ao Princípio da Legalidade, princípios estes que são alvos de discussão doutrinária, mas a maioria aponta as seguintes exceções: a teoria dos atos políticos, os poderes discricionários da Administração e, por último, a teoria do estado de necessidade, que será o foco deste trabalho. À partida, a teoria dos atos políticos não é, em rigor, uma exceção ao princípio da legalidade e o que nos transmite é que os atos de conteúdo político como não são suscetíveis de impugnação contenciosa perante os tribunais administrativos, poderiam ser atos ilegais. Basicamente, não é possível ir a tribunal obter anulação de um ato político ilegal devido ao facto do contencioso administrativo só se aplicar a atos administrativos e não sobre atos políticos, apesar de poder haver outras sanções em função dessa ilegalidade, como a responsabilidade civil por exemplo. Em relação ao poder discricionário da Administração, também não encontramos aqui uma verdadeira exceção ao princípio da legalidade, mas sim um modo especial de configuração da legalidade administrativa visto que só há poderes discricionários onde a lei assim os fixar e, para além disso, a lei vincula sempre o fim e a competência desses poderes. Disto isto e como foi antes referido, não há aqui uma verdadeira exceção neste poder discricionário da Administração em relação ao princípio da legalidade.
O Princípio do Estado de Necessidade Administrativa: exceção ao Princípio da Legalidade Administrativa?
Finalmente, e como foco deste trabalho, chegamos ao Estado de Necessidade Administrativa, que acontece quando uma emergência pública exige que a administração tome medidas fora dos procedimentos normais, ou seja, quando uma situação de crise ou desastre obriga o Governo a agir rapidamente, mesmo que sim signifique contornar certas regras gerais. Basicamente existem quatro condições para tal acontecer segundo o Professor Diogo Freitas do Amaral: temos de estar perante uma situação de real necessidade, ser crucial proteger o interesse público, a situação ser excecional e, por último, não haver alternativas menos invasivas disponíveis, seguindo o princípio da proporcionalidade. A figura do Estado de Necessidade surge em várias matérias do nosso ordenamento jurídico, como no Direito Civil (Artigo 339º do Código Civil) e no Direito Penal (Artigo 34º do Código Penal). No Direito Administrativo, diz-nos o Artigo 3º/2 do CPA que "desde que os seus resultados não pudessem ter sido alcançados de outro modo", referindo-se às situações em que se justificam os atos praticados em estado de necessidade.
Mais uma vez , esta regulação normativa não está a abrir uma exceção ao princípio da legalidade, porque a lei delimita claramente quando e como a administração pode agir em situações de necessidade. Na verdade, o Professor Freitas do Amaral e o Professor Marcelo Rebelo de Sousa preferem chamar a isso uma "legalidade excecional". Porém, o Professor Costa Gonçalves e o Professor Mário Esteves de Oliveira têm uma abordagem ligeiramente diferente e estabelecem três condições para a aplicação deste princípio: em primeiro lugar, a ocorrência de eventos graves e anormais em circunstâncias excecionais; em segundo lugar, a existência de um perigo iminente para um interesse público essencial, mais importante do que o sacrifício; e em terceiro lugar, a impossibilidade de lidar com esses eventos ou interesses usando meios normais de ilegalidade.
Em suma, é como se a lei dissesse "Em situações muito sérias e excecionais, podemos agir fora das regras normais, desde que seja absolutamente necessário e não haja outra maneira de lidar com a situação".
Um aprofundamento necessário ao Estado de Necessidade Administrativa
Atualmente, a disposição mais ampla sobre o tema da positivação está presente no Artigo 3º/2 do CPA. Essa disposição tem um sentido mais amplo do que anteriormente encontrada no campo do Direito Administrativo geral, especificamente no Artigo 9º/2, do Decreto-Lei nº48.051, de 21 de novembro de 1967. Anteriormente, a preocupação era principalmente com a responsabilidade por danos causados a particulares em situações de necessidade, o que implicava que a ação administrativa fosse considerada legal, mas a definição dos requisitos era circular, já que o estado de necessidade implícito era justificado pelo próprio estado de necessidade.
Além disso, a norma anterior, ao focar-se apenas nos danos causados a particulares, ignorava a violação das regras jurídico-administrativas que levavam a esses danos. Isso significava que a base para a teoria da necessidade administrativa era apenas implicitamente encontrada nessa disposição, sem autorização clara para comportamentos administrativos, não conformes. No entanto, apesar das suas limitações, essa era a principal referência no Direito Administrativo escrito para discutir a teoria da necessidade administrativa.
A redação do número 2 do Artigo 3º do CPA aproxima-se mais do conteúdo e do âmbito do estado de necessidade enquanto princípio geral de direito administrativo. Agora, a essência dessa figura desloca-se do causar danos a particulares (que era uma consequência eventual) para o elemento central da desconsideração (sem invalidar) de normas geralmente aplicáveis. O alcance não se limita mais apenas à responsabilidade administrativa, mas sim à desconsideração de qualquer regra estabelecida no CPA. Isso abrange uma gama muito mais ampla de assuntos, pois além do procedimento administrativo, inclui os princípios gerais, o funcionamento dos órgãos e os regimes de regulamento, atos e contratos administrativos. Não se limita apenas a esses aspetos, já que o estado de necessidade é corretamente considerado, na estrutura do CPA, como uma faceta do princípio da legalidade, aplicando-se, portanto, de acordo com o Artigo 2º, nº5, "a toda e qualquer atuação da Administração Pública...".
O estado de necessidade é considerado um princípio geral do direito administrativo, visto como uma faceta ou subprincípio do princípio da legalidade administrativa. Essa estreita ligação com a legalidade administrativa não decorre apenas do facto de o estado de necessidade ser tratado no mesmo artigo dedicado a esse princípio fundamental do CPA. O que importa é que, devido à permissão normativa, expressa ou implícita no sistema, a atuação em estado de necessidade não implica violação da legalidade, mas sim a adoção de uma forma de legalidade excecional. Quando os requisitos são cumpridos, a competência, o procedimento, forma ou conteúdo da ação administrativa, ou mesmo uma combinação desses elementos, passam a ser regulados pelo regime jurídico do estado de necessidade, em vez do regime geral, como meio necessário para proteger interesses essenciais previstos no Direito. Assim, como outros princípios gerais do direito administrativo, o princípio do estado de necessidade faz parte do conjunto de regras jurídicas. Ao servir como uma autorização para condutas permitidas, este princípio valida essas ações que, nesse contexto, não são ilegais. Não faria sentido afirmar que, através do estado de necessidade, o sistema jurídico permitiria a prática de atos ilegais, ou seja, uma exceção à legalidade. O que as normas jurídicas permitem é automaticamente válido e, agindo dentro da hierarquia das fontes de direito, o legislador exerce influência sobre a validade dos comportamentos que permite (e a invalidade daqueles que proíbe).
O Estado de Necessidade enquanto princípio geral de Direito Administrativo (exemplo da Lei nº169/99, de 18 de setembro)
O estado de necessidade é um princípio fundamental do direito administrativo que serve como ponto de interseção entre diferentes áreas do regime jurídico, sendo crucial para a consistência do Direito Administrativo como um todo, especialmente nos aspetos organizacionais, de responsabilidade administrativa e na execução de atos, contratos e decisões administrativas. Este princípio reflete a ideia de que o Direito Administrativo geral não deve ser excessivamente rígido, privilegiando a lei em detrimento de outras considerações. Contrariamente, ele reconhece a necessidade de flexibilidade e conciliação entre as normas jurídicas e as situações concretas, onde a estrita observância das leis pode ser prejudicial à sociedade como um todo.
No âmbito organizacional, um exemplo é o disposto no Artigo 68º, nº3, da Lei nº169/99, de 18 de setembro, que incide sobre as competências e o regime jurídico dos órgãos municipais e das freguesias (LAL). Este Artigo permite que, em circunstâncias excecionais e urgentes, o presidente de uma câmara municipal possa agir sem a necessidade de convocar extraordinariamente a câmara, preterindo temporariamente as normas sobre competências do órgão colegial. Isso possibilita uma resposta rápida e eficaz a ameaças que coloquem em risco interesses públicos, os quais são alvo das atribuições do órgão colegial. Assim, o estado de necessidade confere ao presidente da câmara um poder de substituição temporária e de curta duração, permitindo ações urgentes em situações excecionais, onde a convocação extraordinária da câmara não é viável.
Conclusão
Em suma, uma conclusão preliminar das discussões anteriores é que, no Direito Administrativo contemporâneo, o estado de necessidade não se limita apenas a situações extremas, como tem sido tradicionalmente associado, como períodos de guerra ou desastres naturais. A sua essência reside na ideia de justiça e na abdicação das normas gerias quando a estrita observância delas pode vir a causar danos significativos aos interesses públicos essenciais, superando os benefícios que a sua aplicação traria.
Portanto, o estado de necessidade representa um princípio jurídico fundamental que permite a suspensão temporária das normas regulares em prol de circunstâncias excecionais, sendo uma extensão do princípio da legalidade, mas com uma inclinação para a preservação dos interesses públicos mais cruciais.
Bibliografia
OTERO, Paulo, O Poder de Substituição Em Direito Administrativo- Enquadramento Dogmático- Constitucional II, Lisboa: Lex, 1995, p.392-399
AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, Volume II
REBELO DE SOUSA, Marcelo, Lições de Direito Administrativo
PEREIRA DA SILVA, Vasco, Transcrições das aulas teóricas de Direito Administrativo II, 2024
Maria Beatriz Cardoso Pereira, nº57352, subturma 15
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