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segunda-feira, 27 de maio de 2024

O PODER REGULAMENTAR DAS AUTORIDADES REGULADORAS INDEPENDENTES

1-Conceito de regulação

Regulação engloba toda a atividade do Estado que pressupõe uma intervenção na atividade económica e social, independentemente dos instrumentos utilizados (Estado como produtor direto de bens serviços). Pressupõe, portanto, um sistema de economia de mercado e livre concorrência capaz de prevenir e de corrigir as suas falhas de funcionamento, baseado num conjunto de regras que garantem o seu perfeito funcionamento.

Desta regulação surge a importância das entidades administrativas, nomeadamente as Autoridades Reguladoras Independentes (doravante ARI), cujas decisões regulatórias se referem à implementação administrativa de diretivas e de regras baseadas no conhecimento das especificidades e sensibilidades do setor regulado.


2- As Autoridades Reguladoras Independentes na organização administrativa

As autoridades reguladoras são entidades técnicas, e não políticas, sendo que esta característica é essencial para a continuidade no desempenho das suas atribuições. Um dos principais motivos para a criação das ARI é a tentativa de afastar a influência política das atividades reguladoras destinadas a setores sensíveis e estratégicos da sociedade, com vista a atenuar a concentração de poder e a adoção de medidas politicamente convenientes.

A conceção de entidades administrativas com independência em relação à Administração central para desempenharem funções regulatórias representa um novo modelo de administração. Para que a função regulatória funcione de maneira adequada, é necessário haver uma separação, onde as tarefas de orientação política da economia continuam encarregues ao Governo e ao Parlamento, mas onde as tarefas de regulação são confiadas a entidades públicas. Assim, as entidades reguladoras de caráter independente aparecem como uma alternativa viável para dividir com o Estado esta dualidade de papéis.

Para entender o poder abordado, é necessário delimitar o que é a Administração Independente (doravante AI) e onde as ARI estão constitucionalmente inseridas, além de demonstrar como são criadas, as suas principais características, finalidades e poderes.

Sendo já conhecidas as várias facetas da Administração Pública (doravante AP), cabe mencionar que a Administração Pública Independente (doravante API), se resume ao conjunto de órgãos do Estado e de pessoas coletivas públicas de caráter institucional que asseguram a prossecução de tarefas administrativas de incumbência do Estado sem estarem sujeitos aos poderes de hierarquia, de superintendência, ou tutela dos órgãos de direção política.

É, então, uma estrutura organizativa inovadora que atua com independência em relação aos órgãos políticos do Estado, de modo a garantir o respeito pelo princípio da imparcialidade pela AP no exercício das suas tarefas.

Esta comporta, ainda, uma heterogeneidade de modelos, inclusive com formatos jurídicos diferentes, no qual as ARI também estão inseridas, sendo definidas como pessoas coletivas de direito público pela Lei-quadro das entidades reguladoras (LQER).

A própria Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) menciona, no seu artigo 267º nº3, a possibilidade permitida à lei de criação de entidades administrativas independentes, conferindo-lhes legitimidade. No entanto, esta norma não permite que o legislador crie, deliberadamente e sem critérios, entidades independentes para a prossecução de um fim, havendo habilitação apenas quando exista um fundamento material legitimador dessa opção político-legislativa e sempre que for esse o modelo organizatório mais adequado à função a desempenhar.


3- A independência das ARI e o fenómeno do “accountability”

A independência é a principal característica que reveste as entidades atuantes no atual formato regulatório. Este poder isolado afasta o procedimento democrático de controle, uma vez que as entidades são dirigidas e operadas por um corpo altamente técnico e distante de outros problemas enfrentados pela sociedade.

De fora a amenizar os problemas desta suposta ausência de controle, a doutrina tem defendido mecanismos de “accountability”, que vão desde a prestação de contas nas comissões parlamentares até ao controlo social.

Apesar da sua independência, as ARI sofrem um controlo político mitigado. Ou seja, o Governo define e aprova os estatutos das entidades reguladoras após a realização de estudo prévio sobre a necessidade e o interesse público na sua criação, delimitando as competências, critérios de nomeação de dirigentes, missões e atribuições, poderes e demais elementos ( art 7º nº3 LQER).

Além dos limites referidos, as ARI estão sujeitas ao império da legalidade, o que subordina a sua autonomia aos limites da lei, que pode sempre redefinir o poder de agência ou determinar a respetiva extinção. Aliás, os seus atos estão sujeitos ao controle jurisdicional e, por isso, podem ser impugnados junto dos tribunais.

Outra forma de se exercer controle sobre as ARI consiste no facto de estas poderem ser chamadas pela comissão parlamentar competente a prestar contas das suas ações, nos termos do artigo 38º LQER.

Importa, ainda, referir a possibilidade de controle social feito através da participação da sociedade na atividade das ARI, vinculado à ideia de democracia de transparência no exercício do poder, prevenindo arbitrariedades.



4- Criação, principais características e finalidade

Como já foi mencionado, a Constituição prevê que as entidades administrativas independentes sejam criadas por lei. Os princípios e regras dessa criação, organização e o respetivo funcionamento dessas entidades estão estabelecidos na Lei nº 67/2013, a LQER, já antes mencionada.

A LQER identifica as ARI como pessoas coletivas de direito público, dispõe sobre a sua isenção parcial dos poderes de direção e de supervisão do Governo e define a sua autonomia administrativa e financeira. Para o cumprimento das funções que lhes são atribuídas, as ARI contemplam uma elevada margem de discricionariedade e possuem um alto nível de especialização técnica, dispondo de poderes que viabilizam uma atuação efetiva.

As ARI são, ainda, caracterizadas pela sua neutralidade política de gestão, ou seja, as suas decisões são tomadas por critérios estritamente técnicos, isentos de valorações políticas. Quer isto dizer que os agentes em questão não estão condicionados a agir conforme uma determinação política, mas, sim, de acordo com a tecnicidade exigida pela área de regulação correspondente.



5- Os poderes políticos das ARI

De forma a desempenharem as suas funções, as ARI dispõem, pelo art 3º nº2 LQER, de poderes de regulação, regulamentação, supervisão, fiscalização, sanção e infração. Destes, destaca-se o poder de supervisão, o qual garante a efetiva aplicação das normas regulamentares emitidas pelas próprias ARI e demais legislação e atos normativos aplicáveis ao setor regulado.

O poder de fiscalização configura-se como um poder/dever das entidades em fiscalizar o cumprimento da lei e as condições da prestação dos serviços ou da exploração da atividade regulada. É uma forma de verificar a adequação do comportamento dos regulados aos ditames legais e normativos do setor.

O poder sancionatório aparece como consequência da verificação de violação ou falta de cumprimento das normas aplicáveis. Aliás, a CRP admite expressamente à AP a utilização do poder sancionatório, especificamente, em casos de ilícitos administrativos. De acordo com o artigo 43º LQER, a entidade reguladora pode praticar todos os atos necessários para punir os regulados infratores, dentro de uma razoabilidade de aplicação.

Cabe referir que o poder regulamentar está ligado à sua expertise. A principal razão pela qual as entidades reguladoras foram criadas reside exatamente na esfera regulamentar, já que esta existe para regular determinados setores da sociedade e compostos por técnicos especializados e capacitados para elaborarem regras de conduta para cada setor a ser regulado.



6- Regulamento

O artigo 135º CPA define os regulamentos administrativos como sendo normas jurídicas gerais e abstratas1 que produzem efeitos jurídicos externos e são oriundas do exercício de poderes jurídico-administrativos. São normas jurídicas que se assemelham às leis, pois padronizam comportamentos da própria AP e os dos particulares e revelam-se como uma manifestação de autoridade do Estado para a satisfação dos interesses públicos.

Assim, sendo um ato normativo semelhante à lei, os regulamentos assumem-se como fonte de Direito Administrativo, fazendo parte de um conjunto sistematizado de normas que orientam ordenamento jurídico (fonte autovinculativa, vinculando futuras atuações administrativas e gerando obrigações aos seus destinatários).

Assim, os regulamentos são normas jurídicas produzidas por entidades, públicas ou privadas, legalmente habilitadas para o exercício dos poderes de autoridade típicos da atividade administrativa.



6.1- Regulamento como função administrativa

A divisão de funções operada pelo Princípio da Separação de Poderes culmina na existência de atividades diferenciadas no seio do Estado. Aliás, a CRP refere-se às funções legislativa, jurisdicional e administrativa.

Por função administrativa entende-se não só a execução de leis, mas , também, o objetivo direito e imediato de produzir bens e prestar serviços destinados à satisfação das necessidades coletivas.

O Estado compartilha o exercício dessa função e deposita na AP os poderes administrativos necessários para, em cooperação com ele, prosseguir o interesse público estabelecido pela Constituição e pela lei ordinária.

É neste sentido que a atividade administrativa tem como limite positivo a obrigatoriedade da prossecução do interesse público, não podendo a AP desviar-se dele mesmo quando detém o poder de uso da sua discricionariedade .



6.1.1- Tipos de regulamentos- em especial os regulamentos independentes

Os tipos de regulamentos derivam do seu grau de dependência com a lei (executá-la ou complementá-la) e, ainda, segundo a doutrina, da titularidades do interesse público prosseguido, do seu conteúdo e do âmbito de eficácia.

i)Critério da relação com a lei- tratam-se de regulamentos de execução quando dão a uma lei concreta e específica condições de ser executada; e complementares, quando complementam ao pormenor uma disciplina normativa que a lei não regulou. Ambos têm como objetivo concretizar uma disciplina fixada por lei sem a pretensão de inovar nesse domínio.

Nesta categoria existem, ainda, os regulamentos independentes que visam tornar operacionais as opções legislativas que se limitam a definir a matéria sobre a qual deva incidir o regulamento e a individualizar a entidade competente para a sua emissão. Neste caso a lei autoriza esse caráter inovador.

ii)Titularidade do interesse público prosseguido – Abordamos regulamentos autônomos, quando emanados por um órgão da Administração autónoma, tratando-se de um poder de produção normativa primária decorrente do princípio da autonomia local, o qual necessita, apenas, de norma habilitante. Noutro sentido, existem, ainda, regulamentos governamentais, instrumentos secundários de desenvolvimento e aplicação da lei.

iii)Conteúdo- Coexistem regulamentos de organização, afetos à estrutura orgânica e institucional da AP; de funcionamento, que dizem respeito à atividade interna da AP; de polícia, que funcionam como ponto de equilíbrio entre AP e particulares e fiscais, estabelecendo taxas, tarifas e preços pagos pelos particulares em virtude das prestações administrativas efetuadas em seu favor.

iv)Eficácia- Podem tratar-se de regulamentos internos, quando oriundos de um procedimento administrativo onde os sujeitos da relação procedimental são órgãos da mesma pessoa coletiva que os expediram; e externos quando aptos a produzir eficácia para além do órgão do qual emanaram, projetando os seus efeitos a terceiros.

Os regulamentos independentes carecem de notas especiais, já que são estes que, na generalidade, são emanados pelas entidades reguladoras independentes. No entanto, esta prática dificulta o enquadramento jurídico-constitucional desses regulamentos, já que a LQER e as leis instituidoras de algumas ARI limitam-se a atribuir competência normativa, sem trazer conteúdo a ser executado ou complementado, ou seja, deixando a cargo da entidade criar disciplina inovadora através dos regulamentos.

Parece-nos que, sendo os regulamentos independentes expressamente admitidos pela CRP (sendo que as competências regulamentares estão divididas entre o Governo e por todos os órgãos que compõem o aparelho administrativo), e sendo as ARI um braço forte da AP, não se vislumbra nenhuma disparidade constitucional para que os regulamentos tenham caráter independente, desde que não invadam as matérias de competência reservada à lei.



7- As autoridades Reguladoras Independentes como detentoras do poder regulamentar

7.1-Competência adquirida por delegação de poderes?

O poder regulamentar é um poder característico da função administrativa. Quando uma entidade reguladora se vale da sua legítima função administrativa para editar normas jurídicas, como os regulamentos, ela está a permitir ao Parlamento que atue em matérias cujo grau de tecnicidade e de complexidade exige especificações.

Assim, não se pode aceitar que o exercício do poder regulamentar seja oriundo de uma delegação de poderes legislativos, o que contraria o princípio da separação de poderes, já que o poder regulamentar é um poder secundário (se o regulamento contrariar a Constituição, será considerado inconstitucional e, quando contra legem, será ilegal).

A delegação de poderes consiste em transferir, temporária, parcial e condicionalmente, tal competência a outro órgão ou outra entidade. Aliás, a delegação exige um conteúdo certo e determinado sobre o qual recairá a regulamentação, o que, claramente, não se consubstancia com as matérias afetas à regulação. Sendo assim, se o poder regulamentar derivasse de um ato precário e excecional, a existência das ARI estaria em risco, pois a sua principal natureza jurídica, a de regular, estaria vulnerável.

Assim, o poder regulamentar das ARI não pode derivar de uma delegação em virtude, primeiro, da natureza jurídica do ato de delegação de poderes e segundo, pois, no sistema administrativo português, por força da própria Constituição, a Administração Pública tem o poder de dirigir regulamentos.

Conclui-se que este poder não é fruto de uma delegação, mas é próprio, atribuído, primeiro, pela CRP e, segundo, pela lei ordinária, nomeadamente a LQER e as leis instituidoras.



7.2-A emissão de regulamentos independentes e o conflito com os regulamentos governamentais

O exercício do poder regulamentar pelas entidades reveste-se, geralmente, de regulamentos independentes. Respeitando-se a regra constitucional de menção à lei atributiva e de não derrogação a nenhuma disposição legal previamente estabelecida, não se pode negar o caráter independente dos regulamentos, nem ignorar a existência de outros tipos de regulamentos como parte do desempenho das tarefas cometidas às autoridades reguladoras.

A propósito dos limites do poder regulamentar, admite-se não estar suficientemente clara a relação entre os regulamentos do Governo e o das autoridades independentes. Um lado da doutrina defende que, em caso de conflito entre os regulamentos governamentais e das autoridades independentes, poderá ser utilizado o critério da hierarquia de normas e, portanto, os regulamentos aprovados pelo Governo prevalecem sobre os regulamentos da entidade reguladora.

Um outro lado da doutrina admite o critério da especialidade, onde os regulamentos das autoridades verdadeiramente reguladoras são normas especiais face aos regulamentos governamentais, pois têm âmbito teleológico de aplicação setorial. Assim, os seus regulamentos não podem ser revogados ou anulados por regulamentos do Governo, o que impede uma possível interferência indevida do Governo na independência funcional das ARI.



7.3- A importância da participação dos interessados no exercício do poder regulamentar e o reforço do controle pelas comissões parlamentares competentes

A participação da sociedade no quotidiano das atividades reguladoras das ARI permite que se alcançe o nível de legitimidade democrática desejável e aceitável num Estado Democrático de Direito. A própria CRP, no artigo 267º nº1, assegura a participação dos interessados na efetiva gestão da AP, funcionado como uma densificação do princípio constitucional.

A importância desses preceitos concentra-se na possibilidade de os interessados participarem, ativamente, no processo de tomada de decisões que os afetarão diretamente, assegurando um processo mais eficiente.

Os atributos das ARI, como a independência, especialização e celeridade, levam a crer que estas são caracterizadas decorrentes da proximidade entre as suas ações e os interessados. Tal é visível nos estatutos que preveem que, antes de aprovar ou alterar algum regulamento, a autoridade deve dar conhecimento do respetivo projeto ao ministro da tutela, aos regulados, bem como às associações de consumidores de interesse genérico ou específico.

O CPA revela, ainda, no artigo 100º nº1, a audiência dos interessados quando a edição de um regulamento contenha disposições que afetem de modo direito e imediato interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Importa dizer que a violação da audiência prévia dos interessados pode resultar na declaração de nulidade do ato (161º nº2 d)), se seguida a doutrina que este consiste num direito fundamental, ou a mera anulabilidade (163º nº1), no sentido oposto.

Assim, a participação dos interessados no exercício do poder regulamentar das ARI, além do cariz legitimador, tem como objetivo criar uma conexão administrativa despolitizada entre a autoridade reguladora e o administrado regulado.

Para além da participação popular no procedimento regulamentar como garantia de legitimidade democrática, destaca-se a faculdade de intervenção do Governo antes de aprovar ou alterar um regulamento prevista no artigo 41º nº1 LQER.

Somado a isto, é de notar a competência da Assembleia da República para apreciar os atos das autoridades independentes, convocando os membros de seus órgãos para se apresentarem perante a comissão parlamentar competente e prestarem esclarecimentos sobre o relatório de suas atividades, nos termos do artigo 49º da LQER.



8- A imprescindibilidade do poder regulamentar

Para o exercício do papel de regulador é imprescindível que a Administração Pública disponha de instrumento adequados ao desempenho da função de regulação. Esta função consiste em definir as condições para o funcionamento equilibrado e justo das áreas reguladas, criando regras de orientação a serem seguidas pelos agentes regulados.

Em cada área, a tarefa de regulação cabe a uma entidade reguladora especializada, sendo estas dotadas de órgãos técnicos, especializados, imparciais e capacitados para editarem normas regulatórias setoriais.

A composição das ARI deve ter notória especialização técnica e profissional sobre a área regulada, o que lhes permite mais assertividade.

Conclui-se que o poder regulamentar se torna indispensável numa democracia. Antes de mais, porque está implicitamente previsto no conceito de regulação; porque os regulamentos são instrumentos adequados para o exercício da função administrativa reguladora e, ainda, porque dinamizam a ordem jurídica e dão apoio ao Parlamento.



Bibliografia: 

BIRMAN, Isabel Ribeiro, O PODER REGULAMENTAR DAS AUTORIDADES REGULADORAS INDEPENDENTES, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2018. 

CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol I.

CAUPRES, João, Introdução ao Direito Administrativo, 10ªedição.

PEREIRA, da Silva Vasco, Em busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina.



Patrícia Falé, sub15 

1 O caráter geral está ligado ao alcance das suas normas a destinatários não individualizados ou individualizáveis e a abstratividade está ligada à execução sucessiva e permanente no tempo.


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