Maria Ana Gaspar, n.º 66164, subturma 15, Turma B
DO DIREITO À AUDIÊNCIA
PRÉVIA
I.
Uma
fase essencial
Em Acórdão de 7 de
Abril de 2022, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) refere, no âmbito do Proc. n.º 03478/14.1BEPRT,
Relatora Cristina Santos, que “A
audiência prévia dos interessados definida no artº 100º CPA/91 (artº
121º CPA/2015) constitui uma sub-fase
procedimental autónoma e corporiza uma formalidade absolutamente essencial,
cuja omissão pura e simples gera a invalidade do acto administrativo
que defina com efeitos constitutivos a situação jurídica do interessado, isto
é, conforme disposto no
artº 133º nº 2 d) CPA/91 (artº 161º nº 2 d) CPA/2015) determina a nulidade da decisão final do
procedimento por violação do conteúdo
essencial do direito de audiência, direito fundamental alicerçado no
artº 267º nº 5 CRP.”.
Neste processo, que opõe um particular a
um município, o STA censurou a decisão de não realização de audiência prévia no
procedimento relativo à emissão de ordem para pagamento do valor da despesa com
as operações materiais realizadas, considerando que o ato em causa seria mesmo nulo.
Quanto aos factos, em causa estava a
verificação por parte dos responsáveis da respetiva Câmara Municipal do mau
estado em que se encontrava um edifício que, tendo sofrido um incêndio, corria
riscos de derrocada sobre a via, constituindo,
como tal, grave risco para a
segurança pública. Tendo em conta a inação da proprietária, que tem o dever
legal de conservar e garantir a segurança do edifício, o município, com
fundamento no estado de necessidade, promoveu as medidas necessárias para mitigar os riscos para a segurança pública, concretamente a remoção e limpeza dos escombros, lixos e entulhos resultantes da
demolição parcial do edificado.
Como as obras efetuadas constituíam uma despesa para o Município, nos termos
do disposto no artigo 108.º do Regime Jurídico da Edificação
e Urbanização (RJUE), foi emitido um ofício para a alegada infratora
pagar o valor em causa. Entretanto, a proprietária, convicta de que o ato administrativo
que manteve o despacho de cobrança era inválido, não aceitou a decisão proferida
pelo Tribunal Central Administrativo Norte e recorreu para o Supremo Tribunal
Administrativo. Nas suas conclusões, alegou, nomeadamente que, conforme dispõe
o artigo 7.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), “Os órgãos da Administração Pública devem atuar
em estreita colaboração com os particulares, procurando assegurar uma adequada
participação no desempenho da função administrativa (...)” e ainda que “Os órgãos da Administração Pública devem
assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham
por objeto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes
disserem respeito, designadamente através da respetiva audiência nos termos
deste Código”, como prevê o artigo 8.° do CPA. Acrescentando também que “Concluída a instrução, e salvo o disposto
no artigo 103.° [o que não se verifica] os interessados têm direito de ser
ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser
informado, nomeadamente, sobre o sentido provável desta.”, conforme prevê o
artigo 100.°, n.º 1 do CPA.
II.
Do
estado de necessidade
O STA apreciou no Acórdão objeto deste
trabalho se a atuação da Administração se mostra legitimada por se enquadrar
no estado
de necessidade que justifique uma ação contrária à lei, tendo em
conta, nomeadamente, as normas que a seguir se destacam.
Desde logo, o artigo 3.º, n.º 2, do CPA, que dispõe
que “Os actos administrativos praticados
em estado de necessidade,
com preterição das regras estabelecidas neste Código, são válidos, desde que os seus resultados não pudessem ter
sido alcançados de outro modo, mas os lesados terão o direito de ser
indemnizados nos termos gerais da responsabilidade da Administração.”
Mas, por seu lado, o artigo 177.º, n.º 2, do CPA, em
matéria de ato administrativo de execução prevê que “Salvo em estado de necessidade,
os órgãos da Administração Pública não podem praticar nenhum ato ou operação
material de que resulte limitação de direitos subjetivo ou interesses
legalmente protegidos dos particulares, sem terem previamente praticado o ato administrativo que legitime tal atuação.”
Já o artigo 124.º, n.º1, alínea a) do CPA em matéria
de audiência de interessados, dispõe que “Não
há lugar a audiência dos interessados: Quando a decisão seja urgente;” e o artigo 90.º, n.º 8,
do RJUE (na redação do DL 136/2014, 9 de setembro) em matéria de obras de
conservação necessárias sem cumprimento das formalidades exigíveis em situação
de normalidade diz que “As formalidades
previstas no presente artigo podem ser preteridas quando exista risco iminente de desmoronamento ou grave perigo para a saúde pública, nos
termos previstos na lei para o estado
de necessidade.”
III.
Das fases do procedimento
A audiência prévia
dos interessados consiste numa das fases do procedimento decisório de 1.º grau,
isto é, aquele que tende à prática de um ato administrativo primário, que, de
acordo com o Prof. Freitas do Amaral (in Curso de Direito Administrativo, Vol.
II, Almedina, págs. 311 e seguintes) comporta as seguintes seis fases: Face
inicial; Fase da instrução; Fase da audiência dos interessados; Fase da
preparação da decisão e Fase complementar.
A
Fase Inicial é quando a Administração inicia o
processo, devendo comunicá-lo (artigo 55.º, n.º 1 do CPA) às pessoas cujos
direitos ou interesses legalmente protegidos possam ser lesados pelos atos a
praticar no decurso do procedimento.
Na Fase de Instrução,
que se rege pelo princípio do inquisitório (artigo 58.º do CPA), verificam-se
os factos que interessem à decisão final, sendo, nomeadamente, recolhida a
prova necessária e podendo ser ouvido o particular.
A Fase da
Audiência dos Interessados, que tem lugar após a instrução e antes da
decisão, os interessados têm a oportunidade “de dizer de sua justiça”. Nesta
importante fase, que está prevista nos artigos 121.º a 125.º do CPA, relevam o
princípio da colaboração da Administração com os particulares (artigo 111.º do
CPA) e o princípio da participação (artigo 12.º do CPA), tendo mesmo
consagração constitucional no artigo 267.º, n.º 5 da CRP. Os interessados podem
ser ouvidos no procedimento através de audiência escrita ou oral, competindo ao
instrutor a decisão. Salvo as exceções previstas na lei, a audiência prévia dos
interessados é legalmente obrigatória e a sua falta tem como consequência uma
ilegalidade, que se consubstancia num vício de forma, por preterição de uma
formalidade essencial, gerando nulidade do ato, nos termos do disposto no
artigo 161.º, n.º 2, alínea d) do CPA, dado ser um direito fundamental dos
particulares.
Quanto
à Fase da Preparação da Decisão, que o Prof. Freitas do
Amaral considera, contrariamente a outros autores, que deve ser autonomizada, é
a altura em que a Administração pondera o cenário traçado na fase inicial, a
prova e os argumentos trazidos ao processo na audiência de interessados.
Segue-se a emissão de uma deliberação por parte do órgão colegial, conforme
previsto nos artigos 125.º e 126.º do CPA.
Por
fim, na fase de Decisão, o órgão competente toma a respetiva
decisão, nos termos do disposto no artigo 126.º e seguintes do CPA. De um modo
geral aplicam-se à decisão final do procedimento as regras do Direito Administrativo
que regem o regulamento, o ato administrativo ou o contrato administrativo.
IV.
Do Direito à
Audiência Prévia como direito fundamental
A audiência dos interessados (artigos
121.º a 125.º do CPA), assim consagrada como uma das fases do procedimento do
ato administrativo, consubstancia, então, a efetivação de dois princípios
gerais da atividade administrativa consagrados no CPA: o princípio da
colaboração da Administração Pública com os particulares (artigo 11.º do CPA) e
o princípio da participação (artigo 12.º do CPA). Como formalização destes
princípios, a audiência prévia concretiza, assim, na sua plenitude, segundo o Professor
Diogo Freitas do Amaral (in pág. 317) o “direito
de participação dos cidadãos na formação das decisões que lhe digam respeito”,
direito que o CPA consagra como audiência prévia dos interessados.
“Sempre
que deva haver lugar à audiência dos interessados, ela constitui uma
formalidade essencial, imediatamente prévia ao ato decisório do procedimento,
envolvendo a sua preterição a ilegalidade e a consequente invalidade deste.”,
referem, por sua vez, Marcelo Rebelo de
Sousa e André Salgado Matos (in pág.155). De acordo com estes autores, nos
casos em que seja obrigatória por lei, a falta de audiência prévia constitui
uma ilegalidade, um vício de forma por preterição de uma formalidade essencial.
O vício em causa é gerador de nulidade se o direito à audiência prévia for
concebido como um direito fundamental. Se não o for, a falta de audiência
produzirá apenas anulabilidade.
A formalidade da audiência prévia dos
interessados, em regra, é exigida por lei sempre que a Administração se incline
para uma decisão desfavorável aos interessados. O n.º 3 do preceito consagra os
casos em que não é necessária audiência prévia e o artigo 124.º os casos de
dispensa de audiência dos interessados.
É, ainda, importante referir que o CPA
prevê duas formas de os interessados serem, nas palavras do Professor Freitas
do Amaral, (in pág. 322), “ouvidos no
procedimento antes de ser tomada a decisão final”: a audiência escrita e a
audiência oral. À luz do artigo 100.º, n.º 2, a escolha pela forma padece de
poder discricionário e deve processar-se nos termos dos artigos 122.º e 123.º,
todos do CPA.
V.
Da invalidade
do ato administrativo
No Acórdão em causa, o STA
sintetiza esta problemática, dizendo que a audiência prévia dos interessados,
prevista no artigo 121.º do CPA, “constitui
uma sub-fase procedimental
autónoma e corporiza uma formalidade absolutamente essencial, cuja omissão
pura e simples gera
a invalidade do ato
administrativo que defina com efeitos constitutivos a situação jurídica do
interessado”, e, conforme previsto no artigo 161.º, n.º
2, alínea d) do CPA, determina a nulidade
da decisão final do procedimento por violação do conteúdo essencial do direito de audiência,
que é, por sua vez, um direito fundamental consagrado no artigo 267.º, n.º 5,
da CRP.
Sendo o princípio
da legalidade essencial ao direito administrativo, no sentido da
invalidade das atuações administrativas que contrariem a lei, nos termos do
previsto nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP
e 3.º do CPA, o STA considera que importa saber se a atuação da
Administração se mostra legitimada por se enquadrar no estado de necessidade justificativo
do agir contrário à lei expressa, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 2 e 177.º n.º 2 do CPA, na
medida em que “(..) O estado
de necessidade, ao suspender a legalidade ordinária, cria
uma situação de exceção em
que as autoridades administrativas têm de agir sem que abandonem, nessa atuação,
a prossecução do direito.”
De acordo com a orientação do Acórdão do STA, mesmo a
atuação da Administração Pública em estado de necessidade, enquanto princípio
geral de direito administrativo, “(..)
não é, ao contrário do que tradicionalmente se afirmava, uma “exceção” ao
princípio da legalidade, estando expressamente prevista no artigo 3.º, n.º 2 CPA”, como
defendem Marcelo Rebelo de Sousa e André
Salgado de Matos (in pág. 175). No entanto, este tribunal superior salienta que a legitimidade do ato
praticado em estado de necessidade, à margem do princípio da legalidade em
sentido estrito, exige necessariamente a verificação de pressupostos para qualificar a sua
existência, sendo que in casu relativamente à atuação da administração que se
substituiu à proprietária na execução dos trabalhos de remoção e limpeza se
verificaram.
Mas
relativamente ao ato impositivo que
corresponde à nota de despesa com o valor a pagar pelas operações materiais
realizadas no edificado da proprietária, considera o STA que “assume a natureza de título executivo de uma obrigação pecuniária certa, líquida e
exigível na esfera jurídica da Recorrente e, por conseguinte,
constitui o ato administrativo autónomo que determina a decisão de proceder à
execução administrativa (decisão de executar) de notificação obrigatória (artº
151º nº 1 (2ª parte) CPA/91)”.
“Valoriza-se assim a
ideia, referida pelos AA. do Projecto do Código (ob. cit. pág. 231), de que a
execução dos actos impositivos passa pela obrigação de dar ao respectivos
destinatários a possibilidade de os cumprirem voluntariamente - surgindo a
execução coerciva por parte da Administração, como “último recurso", Vide in, CPA Anotado
Mário Esteves de Almeida, 2ª Edição, Editora Almedina, página 728., alerta o
STA no seu Acórdão.
Pelo que se
conclui que a omissão do direito de audiência prévia do
particular, que corresponde à inobservância de formalidade essencial,
viola o direito fundamental consagrado
no artigo 267.º, n.º 5, CRP de participação no concreto
procedimento que lhe diz respeito. Desta forma, a decisão final relativa a
obrigação de pagamento é nula, nos termos do artigo 161.º, n.º 2, alínea d) do CPA.
Bibliografia
- MARCELO REBELO DE SOUSA E ANDRÉ SALGADO DE MATOS, “Direito Administrativo
Geral”,
Tomo I, 2ª Ed., Dom Quixote;
- DIOGO
FREITAS DO AMARAL, “Curso de
Direito Administrativo”, Vol. II, 2008, Almedina;
Maria Ana Gaspar, n.º 66164, subturma 15, Turma B
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