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terça-feira, 28 de maio de 2024

Do direito à audiência prévia

 

Maria Ana Gaspar, n.º 66164, subturma 15, Turma B

 

 

DO DIREITO À AUDIÊNCIA PRÉVIA

 

 

I.                Uma fase essencial

 

Em Acórdão de 7 de Abril de 2022, o Supremo Tribunal Administrativo (STA)  refere, no âmbito do Proc. n.º 03478/14.1BEPRT, Relatora Cristina Santos, que A audiência prévia dos interessados definida no artº 100º CPA/91 (artº 121º CPA/2015) constitui uma sub-fase procedimental autónoma e corporiza uma formalidade absolutamente essencial, cuja omissão pura e simples gera a invalidade do acto administrativo que defina com efeitos constitutivos a situação jurídica do interessado, isto é, conforme disposto no artº 133º nº 2 d) CPA/91 (artº 161º nº 2 d) CPA/2015) determina a nulidade da decisão final do procedimento por violação do conteúdo essencial do direito de audiência, direito fundamental alicerçado no artº 267º nº 5 CRP..

 

Neste processo, que opõe um particular a um município, o STA censurou a decisão de não realização de audiência prévia no procedimento relativo à emissão de ordem para pagamento do valor da despesa com as operações materiais realizadas, considerando que o ato em causa seria mesmo nulo.

 

Quanto aos factos, em causa estava a verificação por parte dos responsáveis da respetiva Câmara Municipal do mau estado em que se encontrava um edifício que, tendo sofrido um incêndio, corria riscos de derrocada sobre a via, constituindo, como tal, grave risco para a segurança pública. Tendo em conta a inação da proprietária, que tem o dever legal de conservar e garantir a segurança do edifício, o município, com fundamento no estado de necessidade, promoveu as medidas necessárias para mitigar os riscos para a segurança pública, concretamente a remoção e limpeza dos escombros, lixos e entulhos resultantes da demolição parcial do edificado.

Como as obras efetuadas constituíam uma despesa para o Município, nos termos do disposto no artigo 108.º do Regime Jurídico da Edificação e Urbanização (RJUE), foi emitido um ofício para a alegada infratora pagar o valor em causa. Entretanto, a proprietária, convicta de que o ato administrativo que manteve o despacho de cobrança era inválido, não aceitou a decisão proferida pelo Tribunal Central Administrativo Norte e recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo. Nas suas conclusões, alegou, nomeadamente que, conforme dispõe o artigo 7.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), “Os órgãos da Administração Pública devem atuar em estreita colaboração com os particulares, procurando assegurar uma adequada participação no desempenho da função administrativa (...)” e ainda que “Os órgãos da Administração Pública devem assegurar a participação dos particulares, bem como das associações que tenham por objeto a defesa dos seus interesses, na formação das decisões que lhes disserem respeito, designadamente através da respetiva audiência nos termos deste Código”, como prevê o artigo 8.° do CPA. Acrescentando também que “Concluída a instrução, e salvo o disposto no artigo 103.° [o que não se verifica] os interessados têm direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final, devendo ser informado, nomeadamente, sobre o sentido provável desta.”, conforme prevê o artigo 100.°, n.º 1 do CPA.

 

 

II.             Do estado de necessidade

 

O STA apreciou no Acórdão objeto deste trabalho se a atuação da Administração se mostra legitimada por se enquadrar no estado de necessidade que justifique uma ação contrária à lei, tendo em conta, nomeadamente, as normas que a seguir se destacam.

Desde logo, o artigo 3.º, n.º 2, do CPA, que dispõe que “Os actos administrativos praticados em estado de necessidade, com preterição das regras estabelecidas neste Código, são válidos, desde que os seus resultados não pudessem ter sido alcançados de outro modo, mas os lesados terão o direito de ser indemnizados nos termos gerais da responsabilidade da Administração.”

Mas, por seu lado, o artigo 177.º, n.º 2, do CPA, em matéria de ato administrativo de execução prevê que Salvo em estado de necessidade, os órgãos da Administração Pública não podem praticar nenhum ato ou operação material de que resulte limitação de direitos subjetivo ou interesses legalmente protegidos dos particulares, sem terem previamente praticado o ato administrativo que legitime tal atuação.”

Já o artigo 124.º, n.º1, alínea a) do CPA em matéria de audiência de interessados, dispõe que “Não há lugar a audiência dos interessados: Quando a decisão seja urgente;” e o artigo 90.º, n.º 8, do RJUE (na redação do DL 136/2014, 9 de setembro) em matéria de obras de conservação necessárias sem cumprimento das formalidades exigíveis em situação de normalidade diz que “As formalidades previstas no presente artigo podem ser preteridas quando exista risco iminente de desmoronamento ou grave perigo para a saúde pública, nos termos previstos na lei para o estado de necessidade.”

 

 

III.           Das fases do procedimento

 

A audiência prévia dos interessados consiste numa das fases do procedimento decisório de 1.º grau, isto é, aquele que tende à prática de um ato administrativo primário, que, de acordo com o Prof. Freitas do Amaral (in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, págs. 311 e seguintes) comporta as seguintes seis fases: Face inicial; Fase da instrução; Fase da audiência dos interessados; Fase da preparação da decisão e Fase complementar.

 

A Fase Inicial é quando a Administração inicia o processo, devendo comunicá-lo (artigo 55.º, n.º 1 do CPA) às pessoas cujos direitos ou interesses legalmente protegidos possam ser lesados pelos atos a praticar no decurso do procedimento.

 

Na Fase de Instrução, que se rege pelo princípio do inquisitório (artigo 58.º do CPA), verificam-se os factos que interessem à decisão final, sendo, nomeadamente, recolhida a prova necessária e podendo ser ouvido o particular.

 

A Fase da Audiência dos Interessados, que tem lugar após a instrução e antes da decisão, os interessados têm a oportunidade “de dizer de sua justiça”. Nesta importante fase, que está prevista nos artigos 121.º a 125.º do CPA, relevam o princípio da colaboração da Administração com os particulares (artigo 111.º do CPA) e o princípio da participação (artigo 12.º do CPA), tendo mesmo consagração constitucional no artigo 267.º, n.º 5 da CRP. Os interessados podem ser ouvidos no procedimento através de audiência escrita ou oral, competindo ao instrutor a decisão. Salvo as exceções previstas na lei, a audiência prévia dos interessados é legalmente obrigatória e a sua falta tem como consequência uma ilegalidade, que se consubstancia num vício de forma, por preterição de uma formalidade essencial, gerando nulidade do ato, nos termos do disposto no artigo 161.º, n.º 2, alínea d) do CPA, dado ser um direito fundamental dos particulares.

 

Quanto à Fase da Preparação da Decisão, que o Prof. Freitas do Amaral considera, contrariamente a outros autores, que deve ser autonomizada, é a altura em que a Administração pondera o cenário traçado na fase inicial, a prova e os argumentos trazidos ao processo na audiência de interessados. Segue-se a emissão de uma deliberação por parte do órgão colegial, conforme previsto nos artigos 125.º e 126.º do CPA.

 

Por fim, na fase de Decisão, o órgão competente toma a respetiva decisão, nos termos do disposto no artigo 126.º e seguintes do CPA. De um modo geral aplicam-se à decisão final do procedimento as regras do Direito Administrativo que regem o regulamento, o ato administrativo ou o contrato administrativo.

 

 

IV.           Do Direito à Audiência Prévia como direito fundamental

 

A audiência dos interessados (artigos 121.º a 125.º do CPA), assim consagrada como uma das fases do procedimento do ato administrativo, consubstancia, então, a efetivação de dois princípios gerais da atividade administrativa consagrados no CPA: o princípio da colaboração da Administração Pública com os particulares (artigo 11.º do CPA) e o princípio da participação (artigo 12.º do CPA). Como formalização destes princípios, a audiência prévia concretiza, assim, na sua plenitude, segundo o Professor Diogo Freitas do Amaral (in pág. 317) o “direito de participação dos cidadãos na formação das decisões que lhe digam respeito”, direito que o CPA consagra como audiência prévia dos interessados.

 

“Sempre que deva haver lugar à audiência dos interessados, ela constitui uma formalidade essencial, imediatamente prévia ao ato decisório do procedimento, envolvendo a sua preterição a ilegalidade e a consequente invalidade deste.”, referem, por sua vez,  Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos (in pág.155). De acordo com estes autores, nos casos em que seja obrigatória por lei, a falta de audiência prévia constitui uma ilegalidade, um vício de forma por preterição de uma formalidade essencial. O vício em causa é gerador de nulidade se o direito à audiência prévia for concebido como um direito fundamental. Se não o for, a falta de audiência produzirá apenas anulabilidade.

A formalidade da audiência prévia dos interessados, em regra, é exigida por lei sempre que a Administração se incline para uma decisão desfavorável aos interessados. O n.º 3 do preceito consagra os casos em que não é necessária audiência prévia e o artigo 124.º os casos de dispensa de audiência dos interessados.

 

É, ainda, importante referir que o CPA prevê duas formas de os interessados serem, nas palavras do Professor Freitas do Amaral, (in pág. 322), “ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final”: a audiência escrita e a audiência oral. À luz do artigo 100.º, n.º 2, a escolha pela forma padece de poder discricionário e deve processar-se nos termos dos artigos 122.º e 123.º, todos do CPA.

 

 

V.              Da invalidade do ato administrativo

 

No Acórdão em causa, o STA sintetiza esta problemática, dizendo que a audiência prévia dos interessados, prevista no artigo 121.º do CPA, “constitui uma sub-fase procedimental autónoma e corporiza uma formalidade absolutamente essencial, cuja omissão pura e simples gera a invalidade do ato administrativo que defina com efeitos constitutivos a situação jurídica do interessado”, e, conforme previsto no artigo 161.º, n.º 2, alínea d) do CPA, determina a nulidade da decisão final do procedimento por violação do conteúdo essencial do direito de audiência, que é, por sua vez, um direito fundamental consagrado no artigo 267.º, n.º 5, da CRP.

 

Sendo o princípio da legalidade essencial ao direito administrativo, no sentido da invalidade das atuações administrativas que contrariem a lei, nos termos do previsto nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 3.º do CPA, o STA considera que importa saber se a atuação da Administração se mostra legitimada por se enquadrar no estado de necessidade justificativo do agir contrário à lei expressa, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 2 e 177.º n.º 2 do CPA, na medida em que “(..) O estado de necessidade, ao suspender a legalidade ordinária, cria uma situação de exceção em que as autoridades administrativas têm de agir sem que abandonem, nessa atuação, a prossecução do direito.”

 

De acordo com a orientação do Acórdão do STA, mesmo a atuação da Administração Pública em estado de necessidade, enquanto princípio geral de direito administrativo, “(..) não é, ao contrário do que tradicionalmente se afirmava, uma “exceção” ao princípio da legalidade, estando expressamente prevista no artigo 3.º, n.º 2 CPA, como defendem Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos (in pág. 175). No entanto, este tribunal superior salienta que a legitimidade do ato praticado em estado de necessidade, à margem do princípio da legalidade em sentido estrito, exige necessariamente a verificação de pressupostos para qualificar a sua existência, sendo que in casu relativamente à atuação da administração que se substituiu à proprietária na execução dos trabalhos de remoção e limpeza se verificaram.

 

Mas relativamente ao ato impositivo que corresponde à nota de despesa com o valor a pagar pelas operações materiais realizadas no edificado da proprietária, considera o STA que “assume a natureza de título executivo de uma obrigação pecuniária certa, líquida e exigível na esfera jurídica da Recorrente e, por conseguinte, constitui o ato administrativo autónomo que determina a decisão de proceder à execução administrativa (decisão de executar) de notificação obrigatória (artº 151º nº 1 (2ª parte) CPA/91)”.

 

“Valoriza-se assim a ideia, referida pelos AA. do Projecto do Código (ob. cit. pág. 231), de que a execução dos actos impositivos passa pela obrigação de dar ao respectivos destinatários a possibilidade de os cumprirem voluntariamente - surgindo a execução coerciva por parte da Administração, como “último recurso", Vide in, CPA Anotado Mário Esteves de Almeida, 2ª Edição, Editora Almedina, página 728., alerta o STA no seu Acórdão.

 

Pelo que se conclui que a omissão do direito de audiência prévia do particular, que corresponde à inobservância de formalidade essencial, viola o direito fundamental consagrado no artigo 267.º, n.º 5, CRP de participação no concreto procedimento que lhe diz respeito. Desta forma, a decisão final relativa a obrigação de pagamento é nula, nos termos do artigo 161.º, n.º 2, alínea d) do CPA.

 

 

 

 

Bibliografia


- MARCELO REBELO DE SOUSA E ANDRÉ SALGADO DE MATOS, “Direito Administrativo
Geral”, Tomo I, 2ª Ed., Dom Quixote;

- DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. II, 2008, Almedina;

- www.dgsi.pt



 

 

 

Maria Ana Gaspar, n.º 66164, subturma 15, Turma B



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