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terça-feira, 28 de maio de 2024

A falta de audiência prévia é considerada um ato de cariz nulo ou anulável?

 João Pedro Freitas nº68349 Turma B sub15 


A falta de audiência prévia é considerada um ato de cariz nulo ou anulável?


É fundamental começar por fazer uma observância, entre a relação da administração pública e os particulares evoluiu ao longo do tempo. No Estado liberal clássico, existia uma clara separação entre estas duas esferas, com pouca interação e colaboração entre elas. A administração pública operava de forma quase isolada, centrada na aplicação estrita das leis e na manutenção da ordem, enquanto os particulares desempenhavam um papel passivo, limitando-se a cumprir as normas estabelecidas.

 

Contudo, essa conceção rígida já não se aplica nos dias de hoje. Atualmente, a administração pública reconhece a importância da colaboração ativa com os particulares na execução das suas tarefas. Os particulares assumem um papel ativo como parceiros e "elos de ajuda", contribuindo de forma significativa para a eficácia e eficiência das políticas e serviços públicos. Esta colaboração traz inúmeros benefícios para ambas as partes: a administração pública ganha em agilidade, inovação e proximidade com as necessidades reais da população, enquanto os particulares encontram novas oportunidades de participação, responsabilidade social e desenvolvimento.

 

Este modelo colaborativo reflete uma administração mais aberta, flexível e orientada para resultados, onde a sinergia entre o setor público e os particulares se traduz em melhorias concretas na prestação de serviços e na promoção do bem comum.

 

Essa mudança reflete uma compreensão mais moderna da gestão pública, que reconhece o valor da colaboração e da participação da sociedade civil. Os particulares já não são vistos apenas como destinatários passivos dos serviços públicos, mas sim como parceiros ativos na sua prestação e melhoria. Este novo paradigma valoriza a contribuição dos cidadãos e das entidades privadas, promovendo uma administração pública mais inclusiva, eficiente e adaptada às necessidades reais da comunidade. A participação ativa dos particulares fortalece o sentido de responsabilidade partilhada e permite uma gestão mais dinâmica e inovadora, beneficiando todos os envolvidos e contribuindo para um serviço público de maior qualidade.

 

Essa colaboração pode assumir diversas formas, desde a prestação de serviços voluntários até ao fornecimento de feedback e sugestões para melhorar os serviços públicos. Esta abordagem colaborativa não só reforça a eficiência e a eficácia da administração pública, como também promove um maior envolvimento cívico e um sentido de responsabilidade partilhada na construção de uma sociedade melhor. Ao valorizar a participação ativa dos cidadãos, a administração pública torna-se mais transparente, responsiva e alinhada com as necessidades e aspirações da comunidade.

No ordenamento jurídico português, o atual Código do Procedimento Administrativo (CPA) regula o procedimento do ato administrativo através de várias etapas essenciais. Estas etapas incluem a "Fase Inicial" (artigos 53.º e seguintes do CPA), a "Fase de Instrução" (artigos 115.º e seguintes), a "Fase da Audiência dos Interessados" (artigos 121.º e seguintes), a "Fase da Decisão" (artigos 126.º e seguintes) e, eventualmente, uma fase de execução (artigos 184.º e seguintes). É fundamental notar que a omissão de qualquer uma destas fases pode comprometer a validade e a eficácia do ato administrativo.

 

Esta estrutura delineada pelo CPA assegura um processo justo e transparente, garantindo que todas as partes envolvidas tenham a oportunidade de se manifestar e contribuir para a tomada de decisão administrativa. A observância de cada fase é crucial para salvaguardar os princípios fundamentais da legalidade, da imparcialidade e da participação dos interessados no âmbito da administração pública portuguesa.

 

Antes da implementação do Código do Procedimento Administrativo (CPA) de 1991, a fase da audiência dos interessados não fazia parte do processo administrativo padrão em Portugal. Isso significava que a administração pública frequentemente tomava decisões de forma isolada, sem considerar os interesses e opiniões das partes envolvidas. Essa abordagem unilateral gerou diversos problemas, principalmente no que diz respeito à confiança dos cidadãos e à segurança jurídica.

 

 

 

Para responder a essas questões, foram introduzidas reformas que incluíram formalidades destinadas a garantir a participação dos interessados no processo administrativo. Essas mudanças foram cruciais para promover maior transparência, imparcialidade e legitimidade nas decisões da administração pública. Ao permitir que os interessados sejam ouvidos e tenham a oportunidade de apresentar a sua posição, o sistema administrativo tornou-se mais justo e sensível às necessidades e preocupações da sociedade.

 

Essa evolução reflete um compromisso renovado com os princípios democráticos e o Estado de direito, fortalecendo a relação entre a administração pública e os cidadãos. A inclusão da fase da audiência dos interessados é um passo significativo para assegurar que as decisões administrativas sejam tomadas de forma mais equitativa e responsiva, promovendo um ambiente de maior confiança e cooperação entre o governo e a população.

 

O direito à audiência prévia, estabelecido no artigo 121.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), é uma das expressões mais significativas do princípio da participação dos particulares na formação das decisões administrativas que lhes dizem respeito. Este princípio de participação não só é consagrado no artigo 12.º do CPA, como também encontra respaldo na Constituição da República Portuguesa, especificamente no artigo 267.º, n.º 5.

 

O direito à audiência prévia garante aos interessados o conhecimento antecipado do teor provável de uma decisão, permitindo-lhes manifestar-se sobre questões relevantes, solicitar diligências e apresentar documentos pertinentes. Este direito segue regras específicas de notificação, conforme detalhado no artigo 122.º do CPA.

 

A audiência prévia pode ser conduzida de forma escrita ou oral. Em certas circunstâncias, conforme estipulado no artigo 124.º do CPA, a audiência prévia pode ser dispensada. Essas circunstâncias incluem razões de celeridade (alíneas a) e b)), interesse público (alínea c)), e eficiência (alíneas d), e) e f)). No entanto, a dispensa da audiência prévia requer justificações adequadas e fundamentadas.

 

Essas disposições visam garantir um procedimento administrativo justo, transparente e equitativo, proporcionando aos interessados a oportunidade de participar ativamente e influenciar as decisões que os afetam. Este mecanismo fortalece a confiança dos cidadãos na administração pública e assegura que as decisões sejam tomadas de forma mais inclusiva e democrática.

 

Após esta análise inicial, é incontestável que o direito à audiência prévia deve ser respeitado pelo órgão decisório público, conforme estabelecido pela lei, com o propósito de assegurar a correta formação da decisão administrativa e o devido respeito às posições jurídicas subjetivas dos particulares, conforme destacado pelo Professor Freitas do Amaral. Na doutrina, há consenso de que a ausência de audiência prévia constitui uma ilegalidade, mais especificamente, um vício de forma, devido à omissão de uma formalidade essencial. A doutrina mais atual refere-se a este facto como um vício no procedimento.

 

No entanto, a questão que surge é qual o tipo de ilegalidade que essa ausência representa: será a nulidade ou a anulabilidade? Se considerarmos o regime da nulidade, aplica-se o disposto no artigo 161.º, n.º 2, alínea d) do CPA, resultando na ineficácia total do ato administrativo, ou seja, este não produzirá quaisquer efeitos. Por outro lado, se optarmos pelo regime da anulabilidade, a situação é fundamentada com base no artigo 163.º, n.º 1 do CPA. Esta distinção entre nulidade e anulabilidade é crucial para determinar os efeitos da ausência de audiência prévia e, consequentemente, a validade da decisão administrativa em questão.

 

O Professor Freitas do Amaral defende a aplicação da anulabilidade, baseando-se no argumento de que o direito subjetivo público em questão não está incluído na categoria de direitos fundamentais, embora seja de extrema importância para a proteção dos particulares em relação à Administração Pública. Na sua concepção, os direitos fundamentais abrangem os "direitos, liberdades e garantias, e os direitos de natureza análoga", excluindo os direitos subjetivos públicos, como o direito à audiência prévia, uma vez que estes não estão diretamente relacionados com a proteção da dignidade da pessoa humana. Assim, este direito é considerado uma formalidade do ato, mas não um elemento essencial.

 

Esta visão destaca a necessidade de assegurar que, mesmo não sendo considerado um direito fundamental, o direito à audiência prévia seja rigorosamente observado para garantir a justiça e a transparência na tomada de decisões administrativas, protegendo os interesses dos particulares perante a Administração Pública.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) sustenta que o direito à audiência prévia não é considerado um direito fundamental, resultando na aplicação da mera anulabilidade. Segundo esta linha de pensamento, esse direito não se enquadra na ideia de essencialidade estrutural ou funcional do ato administrativo, sendo antes um elemento do procedimento administrativo destinado à formação adequada do ato. Este entendimento foi expressamente referido no Acórdão do STA de 17 de fevereiro de 2004.

 

Por outro lado, o Professor Vasco Pereira da Silva defende que a violação deste princípio deve resultar na nulidade, uma vez que considera o direito à audiência prévia como um direito fundamental decorrente da própria Constituição. Ele fundamenta esta posição com base no artigo 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP), que estabelece a garantia do direito à audiência prévia, e no princípio do Estado de direito democrático, protegido pelo artigo 2.º da CRP. Segundo esta perspetiva, o direito à audiência prévia não é apenas uma formalidade do procedimento administrativo, mas um elemento essencial para a proteção dos direitos dos cidadãos e para a garantia da legalidade e da justiça nas decisões administrativas.

 

Esta divergência de opiniões sublinha a importância do direito à audiência prévia no contexto administrativo e a sua relevância para assegurar um processo justo e transparente, promovendo a confiança dos cidadãos na administração pública.

 

O Professor Marcelo Rebelo de Sousa propõe uma interpretação restritiva do conceito de direito fundamental, limitando-o aos direitos, liberdades e garantias. Argumenta que uma abordagem mais ampla poderia permitir à autoridade administrativa determinar o conteúdo de direitos sociais e econômicos. No entanto, diverge da teoria do Professor Freitas do Amaral ao destacar que o direito à audiência prévia é uma formalidade essencial, imposta e fundamentada pela Constituição. Para o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, uma formalidade essencial constitui um elemento crucial do ato administrativo, não havendo, portanto, uma distinção redundante entre os conceitos de essencialidade e formalidade. Ele argumenta que as formalidades se enquadram na forma "lato sensu" do ato, abrangendo todos os aspetos formais do processo administrativo.

 

A distinção entre nulidade e anulabilidade não deve ser subestimada, pois os seus efeitos e regimes são completamente distintos. Enquanto a nulidade resulta na ineficácia total do ato e pode ser invocada a qualquer momento, a anulabilidade permite que o ato produza efeitos, está sujeita a prazos específicos e pode ser corrigida.

 

Considera-se que o direito à audiência prévia deriva do princípio do Estado de Direito, conforme previsto constitucionalmente. Ao contrário da mera aplicação do artigo 267.º/5 da CRP, que não menciona explicitamente este direito, considera-se que a sua fundamentação decorre da combinação sistemática de outros dois elementos constitucionais, onde a Constituição não é a única fonte, admitindo-se que a legislação ordinária revele normas dotadas dessa essencialidade valorativa. Embora o artigo 267.º/5 por si só não faça referência a tal direito, ao recorrermos a essa lógica, podemos inferir, com base nos artigos 2.º e 16.º da CRP, que o direito à audiência prévia é, de facto, um direito fundamental.

 

De facto, este direito deve acarretar a sanção mais severa, que é a nulidade, uma vez que representa uma garantia fundamental dos particulares contra a atuação da Administração Pública. Este direito é crucial para assegurar a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões administrativas, aspetos essenciais para a proteção dos direitos individuais e para a preservação do Estado de Direito.

 

Bibliografia

 

1 AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, volume II, 4ª edição, 2018, Almedina.

 

2 SILVA, Vasco Pereira, Em busca do ato administrativo perdido.

 

3 DE SOUSA, Marcelo Rebelo, «Regime do Acto Administrativo», in Direito e Justiça, vol. VI, 1992.

 

 

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