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sexta-feira, 3 de maio de 2024

A Boa administração no CPA e na CDFUE

 

Boa administração no CPA e na CDFUE

1.       Introdução -- Administração Pública e os princípios gerais

Ora, como é sabido, a Administração Pública tem como fim a tarefa de promover o interesse público e o seu bem-estar. Para isto, desenvolve várias imposições e preceitos no campo legal que regulam a sua atuação, pois esta, não pode ser feita de forma completamente livre e arbitrária. Assim, são estabelecidas regras jurídicas para controlar e adequar os atos que a administração exerce conforme o fim que pretende alcançar. A Administração está então sujeita à lei, mas não só, encontrando-se também sujeita ao Direito[1]

Nesta perspetiva, além das regras instituídas, são estabelecidos princípios, alguns com relevância constitucional que determinam a otimização de um direito[2], que exigem a realização da ação administrativa de forma otimizada, ou seja, da melhor forma possível avaliando a situação concreta. É no artigo 266º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), que se estabelecem os primeiros princípios a serem respeitados pela Administração, já que, estando a Administração subordinada à Constituição, são princípios diretamente vinculativos. De facto, no seu nº1 aborda-se o princípio da prossecução do interesse público (o fim considerado “motor”[3] da atividade administrativa tal como referido anteriormente). Este, conjuntamente com o nº2, são princípios fundamentais e essenciais da ordem jurídica nacional – princípio da igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa fé.

Para além dos preceitos constitucionais que implantam estes princípios, há também um conjunto de princípios estipulados no Código de Procedimento Administrativo (doravante CPA) que estendem aquilo que é o controlo mais profundo das ações e atividades administrativas, sendo que estes foram recentemente renovados e densificados através de uma revisão do Código. Entre os autores que mergulharam no estudo do Direito Administrativo, são vários os que referem a matéria dos princípios gerais como fulcral e das mais relevantes no que toca à revisão do Código de Procedimento de 2015.

O próprio preâmbulo deste documento revela que a evolução que a função administrativa evidenciou ao longo do seu percurso, era sinal de que certas normas que lhe diziam respeito necessitavam de ser atualizadas. Algumas normas preenchidas, outras revogadas por não se encontrarem adequadas e ainda originadas umas demais face a “novas exigências”[4] que o tempo pedia. No fundo, a ordem jurídica portuguesa mostrou, e continua a mostrar, uma certa ânsia e empenho em dar relevância aos princípios gerais do Direito Administrativo, pois são estes que articulados orientam a atividade administrativa de forma conveniente àquele que é o sentido da ação administrativa – prosseguir e satisfazer aqueles que são os interesses sociais.

                A realização desta breve exposição é no intuito de demonstrar as várias opiniões que são criadas em volta do princípio da boa administração no Código de Procedimento Administrativo, passando a uma análise do que é a boa administração no direito comunitário e ainda, muito resumidamente, demonstrar as várias diferenças entre os preceitos e as poucas aproximações que têm.

        No fundo, o princípio da boa administração como se vai analisar posteriormente, acaba por ter várias conotações possíveis dependendo do ordenamento jurídico em que se situa e quem o está a aplicar. A ação administrativa é algo dinâmico e flexível, dado que, o legislador nacional está constantemente preocupado em encontrar formas de controlá-la e quando já estão consagradas, tenta mantê-las atualizadas – há de facto um grande cuidado em controlar a discricionariedade que a Administração pode ter nas suas ações.

 

2.       O princípio da Boa Administração no Direito português

                Ora, atualmente, as decisões administrativas apesar de terem de respeitar a prossecução do interesse público, a sua ação fica aquém apenas com este conteúdo. Ou seja, esta ânsia de atender às necessidades coletivas tem de ser complementada através de condutas que preencham critérios racionais[5], deste modo, a atuação administrativa, com o intuito de ser a melhor solução possível para satisfazer o interesse público, deve pautar-se de uma conduta eficiente, célere, adequada, entre outros. De forma sucinta, o agente administrativo estando perante um caso, antes de tomar a sua decisão, deve fazer um juízo racional de que o comportamento que tomar deve ser eficaz, apresentar os métodos mais adequados e justificados e, no fundo apresentar aquela que é a decisão ótima de acordo com a situação em concreto – ser um bom administrador[6].

                A questão que surge é se esta ação por parte da administração já não se assemelhava a estes critérios desde o começo das suas funções no sistema.  É precisamente graças à reforma do CPA em 2015 que surge como um novo princípio específico o princípio da boa administração. No fundo, pode ser considerado novo porque teve com a reforma uma consagração expressa no ordenamento jurídico português porque será provável que a ação administrativa o exigisse antes de forma indireta e subentendida[7] (apesar do CPA vir alargar o dever de boa administração a todo o setor administrativo, este aparecia consagrado no artigo 81º/c) CRP, mas apenas para o setor empresarial). O Código de Procedimento Administrativo enuncia este princípio no seu artigo 5º concebendo-o como um artigo que será depois complementado também por outros princípios que aparecem posteriormente no CPA[8] -- sobre este ponto, o princípio da boa administração desdobra-se no CPA através de outros princípios: dever de fundamentação, audição prévia (em termos procedimentais, etc.).

                De facto, uma certa “pressão” por parte da doutrina que extensivamente abordava a questão da eficiência e celeridade nas ações administrativas e ainda por parte da doutrina italiana levou à discussão da introdução do princípio da boa administração no sistema jurídico português, o que acaba por dar ênfase à realidade da existência implícita deste princípio, mas era também necessário justificar a sua inclusão expressa indo de encontro do referido. Para além disso (algo que vai ser abordado mais detalhadamente), o Direito Europeu já impunha este princípio na ordem portuguesa devido ao artigo 41º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (doravante CDFUE) e, por consequência da aplicação das fontes europeias no direito interno, vigorava em Portugal.

                2.1 O artigo 5º do CPA

                Tal como é proferido na redação do artigo, estão diretamente presentes na missão de controlo da Administração os critérios da eficiência, economicidade e da celeridade (5º/1 CPA), considerados critérios que devem reger as ações administrativas que se consideram assim, vinculativos. Primeiramente, em relação à economicidade, o procedimento deve apresentar-se dentro de custos razoáveis, que não sejam excessivos (implica um bom aproveitamento e aplicação dos recursos por parte da administração). Quanto à celeridade, é através desta que se atribui ao princípio uma dimensão procedimental, pois que, requer à ação administrativa uma decisão rápida e breve através de um procedimento simples sem quaisquer formalismos desnecessários que o perturbe ou dificulte[9]. Por último, a Administração deve adotar medidas ótimas que sejam as mais adequadas com o intuito de maximizar as vantagens retiradas e que se manifestem como as mais eficazes para um determinado problema que surgir.

                Ora, é importante referir que o artigo 5º divide-se ainda num nº2 que gera alguma polémica, visto que, se funde com aspetos de organização administrativa. De facto, o próprio autor Mário Aroso de Almeida refere que este artigo dispõe de uma segunda dimensão: a dimensão organizatória (sendo o nº1 de dimensão funcional)[10] através da qual a Administração deve através de procedimentos simples e desembaraçados aproximar os órgãos administrativos da população. Estes elementos organizatórios constantes do 5º/2 parecem estar um pouco deslocados daquele que é o escopo do nº1 do mesmo artigo já que, apesar de ser um princípio, tende a aproximar-se do princípio da organização administrativa e não tanto do princípio da boa administração[11]. Luís Cabral De Moncada vai mais longe defendendo que estes elementos apenas possuem “valor instrumental para potenciar a decisão orientada por requisitos” do 5º/1 CPA.

                2.1.1 A eficiência e a sua vinculação jurídica

                Como já foi referido, a consagração do princípio da Boa administração, apesar de se tratar de uma atualização que “robustece os valores fundamentais que devem reger toda a Administração no Estado de Direito democrático”[12], é uma matéria que que cria alguma controvérsia entre os vários especialistas no Direito Administrativo português. No nº1 deste artigo 5º do CPA estabelecem-se, como já foi referido, os critérios da economicidade, celeridade e eficiência, através dos quais se percebe uma nítida vertente económica do preceito, já que, é muito vocacionada para a boa gestão dos recursos, juízos de prognose entre custos-benefícios, ponderação de eficiência e, no fundo, “dar relevância específica à dimensão económica da atividade administrativa”, complementando o artigo 3º do CPA[13].

                Tendo em conta esta conotação mais económica do preceito, eleva à discussão a divergência entre especialistas acerca da sua juridicidade. De facto, para certos autores, a consagração da eficiência no princípio da boa administração leva a que seja debatida a condição de aplicação jurídica deste. Posto isto: será possível caso haja uma violação dos pressupostos do artigo 5º do CPA e, consequentemente, a violação do princípio da boa administração, que não haja qualquer tipo de sanção jurídica aplicada pelos tribunais?

                Ora, a questão surge devido à implementação de critérios extrajurídicos (como a eficiência) num preceito jurídico, cuja aplicação se torna dúbia pelos órgãos judiciais nacionais. Por um lado, o professor Freitas do Amaral, acredita que indiscutivelmente que o princípio da boa administração é um dever jurídico, mas que não comporta proteção jurisdicional, ou seja, para o autor, gera-se uma espécie de dever jurídico imperfeito porque não considera possível que os tribunais possam debruçar-se sobre questões de mérito administrativo. Para fundamentar a sua posição, distingue ainda juridicidade de justiciabilidade, pelo que o princípio em questão apenas se enquadra no primeiro conceito, dado que, é impossível um tribunal declarar uma ação administrativa como anulada por não ser a solução “mais eficiente do ponto de vista técnico, administrativo ou financeiro” [14].

                Esta posição doutrinária suscita várias considerações de outros especialistas do Direito administrativo que, por outro lado, tendem a discordar da tese do dever jurídico imperfeito e, por conseguinte, do professor Freitas do Amaral. A título de exemplo pode ser referido o autor Mário Aroso de Almeida que inclui a eficiência dentro dos parâmetros passíveis de controlo jurisdicional. No fundo, a Administração Pública ao ter de prosseguir as necessidades coletivas respeitando a lei e o Direito tem de o fazer segundo os critérios enunciados pelo artigo 5º CPA, logo, este artigo conceitua-se com grande importância por “assumir que a eficiência da Administração possui relevância jurídica”[15]. Desta forma, contraria assim a posição defendida por Freitas do Amaral ao dar ênfase à recente abertura da Administração em abrigar certos conceitos dentro dos parâmetros jurídicos que outrora, se situavam fora destes.

                De forma sucinta, como foi referido anteriormente, a consagração do critério da eficiência no artigo 5º do CPA, abre a porta a vários conceitos e parâmetros extrajurídicos pautados no domínio do mérito, e, portanto, não jurídico. Todavia, apesar da eficiência não deixar de ser um conceito conduzido por termos económicos, passa a integrar o domínio da juridicidade da Administração por ser aplicado através de orientações jurídicas. É necessário referir que, Mário Aroso de Almeida suscita a questão fulcral de quais os casos em que se pode efetivamente falar numa possibilidade de controlo pelos tribunais destes parâmetros, porque não é total, respondendo que no mínimo, deve haver, para além da vinculação da Administração ao imperativo da eficiência, esta por sua vez, mantem-se “submetida a um controlo mínimo de razoabilidade”[16].

                Nitidamente mais afastados da opinião do dever jurídico imperfeito estão Miguel Assis Raimundo e Vasco Pereira da Silva que chegam até a considerar a tese como frágil[17]. Tentando conciliar de forma breve as suas posições, ambos contrariam a ideia de menosprezar o princípio da boa administração como princípio inferior aos restantes que estão consagrados no CPA. Os autores seguem a mesma linha de pensamento: essencialmente, um princípio, seja ele qual for, tem capacidade para invalidar ações administrativas, por um lado, Miguel Assis Raimundo defende que “qualquer princípio que seja realmente normativo (e jurídico) tem um tipo de vinculatividade que pode levar à invalidação de atuações (…) desconformes”[18], daí que, ao referir a juridicidade do critério da eficiência e não apenas a sua existência como um critério extra jurídico sujeito ao controlo de mérito, a doutrina e a jurisprudência mais recentes têm visto o conceito de boa administração como um modo de previsão da validade das ações administrativas[19].

                Por outro lado, o professor Vasco Pereira da Silva defende a aplicação da boa administração como um princípio com o mesmo valor jurídico que os restantes, já que, a função de um princípio é a sua aplicação, e não apenas ser consagrado num código. De facto, se há a sua consagração na legislação, o seu escopo é o controlo das ações administrativas, e, portanto, deve ser aplicado para garantir a sua função e garantir também que o princípio está ao mesmo nível que os restantes tendo de ser por isso respeitado de igual modo. Indo então contra a posição do professor Freitas do Amaral e dos restantes defensores da tese do dever jurídico imperfeito devido ao não entendimento desta tese de que existe um princípio com valor jurídico, mas sem qualquer possibilidade de aplicação.

                Rematando sucintamente o que foi referido, vários autores que se debruçam sobre esta matéria defendem a juridicidade do preceito da boa administração, pois “se não fosse jurídico, não constaria do CPA”[20]. As teses acabam por variar no que toca à admissão da eficiência como um critério extrajurídico com valor normativo e, portanto, de possível aplicação pelos tribunais podendo decidir a validade (ou invalidade) de uma ação administrativa – ao valor de juridicidade acumula-se o valor de justiciabilidade. A doutrina mais recente tem apontado para uma abertura do conjunto de parâmetros aceites pela dimensão normativa ao considerar e aceitar a eficiência como um valor a ser tutelado e a ter em conta pelos tribunais nacionais, enquanto que, em tempos mais antigos, se considerava a questão como meramente extrajurídica e apenas ligada ao mérito.

                Por último, considero importante referir que o princípio da boa administração não foi consagrado por mero acaso. Tal como referido anteriormente, surge apenas como um novo preceito porque nunca esteve efetivamente expresso em legislação nacional. A defesa deste preceito em específico torna-se de grande responsabilidade quando se entende, portanto, a pluralidade de fontes que o ordenamento jurídico português agrega. Sendo Portugal membro da União Europeia (doravante UE), o seu sistema jurídico e todas as parcelas jurídicas que o compõem acabam por acusar uma forte influência do Direito comunitário. O Direito Administrativo não escapa a este fenómeno de europeização e um exemplo robusto disso é exatamente o princípio da boa administração.

3.       A Administração Pública e o Direito Comunitário

                Numa breve contextualização, assiste-se progressivamente ao aprofundamento do ordenamento jurídico português enriquecido pelas normas de direito da UE. Não há dúvidas que o Direito da União não se mantém útil e aplicável apenas às instituições europeias, mas também às instituições dos Estados Membros o que explica o enriquecimento nacional através de conteúdo comunitário.

                Ora, o autor Pedro Costa Gonçalves refere que existe uma “apropriação europeia”[21], o que pode efetivamente ajudar na caracterização da relação entre estas duas ordens jurídicas que apesar de relacionadas, cada uma tem a sua autonomia jurídica própria. Tal como exposto anteriormente, o Direito Administrativo não escapa à sua mutação graças ao fenómeno de europeização e, consequentemente, o direito comunitário acaba por condicionar a ação administrativa nacional por ter de ser integrado na regulamentação nacional. Está exposto no Tratado de Funcionamento da União Europeia o exercício direto de funções administrativas (artigo 298º/1 TFUE), portanto, sendo o Direito da União fonte em Portugal, tem relevância jurídica direta no nosso ordenamento influenciando então a Administração Pública nacional.[22]

                3.1 Boa administração no Direito europeu

                Devido a progressos jurisprudenciais, doutrinários e ainda pelo soft law, houve a consagração do princípio da Boa administração em documento normativo europeu – na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (doravante CDFUE). Neste sentido, sendo a CDFUE uma das grandes responsáveis pela proteção dos Direitos Fundamentais na ordem jurídica europeia, no ano de 2000 efetua-se a redação da boa administração nomeadamente no artigo 41º da Carta. Há quem lhe atribua a expressão “Macro-direito” ou “Macro conceito[23] porque, de facto, engloba designações e um conteúdo normativo muito amplo.

                O princípio da boa administração europeu introduz o due process of Law, que é uma regra conhecida como ultima ratio da decisão administrativa porque abriga vários direitos dos particulares perante a Administração, ou seja, é um princípio com aplicação subjetiva. Este preceito, protege assim todos os indivíduos, singulares ou coletivos e de qualquer nacionalidade que estabeleçam uma relação com a Administração. – em último recurso, o artigo 41º da CDFUE pode funcionar como uma cláusula geral que pode declarar ilegal/inválida uma decisão administrativa por violar o due process of law. É ainda importante referir que o due process of law é de inspiração dos sistemas anglo-saxónicos e devido à globalização, pode até considerar-se um direito global e, consequentemente, leva também à violação de um direito global.

                Ao estar na Carta de Direitos Fundamentais, podemos designar o artigo 41º como Direito a uma boa administração. E, portanto, no nº1 deste artigo defende-se um tratamento igual, imparcial, equitativo e num prazo razoável, equilibrando assim, a garantia dos particulares no que toca às suas necessidades e a sua proteção relativamente às necessidades da atuação administrativa -- recuperando um tópico abordado referente à aplicação jurisdicional, através deste conceito europeu de aplicação subjetiva da boa administração e a consequente proteção do interesse particular, a tese tradicional do dever jurídico imperfeito perde ainda mais fundamento[24] (incluindo o artigo 47º da CDFUE que atribui uma tutela jurisdicional efetiva à boa administração). Este direito decompõe-se em vários subprincípios enumerados no nº2 do mesmo artigo incluindo o direito à audiência, o princípio de acesso aos processos a que se refira o particular e o princípio da obrigação de fundamentação de todas as decisões que levaram à adoção de um certo ato. Nos restantes nºs 3 e 4 é ainda abordado o princípio da responsabilidade da administração por danos causados devido à sua atuação (direito à reparação dos danos no caso dos particulares) e também o direito de todos os indivíduos se poderem dirigir às instituições europeias na sua língua e obter uma resposta nessa mesma língua.

                Como é possível notar, não é por acaso que atribuem ao Direito da boa administração a designação de “macro conceito”, já que consegue abranger num único artigo vários princípios e direitos subjetivos em proteção dos particulares. No essencial, trata-se de um artigo muito amplo e abrangente de aplicação efetiva e, assim, com uma dimensão jurídica bastante presente, pois estabelece elementos procedimentais exigentes como o caso da fundamentação e da audiência dos particulares envolvidos (audi alteram partem).

                3.2 Boa administração no CPA e na CDFUE: false friends

                Ao olhar para o artigo 41º da CDFUE entende-se que o seu conteúdo é visivelmente diferente do conteúdo consagrado no artigo 5º do CPA e que, para um preceito com o mesmo nome – “boa administração – aparentam querer proteger fins desiguais. De facto, o nível de afastamento entre preceitos é evidente olhando para os critérios do 5º/1 CPA – ideia de eficiência, economicidade e celeridade – e os que são efetivamente abrangidos pelo artigo 41º da Carta, mas não é suficiente. No fundo, o legislador português quando consagrou o artigo 5º do CPA parece ter feito uma interpretação restritiva do que constava do direito comunitário, pois, na ordem jurídica portuguesa quando se aborda o princípio da boa administração, abordam-se critérios económicos, mas não muito mais. Enquanto que o direito comunitário abrange também princípios como a imparcialidade, justiça, igualdade no acesso à informação e o dever de fundamentação no artigo 41º da CDFUE.

                Deste modo, como já foi abordado, o que aconteceu no ordenamento jurídico português foi uma autonomização dos princípios e conteúdos abrangidos pelo direito da União no que toca à boa administração. Pois, os princípios referidos em cima, estão consagrados na ordem jurídica nacional, mas fora do princípio da boa administração do CPA:  como por exemplo no artigo 268º da CRP; quanto à audiência prévia está presente no artigo 121º CPA; quanto à fundamentação no artigo 152º do mesmo documento. Há que descair um pouco na opinião dada por Carla Amado Gomes de que há uma “oscilação entre a visão economicista da boa administração” (falando do preceito nacional do CPA) “e uma visão jurídica” (referindo-se à jurisprudência europeia e o CDFUE)[25].

                Ora, de facto, tirando a mesma designação e ambos deterem um conjunto de exigências necessárias para controlar as ações administrativas, as semelhanças entre os preceitos são mais reduzidas do que aparentam. Sabendo que são preceitos tão distintos por valorizarem dimensões da boa administração distintas, alguns autores chegam a afirmar que são “false friends”[26]. Há de facto um problema de diálogo entre os ordenamentos no que toca à boa administração que pode vir a evidenciar fragilidades na invocação do preceito a nível europeu, mas o que é certo é a visível discrepância de pensamento e consagração de uma mesma expressão de “boa administração” revelando as diferentes perspetivas dos vários ordenamentos jurídicos face à Administração e os seus atos, daquele que possivelmente é um princípio global.

                Conclusão

                Num tom de conclusão, evidentemente que (como já foi referido) existe uma discrepância de intensidades e até de controlo entre o direito português e o direito comunitário no que toca à boa administração. Por um lado, enquanto que o artigo 5º do CPA apresenta uma extensão de menor intensidade virada para a vertente económica das ações administrativas, a boa administração a nível europeu é algo tão presente e valorizada que se encontra consagrada no artigo 41º CDFUE e, portanto, como um Direito Fundamental.

                Ao comparar ambos, é necessário ter em conta que o seu âmbito de aplicação acaba por não ser idêntico logo, apesar de vincular a Administração e todos os seus atos, o Direito comunitário tem em vista os direitos básicos que protegem um cidadão ou um particular perante as ações administrativas que, apesar de discricionárias, têm de ter mínimo de controlo – são os direitos resultantes do due process of law originários no direito anglo-saxónico, mas que se propagaram pelos diferentes ordenamentos no Mundo, passando a ser um núcleo de controlo administrativo global: 41º/2; 41º/3; 41º/4 CDFUE – mas não é por dar mais ênfase a estes aspetos procedimentais que ignora o conteúdo económico que o ordenamento tem em conta. Contudo, sendo um direito fundamental, é um terreno claramente jurídico que exige à Administração condutas que sigam critérios e regras jurídicas para proteger o leque variado de direitos que os particulares adquirem por serem também sujeitos de direito europeus.

                Ora, falando em concreto da boa administração presente na ordem jurídica nacional, este princípio não é tão bem conseguido porque está a ser preenchido por muitos outros princípios espalhados pelo regime. É um conceito que se desdobra através de outros princípios ou até em outros preceitos constitucionais – falando especificamente dos direitos que o artigo 41º tutela – mas, a pura aplicação do princípio da boa administração talvez tenha apenas como apoio o artigo 5º do CPA. Todavia, este princípio impõe à Administração Pública uma atividade que se cinja por critérios de economicidade, agilidade, eficiência e celeridade. Por um lado, o a eficiência por muita discussão que cause na doutrina, apresenta-se como um critério outrora situado na dimensão do mérito, que se transfere em tempos recentes para a dimensão jurídica da administração e, assim, certos autores passaram a incluir a eficiência como um critério que deve manifestar tutela jurídica estando também controlada pelos órgãos judiciais. Por outro lado, a celeridade no artigo 5º CPA demonstra que apesar da vertente economicista da boa administração, o ordenamento português valoriza também certos aspetos procedimentais e, dentro do conceito vago que é o referido artigo, é possivelmente o aspeto que mais facilmente se efetiva em tribunal para determinar a invalidez de ações administrativas –a decisão de um processo em prazo razoável, não moroso e longo.

                Concluindo, tal como a Administração Pública para satisfazer o interesse público se divide em vários ramos, aquilo que é a justiça divide-se em vários princípios e esses princípios por sua vez em muitos outros no intuito de controlar devidamente as ações administrativas e, assim, para que estas consigam atingir o seu fim de forma respeitosa, adequada e conforme à lei e ao Direito. O princípio da boa administração é um dos vários princípios que foi primeiramente desenvolvido pela jurisprudência e doutrina que depois se consagrou expressamente no Código de Procedimento Administrativo com a revisão de 2015. Com tudo o que foi dito, a evolução da Administração exige novas formas de ação e, consequentemente novas formas de controlo sendo algo que permanece em constante desenvolvimento, tendo a ordem jurídica nacional, comunitária e global que a acompanhar desenvolvendo novos preceitos e ainda consolidando a aplicação e consagração dos já existentes.

 

                 

 

 

BIBLIOGRAFIA

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VIEIRA, Vítor, M. Freitas, “O novo Código do Procedimento Administrativo”, Almedina, Coimbra, 2016

 

 



[1] Neste sentido, entre vários autores, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Teoria Geral do Direito Administrativo”, 8ª edição, Coimbra, 2021, que refere que a administração vai mais longe que o princípio da legalidade estrita e que, está subordinada a parâmetros de juridicidade.

[2] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo” vol. II, 4ª edição, Coimbra, 2018, p. 31

[3] Idem, p. 32

[4] Referido exatamente este ponto no preâmbulo do CPA de que alguns preceitos evidenciavam desconformidade com os restantes instrumentos legais superiores e o aparecimento de novas exigências “por força da lei e do direito da União Europeia” pediam uma atualização do documento. Para além disso, fruto da forte atividade administrativa (quer nacional, quer internacional), esta revisão surge também para que houvesse adequação e “enriquecimento” relativo à       doutrina e jurisprudência mais recente.

[5] PAULO OTERO, “O poder de substituição em Direito Administrativo” vol. II, Lisboa, 1995 p. 638

[6] A este respeito, PAULO OTERO, “Manual de Direito administrativo” vol. I, Almedina, 2013: “Não basta administrar, há sempre que procurar administrar o melhor possível, obtendo uma ótima administração” p. 78

[7] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo” vol. II, 4ª edição, 2016 fundamenta exatamente esta questão afirmando que “O princípio da prossecução do interesse público, constitucionalmente consagrado, implica além do mais, a existência de um dever de boa administração.” p. 35

[8] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Teoria Geral…”, 8ª edição, 2021: “estes três primeiros artigos (3º, 4º, 5º) são o pórtico que fornece o enquadramento aos artigos subsequentes, que os vêm complementar” p. 133

[9] VÍTOR MANUEL FREITAS VIEIRA, “O novo Código de Procedimento Administrativo”, Almedina, 2023 refere exatamente a necessidade de ação ágil, precisa e célere. p. 129     

[10] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA “Teoria Geral do Direito Administrativo”, 8ª edição, 2021 p. 158

[11] Indo ao encontro desta posição, VASCO PEREIRA DA SILVA defende que o 5º/2 já não é conteúdo respetivo ao princípio da boa administração que mistura assim, o princípio da organização administrativa.

[12] Preâmbulo do Código de Procedimento Administrativo no seu ponto 5 (Decreto-Lei 4/2015, de 7 de janeiro

[13]Teoria…”, 8ª edição, 2021o p. 134

[14]Curso de Direito Administrativo “Vol. II – p. 36

[15]Teoria Geral…” 8ª edição, 2021 p. 161

[16] Idem, p. 165. O autor remete a discussão para o reconhecimento da racionalidade e da eficiência como valores de grande relevância na afetação dos recursos públicos para os cidadãos. Histórica e socialmente, a administração está “sujeita a padrões mínimos de aceitabilidade, no plano da eficiência (…) que habilitam os tribunais a proceder a um controlo mínimo de razoabilidade das decisões que tome nesse domínio” – censurando os casos de ineficiência desrazoáveis.

[17] MIGUEL ASSIS RAMUNDO, “Os novos princípios no novo CPA e o princípio da boa administração, em particular” i. “comentários ao novo Código do Procedimento Administrativo” 6ª edição, 2023 p. 370

[18] MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, “os novos princípios…”, 6ª edição, 2023, p. 370

[19] Idem, quer seja entendida como legalidade no contexto do vício do excesso de poder, quer se trate de afirmação do vício da violação de lei.” p. 290

[20] LUIS CABRAL DA MONCADA, “O princípio geral da Boa Administração no Direito Administrativo” in “Estudos em homenagem a Mário Esteves de Oliveira”, Almedina, 2018 p. 756

[21] PEDRO COSTA GONÇALVES, “Manual de Direito Administrativo” vol. I, Almedina, 2020. p.298

[22] Idem, neste sentido Pedro Costa Gonçalves revela que as Administrações Públicas dos diferentes Estados Membros “tornam-se também elementos ou peças da Administração Pública europeia” p.318

[23] CARLA AMADO GOMES, A boa administração na revisão do CPA: depressa e bem…”

[24] Neste sentido CLÁUDIA VIANA em “CDFUE comentada” coordenada por ALESSANDRA SILVEIRA E MARIANA CANOTILHO, Almedina, Coimbra, 2013, ao analisar o artigo 41º, é defendido que a consagração da boa administração como um Direito Fundamental suscetível de tutela jurisdicional “afasta a tradicional conceção do dever de boa administração como um dever imperfeito” p. 487

[25] Indo no mesmo sentido, MARIO AROSO DE ALMEIDA em “Teoria…” defendendo que o princípio da boa administração se afirma como valor jurídico no direito comunitário, mas no Direito interno parece ter um sentido quase oposto, admite até que a utilização deste princípio não é feliz por apenas se debruçar com os valores de teor económico p.169

[26] MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, em “os novos princípios…” referindo exatamente esta expressão para desenvolver a ideia de que o princípio em análise como está consagrado a nível nacional, tem poucos pontos de contacto com o preceito europeu p.354

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