Boa administração no CPA e na CDFUE
1. Introdução -- Administração Pública e os
princípios gerais
Ora, como é
sabido, a Administração Pública tem como fim a tarefa de promover o interesse
público e o seu bem-estar. Para isto, desenvolve várias imposições e preceitos
no campo legal que regulam a sua atuação, pois esta, não pode ser feita de
forma completamente livre e arbitrária. Assim, são estabelecidas regras
jurídicas para controlar e adequar os atos que a administração exerce conforme
o fim que pretende alcançar. A Administração está então sujeita à lei, mas não
só, encontrando-se também sujeita ao Direito[1]
Nesta
perspetiva, além das regras instituídas, são estabelecidos princípios, alguns
com relevância constitucional que determinam a otimização de um direito[2],
que exigem a realização da ação administrativa de forma otimizada, ou seja, da
melhor forma possível avaliando a situação concreta. É no artigo 266º da
Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), que se estabelecem os
primeiros princípios a serem respeitados pela Administração, já que, estando a
Administração subordinada à Constituição, são princípios diretamente
vinculativos. De facto, no seu nº1 aborda-se o princípio da prossecução do
interesse público (o fim considerado “motor”[3] da
atividade administrativa tal como referido anteriormente). Este, conjuntamente
com o nº2, são princípios fundamentais e essenciais da ordem jurídica nacional
– princípio da igualdade, proporcionalidade, justiça, imparcialidade e boa fé.
Para além dos
preceitos constitucionais que implantam estes princípios, há também um conjunto
de princípios estipulados no Código de Procedimento Administrativo (doravante
CPA) que estendem aquilo que é o controlo mais profundo das ações e atividades
administrativas, sendo que estes foram recentemente renovados e densificados
através de uma revisão do Código. Entre os autores que mergulharam no estudo do
Direito Administrativo, são vários os que referem a matéria dos princípios
gerais como fulcral e das mais relevantes no que toca à revisão do Código de
Procedimento de 2015.
O próprio
preâmbulo deste documento revela que a evolução que a função administrativa
evidenciou ao longo do seu percurso, era sinal de que certas normas que lhe
diziam respeito necessitavam de ser atualizadas. Algumas normas preenchidas,
outras revogadas por não se encontrarem adequadas e ainda originadas umas demais
face a “novas exigências”[4] que
o tempo pedia. No fundo, a ordem jurídica portuguesa mostrou, e continua a
mostrar, uma certa ânsia e empenho em dar relevância aos princípios gerais do
Direito Administrativo, pois são estes que articulados orientam a atividade
administrativa de forma conveniente àquele que é o sentido da ação
administrativa – prosseguir e satisfazer aqueles que são os interesses sociais.
A
realização desta breve exposição é no intuito de demonstrar as várias opiniões
que são criadas em volta do princípio da boa administração no Código de
Procedimento Administrativo, passando a uma análise do que é a boa
administração no direito comunitário e ainda, muito resumidamente, demonstrar
as várias diferenças entre os preceitos e as poucas aproximações que têm.
No fundo, o princípio da boa
administração como se vai analisar posteriormente, acaba por ter várias
conotações possíveis dependendo do ordenamento jurídico em que se situa e quem
o está a aplicar. A ação administrativa é algo dinâmico e flexível, dado que, o
legislador nacional está constantemente preocupado em encontrar formas de
controlá-la e quando já estão consagradas, tenta mantê-las atualizadas – há de
facto um grande cuidado em controlar a discricionariedade que a Administração
pode ter nas suas ações.
2. O princípio da Boa Administração no Direito
português
Ora,
atualmente, as decisões administrativas apesar de terem de respeitar a
prossecução do interesse público, a sua ação fica aquém apenas com este
conteúdo. Ou seja, esta ânsia de atender às necessidades coletivas tem de ser
complementada através de condutas que preencham critérios racionais[5],
deste modo, a atuação administrativa, com o intuito de ser a melhor solução
possível para satisfazer o interesse público, deve pautar-se de uma conduta
eficiente, célere, adequada, entre outros. De forma sucinta, o agente
administrativo estando perante um caso, antes de tomar a sua decisão, deve
fazer um juízo racional de que o comportamento que tomar deve ser eficaz, apresentar
os métodos mais adequados e justificados e, no fundo apresentar aquela que é a
decisão ótima de acordo com a situação em concreto – ser um bom administrador[6].
A
questão que surge é se esta ação por parte da administração já não se
assemelhava a estes critérios desde o começo das suas funções no sistema. É precisamente graças à reforma do CPA em 2015
que surge como um novo princípio específico o princípio da boa administração.
No fundo, pode ser considerado novo porque teve com a reforma uma consagração
expressa no ordenamento jurídico português porque será provável que a ação
administrativa o exigisse antes de forma indireta e subentendida[7]
(apesar do CPA vir alargar o dever de boa administração a todo o setor
administrativo, este aparecia consagrado no artigo 81º/c) CRP, mas apenas para
o setor empresarial). O Código de Procedimento Administrativo enuncia este
princípio no seu artigo 5º concebendo-o como um artigo que será depois
complementado também por outros princípios que aparecem posteriormente no CPA[8]
-- sobre este ponto, o princípio da boa administração desdobra-se no CPA
através de outros princípios: dever de fundamentação, audição prévia (em termos
procedimentais, etc.).
De
facto, uma certa “pressão” por parte da doutrina que extensivamente abordava a
questão da eficiência e celeridade nas ações administrativas e ainda por parte
da doutrina italiana levou à discussão da introdução do princípio da boa
administração no sistema jurídico português, o que acaba por dar ênfase à
realidade da existência implícita deste princípio, mas era também necessário
justificar a sua inclusão expressa indo de encontro do referido. Para além disso
(algo que vai ser abordado mais detalhadamente), o Direito Europeu já impunha
este princípio na ordem portuguesa devido ao artigo 41º da Carta dos Direitos
Fundamentais da União Europeia (doravante CDFUE) e, por consequência da
aplicação das fontes europeias no direito interno, vigorava em Portugal.
2.1 O artigo 5º do CPA
Tal como é proferido
na redação do artigo, estão diretamente presentes na missão de controlo da
Administração os critérios da eficiência, economicidade e da celeridade (5º/1
CPA), considerados critérios que devem reger as ações administrativas que se
consideram assim, vinculativos. Primeiramente, em relação à economicidade, o
procedimento deve apresentar-se dentro de custos razoáveis, que não sejam
excessivos (implica um bom aproveitamento e aplicação dos recursos por parte da
administração). Quanto à celeridade, é através desta que se atribui ao
princípio uma dimensão procedimental, pois que, requer à ação administrativa
uma decisão rápida e breve através de um procedimento simples sem quaisquer
formalismos desnecessários que o perturbe ou dificulte[9].
Por último, a Administração deve adotar medidas ótimas que sejam as mais
adequadas com o intuito de maximizar as vantagens retiradas e que se manifestem
como as mais eficazes para um determinado problema que surgir.
Ora,
é importante referir que o artigo 5º divide-se ainda num nº2 que gera alguma
polémica, visto que, se funde com aspetos de organização administrativa. De
facto, o próprio autor Mário Aroso de Almeida refere que este artigo dispõe de
uma segunda dimensão: a dimensão organizatória (sendo o nº1 de dimensão
funcional)[10] através
da qual a Administração deve através de procedimentos simples e desembaraçados
aproximar os órgãos administrativos da população. Estes elementos
organizatórios constantes do 5º/2 parecem estar um pouco deslocados daquele que
é o escopo do nº1 do mesmo artigo já que, apesar de ser um princípio, tende a
aproximar-se do princípio da organização administrativa e não tanto do
princípio da boa administração[11].
Luís Cabral De Moncada vai mais longe defendendo que estes elementos apenas
possuem “valor instrumental para
potenciar a decisão orientada por requisitos” do 5º/1 CPA.
2.1.1 A eficiência e a sua vinculação
jurídica
Como já foi
referido, a consagração do princípio da Boa administração, apesar de se tratar
de uma atualização que “robustece os
valores fundamentais que devem reger toda a Administração no Estado de Direito
democrático”[12],
é uma matéria que que cria alguma controvérsia entre os vários
especialistas no Direito Administrativo português. No nº1 deste artigo 5º do
CPA estabelecem-se, como já foi referido, os critérios da economicidade,
celeridade e eficiência, através dos quais se percebe uma nítida vertente
económica do preceito, já que, é muito vocacionada para a boa gestão dos
recursos, juízos de prognose entre custos-benefícios, ponderação de eficiência
e, no fundo, “dar relevância específica à
dimensão económica da atividade administrativa”, complementando o artigo 3º
do CPA[13].
Tendo
em conta esta conotação mais económica do preceito, eleva à discussão a
divergência entre especialistas acerca da sua juridicidade. De facto, para
certos autores, a consagração da eficiência no princípio da boa administração
leva a que seja debatida a condição de aplicação jurídica deste. Posto isto:
será possível caso haja uma violação dos pressupostos do artigo 5º do CPA e,
consequentemente, a violação do princípio da boa administração, que não haja
qualquer tipo de sanção jurídica aplicada pelos tribunais?
Ora,
a questão surge devido à implementação de critérios extrajurídicos (como a eficiência)
num preceito jurídico, cuja aplicação se torna dúbia pelos órgãos judiciais
nacionais. Por um lado, o professor Freitas do Amaral, acredita que
indiscutivelmente que o princípio da boa administração é um dever jurídico, mas
que não comporta proteção jurisdicional, ou seja, para o autor, gera-se uma
espécie de dever jurídico imperfeito porque não considera possível que os
tribunais possam debruçar-se sobre questões de mérito administrativo. Para
fundamentar a sua posição, distingue ainda juridicidade de justiciabilidade,
pelo que o princípio em questão apenas se enquadra no primeiro conceito, dado
que, é impossível um tribunal declarar uma ação administrativa como anulada por
não ser a solução “mais eficiente do
ponto de vista técnico, administrativo ou financeiro” [14].
Esta
posição doutrinária suscita várias considerações de outros especialistas do
Direito administrativo que, por outro lado, tendem a discordar da tese do dever
jurídico imperfeito e, por conseguinte, do professor Freitas do Amaral. A
título de exemplo pode ser referido o autor Mário Aroso de Almeida que inclui a
eficiência dentro dos parâmetros passíveis de controlo jurisdicional. No fundo,
a Administração Pública ao ter de prosseguir as necessidades coletivas
respeitando a lei e o Direito tem de o fazer segundo os critérios enunciados
pelo artigo 5º CPA, logo, este artigo conceitua-se com grande importância por “assumir que a eficiência da Administração
possui relevância jurídica”[15].
Desta forma, contraria assim a posição defendida por Freitas do Amaral ao dar
ênfase à recente abertura da Administração em abrigar certos conceitos dentro
dos parâmetros jurídicos que outrora, se situavam fora destes.
De
forma sucinta, como foi referido anteriormente, a consagração do critério da
eficiência no artigo 5º do CPA, abre a porta a vários conceitos e parâmetros
extrajurídicos pautados no domínio do mérito, e, portanto, não jurídico.
Todavia, apesar da eficiência não deixar de ser um conceito conduzido por
termos económicos, passa a integrar o domínio da juridicidade da Administração
por ser aplicado através de orientações jurídicas. É necessário referir que,
Mário Aroso de Almeida suscita a questão fulcral de quais os casos em que se
pode efetivamente falar numa possibilidade de controlo pelos tribunais destes
parâmetros, porque não é total, respondendo que no mínimo, deve haver, para
além da vinculação da Administração ao imperativo da eficiência, esta por sua
vez, mantem-se “submetida a um controlo
mínimo de razoabilidade”[16].
Nitidamente
mais afastados da opinião do dever jurídico imperfeito estão Miguel Assis Raimundo
e Vasco Pereira da Silva que chegam até a considerar a tese como frágil[17].
Tentando conciliar de forma breve as suas posições, ambos contrariam a ideia de
menosprezar o princípio da boa administração como princípio inferior aos
restantes que estão consagrados no CPA. Os autores seguem a mesma linha de
pensamento: essencialmente, um princípio, seja ele qual for, tem capacidade
para invalidar ações administrativas, por um lado, Miguel Assis Raimundo
defende que “qualquer princípio que seja
realmente normativo (e jurídico) tem um tipo de vinculatividade que pode levar
à invalidação de atuações (…) desconformes”[18], daí
que, ao referir a juridicidade do critério da eficiência e não apenas a sua
existência como um critério extra jurídico sujeito ao controlo de mérito, a
doutrina e a jurisprudência mais recentes têm visto o conceito de boa
administração como um modo de previsão da validade das ações administrativas[19].
Por
outro lado, o professor Vasco Pereira da Silva defende a aplicação da boa
administração como um princípio com o mesmo valor jurídico que os restantes, já
que, a função de um princípio é a sua aplicação, e não apenas ser consagrado
num código. De facto, se há a sua consagração na legislação, o seu escopo é o
controlo das ações administrativas, e, portanto, deve ser aplicado para
garantir a sua função e garantir também que o princípio está ao mesmo nível que
os restantes tendo de ser por isso respeitado de igual modo. Indo então contra
a posição do professor Freitas do Amaral e dos restantes defensores da tese do
dever jurídico imperfeito devido ao não entendimento desta tese de que existe
um princípio com valor jurídico, mas sem qualquer possibilidade de aplicação.
Rematando
sucintamente o que foi referido, vários autores que se debruçam sobre esta
matéria defendem a juridicidade do preceito da boa administração, pois “se não fosse jurídico, não constaria do CPA”[20].
As teses acabam por variar no que toca à admissão da eficiência como um
critério extrajurídico com valor normativo e, portanto, de possível aplicação
pelos tribunais podendo decidir a validade (ou invalidade) de uma ação
administrativa – ao valor de juridicidade acumula-se o valor de
justiciabilidade. A doutrina mais recente tem apontado para uma abertura do
conjunto de parâmetros aceites pela dimensão normativa ao considerar e aceitar
a eficiência como um valor a ser tutelado e a ter em conta pelos tribunais
nacionais, enquanto que, em tempos mais antigos, se considerava a questão como
meramente extrajurídica e apenas ligada ao mérito.
Por
último, considero importante referir que o princípio da boa administração não
foi consagrado por mero acaso. Tal como referido anteriormente, surge apenas
como um novo preceito porque nunca esteve efetivamente expresso em legislação
nacional. A defesa deste preceito em específico torna-se de grande
responsabilidade quando se entende, portanto, a pluralidade de fontes que o
ordenamento jurídico português agrega. Sendo Portugal membro da União Europeia
(doravante UE), o seu sistema jurídico e todas as parcelas jurídicas que o
compõem acabam por acusar uma forte influência do Direito comunitário. O
Direito Administrativo não escapa a este fenómeno de europeização e um exemplo
robusto disso é exatamente o princípio da boa administração.
3. A Administração Pública e o Direito
Comunitário
Numa breve
contextualização, assiste-se progressivamente ao aprofundamento do ordenamento
jurídico português enriquecido pelas normas de direito da UE. Não há dúvidas
que o Direito da União não se mantém útil e aplicável apenas às instituições
europeias, mas também às instituições dos Estados Membros o que explica o
enriquecimento nacional através de conteúdo comunitário.
Ora,
o autor Pedro Costa Gonçalves refere que existe uma “apropriação europeia”[21], o
que pode efetivamente ajudar na caracterização da relação entre estas duas
ordens jurídicas que apesar de relacionadas, cada uma tem a sua autonomia
jurídica própria. Tal como exposto anteriormente, o Direito Administrativo não
escapa à sua mutação graças ao fenómeno de europeização e, consequentemente, o direito
comunitário acaba por condicionar a ação administrativa nacional por ter de ser
integrado na regulamentação nacional. Está exposto no Tratado de Funcionamento
da União Europeia o exercício direto de funções administrativas (artigo 298º/1
TFUE), portanto, sendo o Direito da União fonte em Portugal, tem relevância
jurídica direta no nosso ordenamento influenciando então a Administração
Pública nacional.[22]
3.1 Boa administração no Direito europeu
Devido
a progressos jurisprudenciais, doutrinários e ainda pelo soft law, houve a
consagração do princípio da Boa administração em documento normativo europeu –
na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (doravante CDFUE). Neste
sentido, sendo a CDFUE uma das grandes responsáveis pela proteção dos Direitos
Fundamentais na ordem jurídica europeia, no ano de 2000 efetua-se a redação da
boa administração nomeadamente no artigo 41º da Carta. Há quem lhe atribua a
expressão “Macro-direito” ou “Macro
conceito”[23] porque,
de facto, engloba designações e um conteúdo normativo muito amplo.
O
princípio da boa administração europeu introduz o due process of Law, que é uma regra conhecida como ultima ratio da decisão administrativa
porque abriga vários direitos dos particulares perante a Administração, ou
seja, é um princípio com aplicação subjetiva. Este preceito, protege assim todos
os indivíduos, singulares ou coletivos e de qualquer nacionalidade que
estabeleçam uma relação com a Administração. – em último recurso, o artigo 41º
da CDFUE pode funcionar como uma cláusula geral que pode declarar
ilegal/inválida uma decisão administrativa por violar o due process of law. É ainda importante referir que o due process of law é de inspiração dos
sistemas anglo-saxónicos e devido à globalização, pode até considerar-se um
direito global e, consequentemente, leva também à violação de um direito
global.
Ao
estar na Carta de Direitos Fundamentais, podemos designar o artigo 41º como
Direito a uma boa administração. E, portanto, no nº1 deste artigo defende-se um
tratamento igual, imparcial, equitativo e num prazo razoável, equilibrando
assim, a garantia dos particulares no que toca às suas necessidades e a sua
proteção relativamente às necessidades da atuação administrativa -- recuperando
um tópico abordado referente à aplicação jurisdicional, através deste conceito
europeu de aplicação subjetiva da boa administração e a consequente proteção do
interesse particular, a tese tradicional do dever jurídico imperfeito perde
ainda mais fundamento[24]
(incluindo o artigo 47º da CDFUE que atribui uma tutela jurisdicional efetiva à
boa administração). Este direito decompõe-se em vários subprincípios enumerados
no nº2 do mesmo artigo incluindo o direito à audiência, o princípio de acesso
aos processos a que se refira o particular e o princípio da obrigação de
fundamentação de todas as decisões que levaram à adoção de um certo ato. Nos
restantes nºs 3 e 4 é ainda abordado o princípio da responsabilidade da
administração por danos causados devido à sua atuação (direito à reparação dos
danos no caso dos particulares) e também o direito de todos os indivíduos se
poderem dirigir às instituições europeias na sua língua e obter uma resposta
nessa mesma língua.
Como
é possível notar, não é por acaso que atribuem ao Direito da boa administração
a designação de “macro conceito”, já
que consegue abranger num único
artigo vários princípios e direitos subjetivos em proteção dos particulares. No
essencial, trata-se de um artigo muito amplo e abrangente de aplicação efetiva e,
assim, com uma dimensão jurídica bastante presente, pois estabelece elementos
procedimentais exigentes como o caso da fundamentação e da audiência dos
particulares envolvidos (audi alteram
partem).
3.2 Boa administração no CPA e na CDFUE: false friends
Ao olhar para
o artigo 41º da CDFUE entende-se que o seu conteúdo é visivelmente diferente do
conteúdo consagrado no artigo 5º do CPA e
que, para um preceito com o mesmo nome – “boa administração – aparentam querer
proteger fins desiguais. De facto, o nível de afastamento entre preceitos é
evidente olhando para os critérios do 5º/1 CPA – ideia de eficiência,
economicidade e celeridade – e os que são efetivamente abrangidos pelo artigo
41º da Carta, mas não é suficiente. No fundo, o legislador português quando
consagrou o artigo 5º do CPA parece ter feito uma interpretação restritiva do
que constava do direito comunitário, pois, na ordem jurídica portuguesa quando
se aborda o princípio da boa administração, abordam-se critérios económicos,
mas não muito mais. Enquanto que o direito comunitário abrange também
princípios como a imparcialidade, justiça, igualdade no acesso à informação e o
dever de fundamentação no artigo 41º da CDFUE.
Deste
modo, como já foi abordado, o que aconteceu no ordenamento jurídico português
foi uma autonomização dos princípios e conteúdos abrangidos pelo direito da
União no que toca à boa administração. Pois, os princípios referidos em cima,
estão consagrados na ordem jurídica nacional, mas fora do princípio da boa
administração do CPA: como por exemplo
no artigo 268º da CRP; quanto à audiência prévia está presente no artigo 121º
CPA; quanto à fundamentação no artigo 152º do mesmo documento. Há que descair
um pouco na opinião dada por Carla Amado Gomes de que há uma “oscilação entre a visão economicista da boa
administração” (falando do preceito nacional do CPA) “e uma visão jurídica” (referindo-se à jurisprudência europeia e o
CDFUE)[25].
Ora, de facto,
tirando a mesma designação e ambos deterem um conjunto de exigências
necessárias para controlar as ações administrativas, as semelhanças entre os
preceitos são mais reduzidas do que aparentam. Sabendo que são preceitos tão
distintos por valorizarem dimensões da boa administração distintas, alguns
autores chegam a afirmar que são “false
friends”[26].
Há de facto um problema de diálogo entre os ordenamentos no que toca à boa
administração que pode vir a evidenciar fragilidades na invocação do preceito a
nível europeu, mas o que é certo é a visível discrepância de pensamento e
consagração de uma mesma expressão de “boa administração” revelando as
diferentes perspetivas dos vários ordenamentos jurídicos face à Administração e
os seus atos, daquele que possivelmente é um princípio global.
Conclusão
Num tom de
conclusão, evidentemente que (como já foi referido) existe uma discrepância de
intensidades e até de controlo entre o direito português e o direito
comunitário no que toca à boa administração. Por um lado, enquanto que o artigo
5º do CPA apresenta uma extensão de menor intensidade virada para a vertente
económica das ações administrativas, a boa administração a nível europeu é algo
tão presente e valorizada que se encontra consagrada no artigo 41º CDFUE e,
portanto, como um Direito Fundamental.
Ao
comparar ambos, é necessário ter em conta que o seu âmbito de aplicação acaba
por não ser idêntico logo, apesar de vincular a Administração e todos os seus
atos, o Direito comunitário tem em vista os direitos básicos que protegem um
cidadão ou um particular perante as ações administrativas que, apesar de
discricionárias, têm de ter mínimo de controlo – são os direitos resultantes do
due process of law originários no
direito anglo-saxónico, mas que se propagaram pelos diferentes ordenamentos no
Mundo, passando a ser um núcleo de controlo administrativo global: 41º/2;
41º/3; 41º/4 CDFUE – mas não é por dar mais ênfase a estes aspetos
procedimentais que ignora o conteúdo económico que o ordenamento tem em conta.
Contudo, sendo um direito fundamental, é um terreno claramente jurídico que
exige à Administração condutas que sigam critérios e regras jurídicas para
proteger o leque variado de direitos que os particulares adquirem por serem
também sujeitos de direito europeus.
Ora,
falando em concreto da boa administração presente na ordem jurídica nacional,
este princípio não é tão bem conseguido porque está a ser preenchido por muitos
outros princípios espalhados pelo regime. É um conceito que se desdobra através
de outros princípios ou até em outros preceitos constitucionais – falando
especificamente dos direitos que o artigo 41º tutela – mas, a pura aplicação do
princípio da boa administração talvez tenha apenas como apoio o artigo 5º do
CPA. Todavia, este princípio impõe à Administração Pública uma atividade que se
cinja por critérios de economicidade, agilidade, eficiência e celeridade. Por
um lado, o a eficiência por muita discussão que cause na doutrina, apresenta-se
como um critério outrora situado na dimensão do mérito, que se transfere em
tempos recentes para a dimensão jurídica da administração e, assim, certos
autores passaram a incluir a eficiência como um critério que deve manifestar
tutela jurídica estando também controlada pelos órgãos judiciais. Por outro
lado, a celeridade no artigo 5º CPA demonstra que apesar da vertente
economicista da boa administração, o ordenamento português valoriza também
certos aspetos procedimentais e, dentro do conceito vago que é o referido
artigo, é possivelmente o aspeto que mais facilmente se efetiva em tribunal
para determinar a invalidez de ações administrativas –a decisão de um processo
em prazo razoável, não moroso e longo.
Concluindo,
tal como a Administração Pública para satisfazer o interesse público se divide
em vários ramos, aquilo que é a justiça divide-se em vários princípios e esses
princípios por sua vez em muitos outros no intuito de controlar devidamente as
ações administrativas e, assim, para que estas consigam atingir o seu fim de
forma respeitosa, adequada e conforme à lei e ao Direito. O princípio da boa
administração é um dos vários princípios que foi primeiramente desenvolvido
pela jurisprudência e doutrina que depois se consagrou expressamente no Código
de Procedimento Administrativo com a revisão de 2015. Com tudo o que foi dito,
a evolução da Administração exige novas formas de ação e, consequentemente
novas formas de controlo sendo algo que permanece em constante desenvolvimento,
tendo a ordem jurídica nacional, comunitária e global que a acompanhar
desenvolvendo novos preceitos e ainda consolidando a aplicação e consagração
dos já existentes.
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SERRÃO, Tiago, GOMES, Carla Amado, Neves, Ana F., Vol. I, 6ª edição, AAFDL Editora, Lisboa, 2023 (p. 339-376)
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M., Almedina, 2013
VIEIRA, Vítor, M. Freitas, “O novo Código do Procedimento
Administrativo”, Almedina, Coimbra, 2016
[1] Neste
sentido, entre vários autores, MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, “Teoria Geral do
Direito Administrativo”, 8ª edição, Coimbra, 2021, que refere que a
administração vai mais longe que o princípio da legalidade estrita e que, está
subordinada a parâmetros de juridicidade.
[2] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo” vol. II, 4ª
edição, Coimbra, 2018, p. 31
[3] Idem, p.
32
[4] Referido
exatamente este ponto no preâmbulo do CPA de que alguns preceitos evidenciavam
desconformidade com os restantes instrumentos legais superiores e o
aparecimento de novas exigências “por
força da lei e do direito da União Europeia” pediam uma atualização do
documento. Para além disso, fruto da forte atividade administrativa (quer
nacional, quer internacional), esta revisão surge também para que houvesse
adequação e “enriquecimento” relativo
à doutrina e jurisprudência mais
recente.
[5] PAULO OTERO, “O poder de
substituição em Direito Administrativo” vol. II, Lisboa, 1995 p. 638
[6] A este
respeito, PAULO OTERO, “Manual de Direito administrativo” vol. I,
Almedina, 2013: “Não basta administrar, há sempre que procurar administrar o
melhor possível, obtendo uma ótima administração” p. 78
[7] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo” vol.
II, 4ª edição, 2016 fundamenta
exatamente esta questão afirmando que “O
princípio da prossecução do interesse público, constitucionalmente consagrado,
implica além do mais, a existência de um dever de boa administração.” p. 35
[8] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Teoria Geral…”, 8ª edição, 2021: “estes três
primeiros artigos (3º, 4º, 5º) são o pórtico que fornece o enquadramento aos
artigos subsequentes, que os vêm complementar” p. 133
[9] VÍTOR MANUEL FREITAS VIEIRA, “O novo Código de Procedimento
Administrativo”, Almedina, 2023 refere exatamente a necessidade de ação
ágil, precisa e célere. p. 129
[10] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA “Teoria Geral do Direito Administrativo”,
8ª edição, 2021 p. 158
[11]
Indo ao encontro desta posição, VASCO
PEREIRA DA SILVA defende que o 5º/2 já não é conteúdo respetivo ao
princípio da boa administração que mistura assim, o princípio da organização
administrativa.
[12]
Preâmbulo do Código de Procedimento Administrativo no seu ponto 5 (Decreto-Lei
4/2015, de 7 de janeiro
[13]
“Teoria…”, 8ª edição, 2021o p. 134
[14] “Curso de Direito Administrativo “Vol. II
– p. 36
[15] “Teoria Geral…” 8ª edição, 2021 p. 161
[16] Idem,
p. 165. O autor remete a discussão para o reconhecimento da racionalidade e da
eficiência como valores de grande relevância na afetação dos recursos públicos
para os cidadãos. Histórica e socialmente, a administração está “sujeita a padrões mínimos de aceitabilidade,
no plano da eficiência (…) que habilitam os tribunais a proceder a um controlo
mínimo de razoabilidade das decisões que tome nesse domínio” – censurando
os casos de ineficiência desrazoáveis.
[17] MIGUEL ASSIS RAMUNDO, “Os novos princípios no novo CPA e o
princípio da boa administração, em particular” i. “comentários ao novo Código
do Procedimento Administrativo” 6ª edição, 2023 p. 370
[18] MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, “os novos princípios…”, 6ª edição, 2023, p.
370
[19] Idem, “quer seja entendida como legalidade no contexto do vício do excesso de
poder, quer se trate de afirmação do vício da violação de lei.” p. 290
[20] LUIS CABRAL DA MONCADA, “O princípio geral da Boa Administração no
Direito Administrativo” in “Estudos em homenagem a Mário Esteves de Oliveira”, Almedina,
2018 p. 756
[21] PEDRO COSTA GONÇALVES, “Manual de Direito Administrativo” vol.
I, Almedina, 2020. p.298
[22] Idem, neste sentido Pedro Costa
Gonçalves revela que as Administrações Públicas dos diferentes Estados Membros
“tornam-se também elementos ou peças da
Administração Pública europeia” p.318
[23] CARLA AMADO GOMES, “A boa administração na
revisão do CPA: depressa e bem…”
[24] Neste
sentido CLÁUDIA VIANA em “CDFUE comentada” coordenada por ALESSANDRA
SILVEIRA E MARIANA CANOTILHO, Almedina, Coimbra, 2013, ao analisar o artigo
41º, é defendido que a consagração da boa administração como um Direito
Fundamental suscetível de tutela jurisdicional “afasta a tradicional conceção do dever de boa administração como um
dever imperfeito” p. 487
[25] Indo no
mesmo sentido, MARIO AROSO DE ALMEIDA em
“Teoria…” defendendo que o princípio
da boa administração se afirma como valor jurídico no direito comunitário, mas
no Direito interno parece ter um sentido quase oposto, admite até que a
utilização deste princípio não é feliz por apenas se debruçar com os valores de
teor económico p.169
[26] MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, em “os novos princípios…” referindo
exatamente esta expressão para desenvolver a ideia de que o princípio em
análise como está consagrado a nível nacional, tem poucos pontos de contacto
com o preceito europeu p.354
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