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segunda-feira, 29 de abril de 2024

Fiscalização da Constitucionalidade pela Administração Pública

 

A Fiscalização da Constitucionalidade pela Administração Pública

Por Constança Ayres de Sá Fernandes, nº67907, Turma B

A presente exposição foi realizada a propósito da unidade curricular de Direito Administrativo II, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sob assistência do Senhor Professor Jorge Pação e regência do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva.

I.               Colocação do problema

A Administração Pública detém uma competência fiscalizadora da constitucionalidade? Pode a Administração aplicar leis que tem por inconstitucionais? Existe um dever de rejeição destas leis? Perante que situações podem os órgãos administrativos rejeitar a aplicação de uma norma?

A relevância prática do tema prende-se, em rigor, com esta problemática: diante de uma norma contrária à Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP), ao Direito Internacional, ou até mesmo a leis reforçadas, não tem a Administração Pública o poder, e o dever, de a não aplicar, pois que será nula ou anulável? Levantam-se outras dúvidas subsequentes: não se estará perante uma Administração Pública fragilizada, e até algo mais burocrática, diante desta submissão “cega” à obrigatoriedade de aplicação destas normas que podem vir a ser fonte de resistência dos cidadãos ou até impugnadas contenciosamente?

Ademais, em sequência da possibilidade de fiscalização da constitucionalidade pela Administração Pública, tem-se o dilema da aplicação, por sua parte, de normas que tenha já considerado inválidas, mas às quais se permanece vinculada, por serem antinomias que apenas excecionalmente se resolvem pelo critério hierárquico (problemática que não será estudada neste trabalho, mas que decorre da matéria em causa e para a qual a doutrina tem vindo a responder, maioritariamente, com a “teoria da excecionalidade”).

Numa primeira aceção, o problema coloca-se mediante a construção de um ordenamento jurídico no qual a fiscalização de constitucionalidade é concentrada, ou seja, quando há uma atribuição exclusiva a um Tribunal Constitucional do poder de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, como é o caso do sistema constitucional português. A norma não poderá assim ser mais aplicada pelos tribunais, particulares, ou pela Administração.

Num segundo plano, a discussão decorre de um conflito entre princípios, o da constitucionalidade e o da legalidade, a possibilidade de prevalência de um sobre o outro, colocando-se ainda em questão o princípio de separação de poderes, considerando o poder judicial, exercido pelos tribunais, e o poder administrativo, protagonizado pela Administração Pública. Tem-se apontado aquela que é a possível imiscuidade do poder administrativo no que é um papel a ser exercido pelos tribunais.

No que concerne ao princípio da constitucionalidade, tem-se a subordinação do Estado à Constituição (artigo 2.º, n.ºs 2 e 3 CRP), por força da supremacia da última que impõe, consequentemente, a juridicidade a todas as leis em vigor. Compreende assim os juízos de inconstitucionalidade conferidos aos atos que contrariem o que nela está consagrado, como o sistema que a garante de eficácia.

No nosso ordenamento jurídico, esta função decorre, à partida, dos tribunais exclusivamente. São vários os modelos existentes, seja quanto ao seu controlo, à sua concentração, aos efeitos que despoleta e ainda ao tipo de impugnação (veja-se, quanto a este último, a impossibilidade no direito português de impugnação direta da constitucionalidade das leis ou outros atos do Estado).

Por outro lado, tenha-se em conta o princípio da legalidade, disposto no artigo 3.º Código do Procedimento Administrativo, que prescreve: “1. Os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins.”. Também a CRP dispõe, no seu artigo 266.º, n.º 2 que “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.”.  

Assim sendo, cada órgão administrativo será dotado de uma competência de fiscalização da validade do Direito por ele aplicado, apreciando se este está em concordância com a validade que o sistema exige.  Esta competência emana, implicitamente, do dever de recusar a aplicação de normas inválidas ou inconstitucionais. Por sua vez, esta difere da existência de uma competência que habilite a Administração Pública a rejeitar toda e qualquer norma que tenha por inválida ou inconstitucional.

Estas são, essencialmente, as premissas iniciais para o debate, sendo que cada autor adiciona, posteriormente, outras matérias que lhe pareceram pertinentes de resolução à questão. Por motivos de eficiência e para que não seja realizada meramente uma enumeração taxativa, e até exaustiva, dos argumentos de cada autor, alguns destes foram merecedores de maior destaque, precisamente pela predominância que aparentam ocupar na discussão e que, portanto, se desenvolvem seguidamente.

II.            Posição maioritária[1]: inadmissibilidade de um poder administrativo de rejeição de leis inconstitucionais

Primeiramente, principiamos com um dos vetores principais desta posição: a vinculação direta e imediata que a Administração deve à lei, por força do preceituado do artigo 3.º, n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo[2]. Ora, qualquer lei advém de uma disposição anterior, cuja legalidade e conformidade com a lex superior, a Constituição, terá sido já confirmada, pelo que existiria já uma presunção de constitucionalidade, que deriva da supremacia da Lei Fundamental. Logo, a submissão ao princípio da legalidade impediria a que a Administração Pública deixasse de cumprir a lei com fundamento na sua inconstitucionalidade. Ou seja, perante o conflito entre os princípios da constitucionalidade e o da legalidade, prevaleceria o segundo.

Para a análise desta primeira posição cumpre ainda analisar o reconhecimento do Governo enquanto “defensor da legalidade democrática”[3] (ilidido a partir do disposto no artigo 199.º, alínea f) CRP), que o tornaria titular da competência de fiscalização de validade administrativa de todo o Direito que a Administração Pública aplica (excetuando-se, claro, as autoridades administrativas independentes, cuja fiscalização está sujeita a controlo judicial, e os poderes idênticos que são atribuídos ao poder regional e que não podem prevalecer, em caso de contrariedade, ao poder constitucional do Governo).

Ainda assim, este “traço de personalidade” conferido ao Governo pela CRP, não o torna no órgão de decisão quanto à desaplicação de normas com fundamento na sua invalidade. Tal não significa, atente-se, que este não possa ter uma intervenção no seio da Administração face às estruturas que estão na alçada da sua direção, superintendência e tutela, nas quais deverá promover a ausência de qualquer erro no juízo de invalidade por elas feito. Mas é precisamente esta falta de competência de rejeição de normas inconstitucionais ou ilegais que conduz, como aponta Paulo Otero, à aplicação de normas inválidas pela Administração Pública.

Acresce ainda a esta problemática o facto de apenas o Primeiro-Ministro, e não a Administração Pública, ter legitimidade processual ativa junto do Tribunal Constitucional para despoletar a fiscalização sucessiva abstrata da constitucionalidade e legalidade das normas (artigo 281.º, n.º 2, alínea c) CRP). Consequentemente, ainda que o Governo detenha a competência da defesa da legalidade democrática, está ainda dependente do Ministério Público para o exercício da ação pública, tal como a Administração. Entende o Professor[4] que assim se esquece o papel que o poder judicial tem na defesa da juridicidade vinculativa da ação administrativa.

Consequentemente, obter-se-ia do princípio da constitucionalidade e do princípio da legalidade, a competência da Administração Pública de rejeição das leis inconstitucionais. Contudo, este poder genérico é declinado por razões de segurança jurídica que prevalecerão sobre os efeitos decorrentes da invalidade dos atos, dado que, assim, qualquer órgão que detivesse este poder poderia afastar a norma, conduzindo a uma maior arbitrariedade administrativa, e até a uma verdadeira anarquia[5], daí resultando que a competência seja conferida aos tribunais.

Também bastante categórico na defesa da impossibilidade de a Administração Pública ser fiscalizadora da constitucionalidade, é, por exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa, que defende que o sistema de fiscalização da constitucionalidade é jurisdicional. Entende, portanto, que até à declaração de inconstitucionalidade da lei, esta mantem a sua eficácia e obrigatoriedade, pelo que, posteriormente a esse momento, é que se possibilita a destruição dos efeitos que até aí tenham sido produzidos.

Assim, importa neste ensejo, a distinção entre as funções jurisdicional e administrativa, com vista à compreensão da argumentação utilizada por este, e outros autores da doutrina portuguesa. A função jurisdicional (artigo 202.º CRP) caracteriza-se por ser aquela que é “dependente da Constituição e da lei”[6], que pende sobre a defesa da legalidade, tratando de contrariar qualquer violação à lei. Já a função administrativa assenta numa maior voluntariedade, não sendo o seu cariz totalmente jurídico, mas em parte material. O seu objeto circunscreve-se, como é já sabido, à satisfação do interesse público.

Segundo um critério orgânico, destaca-se a independência dos tribunais no exercício da função jurisdicional, contraposta à integração dos órgãos administrativos numa estrutura hierárquica cujos titulares são passíveis de responsabilização. Tem-se ainda a imparcialidade da primeira, que se opõe à defesa parcial, claro, do interesse público da Administração Pública (ainda que a atuação na sua defesa deva ser pautada pelo princípio da imparcialidade). Também Marcelo Rebelo de Sousa denota a subordinação da função administrativa ao controlo judicial da legalidade da sua atuação[7].

A relevância desta diferenciação materializa-se no facto de ser um ponto fulcral de cisão entre as duas posições, pois que a ausência de um controlo da Administração Pública análoga à dos tribunais, ou seja, de uma disposição homóloga do disposto no artigo 204.º CRP, em sede de fiscalização da constitucionalidade, é que fundamenta a posição desta.

Acresce que, ainda que se permita aos agentes da Administração Pública a possibilidade de apresentação aos seus superiores hierárquicos das consequências de aplicação da lei, os mesmos estão obrigados a cumpri-la até uma possível decisão por inconstitucionalidade, estando assim a ela vinculados, tal como mencionado supra. Ora, apenas os tribunais e o Tribunal Constitucional têm, na opinião de Jorge Miranda, a competência para declarar a inconstitucionalidade da norma[8], pois se qualquer agente administrativo fosse competente para formular um juízo de inconstitucionalidade, este seria facilmente adaptado à sua vontade pessoal, podendo conduzir-se a juízos tendenciosos, causadores de uma inversão na relação a que se assiste entre o administrador e o legislador.

Têm-se então os corolários da axiomática da segurança e da certeza jurídica, como sustento de que a Administração Pública não deverá ter a competência para desaplicar normas inconstitucionais, pelo que se afiguraria como intolerável a imprecisão e a natureza hipotética que se verificaria no caso de órgão distinto dos tribunais serem fiscalizadores de constitucionalidade.

Rui Medeiros desconsidera este argumento, contrapondo que se só os tribunais pudessem julgar a inconstitucionalidade, multiplicar-se-iam os processos e aumentaria a burocratização, exponenciando as situações de grave prejuízo para particulares[9].

Perante a semelhança desta situação com a que se verifica no dever de obediência do subalterno ao superior hierárquico diante de ordens ilegais, a doutrina entende que este apenas cessa quando o cumprimento desses comandos leve à prática de um crime (tal como advém do artigo 271.º, n.º 3, in fine, CRP). Paulo Otero distingue, entendendo que enquanto que a vinculação ao comando determinado pelo superior hierárquico resulta de uma expressa norma que lhe impõe esse dever de obediência, a vinculação da Administração à aplicação de normas inconstitucionais advém da ausência de uma norma que a habilite a desaplicar toda e qualquer norma que se tenha por inválida ou inconstitucional[10].

Jorge Miranda[11] concebe então a existência de um poder de recusa de aplicação de norma inconstitucional pela Administração apenas nos seguintes casos: perante leis inexistentes; quando estiverem em causa direitos cuja suspensão seja insuscetível (artigo 19.º, n.º 6 CRP) e cuja valorização se possa vir a traçar na atividade dos órgãos ou agentes administrativos; ou mediante uma reprodução de uma norma que tenha já sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral (artigo 282.º CRP). Estes cenários densificam-se, principalmente, quando estejamos perante legislação anterior à Constituição, totalmente desconforme com a ideia de Direito, ou quando sejam leis sobre as quais o Tribunal Constitucional se tenha pronunciado pela inconstitucionalidade em sede de fiscalização preventiva, mas que, apesar disso, tenham sido promulgadas e confirmadas.

Já a solução preconizada por Paulo Otero[12] assentaria no reconhecimento aos órgãos administrativos, ou apenas a alguns, de legitimidade processual ativa para solicitarem junto dos tribunais a fiscalização abstrata de inconstitucionalidade ou ilegalidade das normas cuja aplicação seja suscitada, e se encontrem numa antinomia com resolução apenas segundo o critério hierárquico. 

III.          Posição de solução intermédia[13]

Numa posição cuja solução nos parece intermédia face às demais opiniões, tem-se a conceção sufragada por Vieira de Andrade, que apenas diante de uma inconstitucionalidade material é que reconhece à Administração Pública a possibilidade de desaplicação da norma, recusando então a prevalência do princípio constitucional sobre o legal, que os anteriores autores não acompanham.

A rejeição pela “prevalência automática”[14] do direito constitucional sobre o legal, justifica-se pelo facto de estar em causa o juízo dos órgãos administrativos da constitucionalidade da norma e não se esta é, ou não, efetivamente, constitucional. A atribuição de uma competência genérica de desaplicação de normas poderia causar prejuízos tanto aos interesses particulares como aos públicos, desequilibrando o nexo relacional entre a Administração e a Lei. 

Bachof propunha como resolução do problema a possibilidade de a Administração comprovar a constitucionalidade das normas, partindo de uma presunção de constitucionalidade, pelo que se exigiria, posteriormente, apenas uma avaliação sucinta da evidência de inconstitucionalidade da norma. Ou seja, a Administração Pública teria o dever de não aplicar a norma perante uma inconstitucionalidade que fosse patente. Partindo destas premissas, mas adaptando-as a critérios de proporcionalidade, tem-se a posição de Vieira de Andrade[15].

Primeiramente, admite apenas a desaplicação de normas materialmente inconstitucionais, e não formal ou organicamente, sendo que o exercício dessa faculdade competirá sempre aos órgãos superiores da Administração. Assim, um ato que carecesse de assinatura ou a falta de competência do órgão que o aprova (exemplos de inconstitucionalidade formal e orgânica, respetivamente) não seriam casos em que a Administração Pública, segundo esta teoria, pudesse desaplicar a norma. Já uma norma que violasse o regime dos direitos, liberdades e garantias, por exemplo, constituiria uma inconstitucionalidade material, pelo que, nesse caso, a Administração Pública poderia desaplicá-la.

Em segundo lugar, admite a possibilidade de suspensão da aplicação da lei, se não resultar em prejuízos para o interesse público ou para os interesses particulares de maior relevância, sendo que se o órgão tiver apenas dúvidas quanto à inconstitucionalidade, deverá funcionar o critério de presunção de constitucionalidade da lei, por esta advir de um órgão mais competente que o aplicador.

Por fim, perante a inexistência de qualquer dúvida quanto à inconstitucionalidade da norma, deverá ser realizada uma inferência entre os benefícios e as desvantagens da sua desaplicação, optando-se por aquilo que seja menos oneroso. Esta seria a solução que, principalmente, perante matéria de direitos, liberdades e garantias, dotados de aplicabilidade direta, deveria prevalecer, neste entendimento.

IV.          Posição minoritária[16]: admissibilidade de um poder administrativo de rejeição das leis inconstitucionais.

Relativamente à possibilidade de a Administração Pública rejeitar normas que tem como inconstitucionais, Rui Medeiros[17] defende que exista um controlo amplo de fiscalização da constitucionalidade por parte desta.  

Face à vinculação de todos os poderes públicos à Constituição, o Professor alega que recai sobre as autoridades administrativas o exercício de demonstração de inconstitucionalidade do direito que origina das instâncias com legitimidade democrática, pelo que, por essa razão não se deveria invocar o argumento ad terrorem da anarquia administrativa. Acrescenta ainda que as decisões administrativas são passíveis de controlo judicial sucessivo, logo não se suscitaria o problema.

Advoga que o dever de aplicação das leis inconstitucionais pela Administração Pública se afigura como um dever despiciendo de qualquer sanção para os órgãos superiores que a esta pertencem, por não ser gravosa ao ponto de fundamentar a sua aplicação. Mais ainda, que a recusa de aplicação de lei inconstitucional não fundamenta a admissibilidade de responsabilidade civil do Estado por factos ilícitos, dado que a declaração de inconstitucionalidade tem eficácia retroativa, nem produz efeitos em matéria de responsabilidade penal.

Nesta senda, defende que a desobediência à lei inconstitucional tem meramente efeitos disciplinares, mesmo que essa mesma conduta por parte dos órgãos superiores da Administração Pública nunca venha a ser sancionada a esse nível, por serem estes que exercem o poder disciplinar.

Contraria esta posição João Caupers[18], evidenciando que não se pretendeu atribuir à Administração Pública a apreciação de constitucionalidade da lei, precisamente por a norma que evita a que os tribunais apliquem normas inconstitucionais ser distinta daquela que subordina os órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei.

Teresa de Melo Ribeiro[19] reconhece também a existência de um poder administrativo de rejeição de leis inconstitucionais, caracterizado por ser autónomo e quando em causa estejam normas constitucionais diretamente aplicáveis.

A posição da Professora encontra acolhimento na doutrina alemã e italiana. Hofman, por exemplo, defende que a Administração deve suspender a aplicação de norma legal até que uma instância de controlo a declare ilegal ou inconstitucional. Zagrebelsky[20] adota uma posição mais extrema, entendendo que a lei inconstitucional não é obrigatória nem para a Administração (sendo que esta apenas lhe deverá obediência mediante a indiscutibilidade da inconstitucionalidade em causa), nem para particulares, cuja desobediência não é alvo de responsabilização, uma vez que a norma se considerará nula, não produzindo qualquer efeito, antes de o próprio comportamento ser sancionado.

Desta forma, são três os eixos em que a presente posição doutrinária se baseia[21]: 1. a prioridade da lei ordinária face à Constituição, em questão temporal; 2. a densidade normativa dos preceitos constitucionais e 3. o valor jurídico da lei que se tem por inconstitucional.

O primeiro requisito respalda na impossibilidade de contrariedade de lei anterior à entrada em vigor da Constituição de 1976 que se mantém, exceto se contrário a esta ou aos princípios nela ínsitos (artigo 290.º, n.º 2 CRP). Assim, lei anterior em desconformidade com a atual Constituição não obrigaria ao seu cumprimento, principalmente por parte da Administração Pública.

Relativamente ao segundo critério, tem-se o critério da aplicabilidade direta de normas constitucionais, cuja alguma doutrina[22] tem considerado serem as normas do regime de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 1 CRP), as normas de competência e ainda as normas organizatórias. Para além disso, também a aplicação de princípios é imediata e vincula diretamente a Administração Pública.

Por conseguinte, a solução mais adequada com vista a uma maior responsabilidade da Administração propenderia sob a possibilidade de não aplicação de leis violadoras do conteúdo dos direitos, liberdades e garantias por parte desta, e às quais até o cidadão pode recusar aplicação, de acordo com o direito de resistência que lhe assiste (artigo 21.º CRP), pelo que, desta forma, não se compreenderia a negação dessa legitimidade à Administração, que tem o poder de evitar que sejam lesados direitos de particulares.

Quanto ao terceiro pressuposto, a determinação do valor jurídico atribuído ao ato depende do órgão que o aprecie, pois se for um tribunal comum há a desaplicação e posterior ineficácia da norma no caso concreto, mas se for o Tribunal Constitucional, tem-se a destruição retroativa dos efeitos da norma produzidos e a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.

A doutrina tem vindo, contudo, a associar a inconstitucionalidade da lei à sua nulidade, ainda que a Professora opte pela visão atribuída pelo Direito Privado ao conceito[23]: a nulidade repercute a inexistência do preceito na ausência de produção de quaisquer efeitos, não sendo necessária uma declaração judicial para o efeito. Não tendo efeito, a Administração não está vinculada à sua aplicação por esta não ser obrigatória. Isto no âmbito da latência de vício grave, em termos formais, materiais ou orgânicos.  

V.             Posição adotada

Primeiramente, quanto à posição que encontra maior acolhimento doutrinário em Portugal, a da inadmissibilidade de uma competência da Administração Pública de rejeição de leis inconstitucionais, apontam-se algumas questões, possíveis críticas.

Considerando as funções da Administração Pública e o seu fim último de prossecução do interesse público, será que não lhe compete também a realização de Direito que se encontra implícita na Constituição, realizada com independência e responsabilidade? Não se requer, ou até exige, que os agentes administrativos sejam capazes de o fazer?

Para além disso, a apreciação que o subalterno faz da ordem que emana do órgão hierárquico superior sob forma legal e se esta conduz à prática de um crime, parece fazer dele competente para apreciar a sua legalidade. Inversamente, como poderá ele saber a que ordem não poderá obedecer, se não for capaz de examinar essa mesma legalidade? Reconhece-se, porém, que não existe qualquer relação hierárquica entre o que administra a lei e aquele que a elaborou, pelo que este argumento poderá ser algo falacioso.

Tem-se ainda a possibilidade de existir uma contradição, como aponta Teresa de Melo Ribeiro[24], perante o reconhecimento da supremacia da Constituição, enquanto lex superior, e a ausência de reconhecimento de superioridade do princípio constitucional sob o da legalidade. Afirma então que este conflito entre princípios é aparente, pois que a legalidade advém da conformidade constitucional, e se pressupõe diante desta, e que a obediência a uma lei ilegal contraria objetivamente o princípio da constitucionalidade.

Em segundo lugar, no respeitante à posição diametralmente oposta a esta, cumpre também tecer alguns apontamentos.

Principiando no que nos parece mais ponderoso, aponta-se para o argumento apresentado por Jorge Miranda[25], quanto à possibilidade de exponenciar o risco de concentração de poder no Governo, que detém as funções legislativa e, principalmente, administrativa. Acrescendo a estas a possibilidade de fiscalização da constitucionalidade, arriscamo-nos a facilitar um exercício despótico do poder por este e, claro, a inversão do corolário do princípio da separação de poderes.

De seguida, aponta-se para a problemática da burocratização que resultaria da desaplicação da norma pela autoridade administrativa e perante decisão do Tribunal Constitucional que se agravaria mais do que se remetesse apenas para o processo de fiscalização sucessiva, realizada ao abrigo do artigo 281.º CRP. Ademais, não se compreende a posição, tendo em conta o disposto no artigo 280.º, n.º 3 CRP, que releva quanto à obrigatoriedade de recurso para o Tribunal Constitucional se o tribunal administrativo julgar uma norma legislativa inconstitucional.

Colocar-se-ia ainda um outro dilema mediante a prossecução desta posição, uma vez que, se reconhecidas às Administrações Regionais a possibilidade de desaplicar normas, permitir-se-ia que estas contrariassem a vontade do Governo da República. Esta solução afasta-se do espírito previsto pelo artigo 281.º, n.º 2 CRP, que reconhece já ao Primeiro-Ministro e aos Presidentes dos Governos Regionais a faculdade de requerer a apreciação e declaração de inconstitucionalidade.  

Desta forma, pelas razões expostas supra, que nos parecem retirar viabilidade aos cenários propostos pelos autores destas duas soluções, entendemos que a melhor que responde ao problema é a apresentada por Vieira de Andrade. A desconsideração de normas legais estaria então restrita às hipóteses de inconstitucionalidade material, que facultaria à Administração a possibilidade de rejeição da mesma.

Admitir-se-ia a suspensão da eficácia da norma, dependendo se seria causadora de prejuízos para o interesse público ou de interesses particulares de relevância superior, prevalecendo o princípio de presunção da constitucionalidade quando o órgão administrativo apresentasse meras dúvidas quanto a esta, em razão da proveniência legislativa de órgão superior.

Por último, e apenas nesse caso, se não restassem hesitações quanto à inconstitucionalidade da norma, é que seria realizada uma análise ponderada dos benefícios e desvantagens da sua desaplicação, devendo ser escolhida a opção menos gravosa para o interesse público.

Parece-nos que este é o caminho que assegura uma maior democratização da Administração Pública, de suma importância, para que esta seja garante de maior transparência, promovendo um fortalecimento da confiança dos cidadãos diante dos órgãos que os representam. Neste contexto, a unidade e legitimidade da Constituição, também desempenha um papel fundamental de orientação da atividade estatal, sendo que esta solução certifica ainda a proteção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

VI.          Bibliografia

Andrade, José Carlos Vieira de, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ªedição, Coimbra, Edições Almedina.

Caupers, João, Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, 1ªedição, Coimbra, 1985, Âncora Editora.

Gomes Canotilho, José Joaquim, Direito Constitucional, 6ªedição, Coimbra, 1993, Edições Almedina.

Gomes Canotilho, José Joaquim, Moreira, Vital, Constituição da República Portuguesa: anotada, 3ªedição, Coimbra, 1993, Coimbra Editora.

Miranda, Jorge, Fiscalização da Constitucionalidade, 2ªedição, Coimbra, 2022, Edições Almedina.

Medeiros, Rui, A decisão de inconstitucionalidade: Os Autores, o Conteúdo e os Efeitos da Decisão de Inconstitucionalidade da Lei, 1ª edição, Lisboa, 1999, UCP Editora.

Otero, Paulo, Legalidade e Administração Pública: O sentido da vinculação administrativa à juridicidade, 2ªedição, Coimbra, reimpr.2017, Edições Almedina.

Ribeiro, Teresa de Melo, O princípio da imparcialidade da Administração Pública, 1ªedição, Coimbra, 1996, Edições Almedina.

Sousa, Marcelo Rebelo de, O valor jurídico do ato inconstitucional, 1ªedição, Lisboa, 1988.



[1] Jorge Miranda, Fiscalização da Constitucionalidade, 2ªedição, Coimbra, 2022, pp. 226 a 234; Marcelo Rebelo de Sousa, O valor jurídico do ato inconstitucional, 1ªedição, Lisboa, 1988, pp. 233 a 271; José Joaquim Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa: anotada, 3ªedição, Coimbra, 1993, pp. 583 a 585; Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública: O sentido da vinculação administrativa à juridicidade, 2ªedição, Coimbra, reimpr.2017, p. 703 a 715; João Caupers. Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, 1ªedição, Coimbra, 1985.

[2] O número 1 do artigo 3º do Código de Processo Administrativo prescreve que “os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins.”. 

[3] Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública: O sentido da vinculação administrativa à juridicidade, 2ªedição, Coimbra, reimpr.2017, cit., p. 705.

[4] Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública …, ob. cit., p. 710.

[6] Marcelo Rebelo de Sousa, O valor jurídico do ato inconstitucional, 1ªedição, Lisboa, 1988, p. 319.

[7] Marcelo Rebelo de Sousa, O valor …, ob. cit., p. 322.

[8] Jorge Miranda, Fiscalização da Constitucionalidade, 2ªedição, Coimbra, 2022, p. 231.

[9] Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade: Os Autores, o Conteúdo e os Efeitos da Decisão de Inconstitucionalidade da Lei, 1ª edição, Lisboa, 1999, p. 165.

[10] Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública …, ob. cit., p. 711.

[11] Jorge Miranda, Fiscalização …, ob. cit., p. 233.

[12] Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública …, ob. cit., p. 715.

[13] José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ªedição, Coimbra, pp. 200 a 226.

[15] J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais …, ob. cit., p. 204.

[16] Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade: Os Autores, o Conteúdo e os Efeitos da Decisão de Inconstitucionalidade da Lei, 1ª edição, Lisboa, 1999, pp. 157 a 288; Teresa de Melo Ribeiro, O princípio da imparcialidade da Administração Pública, 1ªedição, Coimbra, 1996, pp. 128 a 149.

[17] Rui Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade …, ob. cit., p. 167.

[18] João Caupers, Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, 1ªedição, Coimbra, 1985, p. 157.

[19] Teresa de Melo Ribeiro, O princípio da imparcialidade da Administração Pública, 1ªedição, Coimbra, 1996, p. 135.

[20] Zagrebelsky, Processo Constitucional, pp. 637 a 640.

[21] Teresa de Melo Ribeiro, O princípio da imparcialidade da Administração Pública, 1ªedição, Coimbra, 1996, p. 141.

[22] José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ªedição, Coimbra, 1993, pp. 191 a 194.

[23] Teresa de Melo Ribeiro, O princípio da imparcialidade …, ob. cit., p. 148.

[24] Teresa de Melo Ribeiro, O princípio da imparcialidade …, ob. cit., p. 136.

[25] Jorge Miranda, Fiscalização …, ob. cit., p. 231.

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