A
Fiscalização da Constitucionalidade pela Administração Pública
Por
Constança Ayres de Sá Fernandes, nº67907, Turma B
A
presente exposição foi realizada a propósito da unidade curricular de Direito
Administrativo II, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sob assistência
do Senhor Professor Jorge Pação e regência do Senhor Professor Vasco Pereira da
Silva.
I.
Colocação do problema
A
Administração Pública detém uma competência fiscalizadora da constitucionalidade?
Pode a Administração aplicar leis que tem por inconstitucionais? Existe um
dever de rejeição destas leis? Perante que situações podem os órgãos
administrativos rejeitar a aplicação de uma norma?
A
relevância prática do tema prende-se, em rigor, com esta problemática: diante
de uma norma contrária à Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP),
ao Direito Internacional, ou até mesmo a leis reforçadas, não tem a
Administração Pública o poder, e o dever, de a não aplicar, pois que será nula ou
anulável? Levantam-se outras dúvidas subsequentes: não se estará perante uma
Administração Pública fragilizada, e até algo mais burocrática, diante desta
submissão “cega” à obrigatoriedade de aplicação destas normas que podem vir a
ser fonte de resistência dos cidadãos ou até impugnadas contenciosamente?
Ademais,
em sequência da possibilidade de fiscalização da constitucionalidade pela
Administração Pública, tem-se o dilema da aplicação, por sua parte, de normas
que tenha já considerado inválidas, mas às quais se permanece vinculada, por
serem antinomias que apenas excecionalmente se resolvem pelo critério
hierárquico (problemática que não será estudada neste trabalho, mas que decorre
da matéria em causa e para a qual a doutrina tem vindo a responder, maioritariamente,
com a “teoria da excecionalidade”).
Numa
primeira aceção, o problema coloca-se mediante a construção de um ordenamento jurídico
no qual a fiscalização de constitucionalidade é concentrada, ou seja, quando há
uma atribuição exclusiva a um Tribunal Constitucional do poder de declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral, como é o caso do sistema
constitucional português. A norma não poderá assim ser mais aplicada pelos
tribunais, particulares, ou pela Administração.
Num
segundo plano, a discussão decorre de um conflito entre princípios, o da
constitucionalidade e o da legalidade, a possibilidade de prevalência de um
sobre o outro, colocando-se ainda em questão o princípio de separação de
poderes, considerando o poder judicial, exercido pelos tribunais, e o poder
administrativo, protagonizado pela Administração Pública. Tem-se apontado
aquela que é a possível imiscuidade do poder administrativo no que é um papel a
ser exercido pelos tribunais.
No
que concerne ao princípio da constitucionalidade, tem-se a subordinação do
Estado à Constituição (artigo 2.º, n.ºs 2 e 3 CRP), por força da supremacia da
última que impõe, consequentemente, a juridicidade a todas as leis em vigor.
Compreende assim os juízos de inconstitucionalidade conferidos aos atos que
contrariem o que nela está consagrado, como o sistema que a garante de
eficácia.
No
nosso ordenamento jurídico, esta função decorre, à partida, dos tribunais
exclusivamente. São vários os modelos existentes, seja quanto ao seu controlo, à
sua concentração, aos efeitos que despoleta e ainda ao tipo de impugnação
(veja-se, quanto a este último, a impossibilidade no direito português de
impugnação direta da constitucionalidade das leis ou outros atos do Estado).
Por
outro lado, tenha-se em conta o princípio da legalidade, disposto no artigo 3.º
Código do Procedimento Administrativo, que prescreve: “1. Os órgãos da
Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos
limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os
respetivos fins.”. Também a CRP dispõe, no seu artigo 266.º, n.º 2 que “Os
órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e
devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da
igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.”.
Assim
sendo, cada órgão administrativo será dotado de uma competência de fiscalização
da validade do Direito por ele aplicado, apreciando se este está em
concordância com a validade que o sistema exige. Esta competência emana, implicitamente, do
dever de recusar a aplicação de normas inválidas ou inconstitucionais. Por sua
vez, esta difere da existência de uma competência que habilite a Administração
Pública a rejeitar toda e qualquer norma que tenha por inválida ou
inconstitucional.
Estas são,
essencialmente, as premissas iniciais para o debate, sendo que cada autor
adiciona, posteriormente, outras matérias que lhe pareceram pertinentes de
resolução à questão. Por motivos de eficiência e para que não seja realizada
meramente uma enumeração taxativa, e até exaustiva, dos argumentos de cada
autor, alguns destes foram merecedores de maior destaque, precisamente pela
predominância que aparentam ocupar na discussão e que, portanto, se desenvolvem
seguidamente.
II.
Posição maioritária[1]: inadmissibilidade de um poder
administrativo de rejeição de leis inconstitucionais
Primeiramente,
principiamos com um dos vetores principais desta posição: a vinculação direta e
imediata que a Administração deve à lei, por força do preceituado do artigo
3.º, n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo[2]. Ora, qualquer lei advém
de uma disposição anterior, cuja legalidade e conformidade com a lex
superior, a Constituição, terá sido já confirmada, pelo que existiria já uma
presunção de constitucionalidade, que deriva da supremacia da Lei Fundamental. Logo,
a submissão ao princípio da legalidade impediria a que a Administração Pública
deixasse de cumprir a lei com fundamento na sua inconstitucionalidade. Ou seja,
perante o conflito entre os princípios da constitucionalidade e o da
legalidade, prevaleceria o segundo.
Para
a análise desta primeira posição cumpre ainda analisar o reconhecimento do
Governo enquanto “defensor da legalidade democrática”[3] (ilidido a partir do
disposto no artigo 199.º, alínea f) CRP), que o tornaria titular da competência
de fiscalização de validade administrativa de todo o Direito que a
Administração Pública aplica (excetuando-se, claro, as autoridades
administrativas independentes, cuja fiscalização está sujeita a controlo
judicial, e os poderes idênticos que são atribuídos ao poder regional e que não
podem prevalecer, em caso de contrariedade, ao poder constitucional do
Governo).
Ainda
assim, este “traço de personalidade” conferido ao Governo pela CRP, não o torna
no órgão de decisão quanto à desaplicação de normas com fundamento na sua
invalidade. Tal não significa, atente-se, que este não possa ter uma
intervenção no seio da Administração face às estruturas que estão na alçada da
sua direção, superintendência e tutela, nas quais deverá promover a ausência de
qualquer erro no juízo de invalidade por elas feito. Mas é precisamente esta
falta de competência de rejeição de normas inconstitucionais ou ilegais que
conduz, como aponta Paulo Otero, à
aplicação de normas inválidas pela Administração Pública.
Acresce
ainda a esta problemática o facto de apenas o Primeiro-Ministro, e não a
Administração Pública, ter legitimidade processual ativa junto do Tribunal
Constitucional para despoletar a fiscalização sucessiva abstrata da
constitucionalidade e legalidade das normas (artigo 281.º, n.º 2, alínea c)
CRP). Consequentemente, ainda que o Governo detenha a competência da defesa da
legalidade democrática, está ainda dependente do Ministério Público para o
exercício da ação pública, tal como a Administração. Entende o Professor[4] que assim se esquece o
papel que o poder judicial tem na defesa da juridicidade vinculativa da ação
administrativa.
Consequentemente,
obter-se-ia do princípio da constitucionalidade e do princípio da legalidade, a
competência da Administração Pública de rejeição das leis inconstitucionais.
Contudo, este poder genérico é declinado por razões de segurança jurídica que
prevalecerão sobre os efeitos decorrentes da invalidade dos atos, dado que,
assim, qualquer órgão que detivesse este poder poderia afastar a norma,
conduzindo a uma maior arbitrariedade administrativa, e até a uma verdadeira anarquia[5], daí resultando que a
competência seja conferida aos tribunais.
Também
bastante categórico na defesa da impossibilidade de a Administração Pública ser
fiscalizadora da constitucionalidade, é, por exemplo, Marcelo Rebelo de Sousa, que defende que o sistema de
fiscalização da constitucionalidade é jurisdicional. Entende, portanto, que até
à declaração de inconstitucionalidade da lei, esta mantem a sua eficácia e
obrigatoriedade, pelo que, posteriormente a esse momento, é que se possibilita
a destruição dos efeitos que até aí tenham sido produzidos.
Assim,
importa neste ensejo, a distinção entre as funções jurisdicional e
administrativa, com vista à compreensão da argumentação utilizada por este, e
outros autores da doutrina portuguesa. A função jurisdicional (artigo 202.º
CRP) caracteriza-se por ser aquela que é “dependente da Constituição e da lei”[6], que pende sobre a defesa
da legalidade, tratando de contrariar qualquer violação à lei. Já a função
administrativa assenta numa maior voluntariedade, não sendo o seu cariz
totalmente jurídico, mas em parte material. O seu objeto circunscreve-se, como
é já sabido, à satisfação do interesse público.
Segundo
um critério orgânico, destaca-se a independência dos tribunais no exercício da
função jurisdicional, contraposta à integração dos órgãos administrativos numa
estrutura hierárquica cujos titulares são passíveis de responsabilização.
Tem-se ainda a imparcialidade da primeira, que se opõe à defesa parcial, claro,
do interesse público da Administração Pública (ainda que a atuação na sua
defesa deva ser pautada pelo princípio da imparcialidade). Também Marcelo Rebelo de Sousa denota a
subordinação da função administrativa ao controlo judicial da legalidade da sua
atuação[7].
A
relevância desta diferenciação materializa-se no facto de ser um ponto fulcral
de cisão entre as duas posições, pois que a ausência de um controlo da
Administração Pública análoga à dos tribunais, ou seja, de uma disposição
homóloga do disposto no artigo 204.º CRP, em sede de fiscalização da
constitucionalidade, é que fundamenta a posição desta.
Acresce
que, ainda que se permita aos agentes da Administração Pública a possibilidade
de apresentação aos seus superiores hierárquicos das consequências de aplicação
da lei, os mesmos estão obrigados a cumpri-la até uma possível decisão por
inconstitucionalidade, estando assim a ela vinculados, tal como mencionado supra.
Ora, apenas os tribunais e o Tribunal Constitucional têm, na opinião de Jorge Miranda, a competência para
declarar a inconstitucionalidade da norma[8], pois se qualquer agente
administrativo fosse competente para formular um juízo de
inconstitucionalidade, este seria facilmente adaptado à sua vontade pessoal,
podendo conduzir-se a juízos tendenciosos, causadores de uma inversão na
relação a que se assiste entre o administrador e o legislador.
Têm-se
então os corolários da axiomática da segurança e da certeza jurídica, como
sustento de que a Administração Pública não deverá ter a competência para
desaplicar normas inconstitucionais, pelo que se afiguraria como intolerável a
imprecisão e a natureza hipotética que se verificaria no caso de órgão distinto
dos tribunais serem fiscalizadores de constitucionalidade.
Já Rui Medeiros desconsidera este
argumento, contrapondo que se só os tribunais pudessem julgar a
inconstitucionalidade, multiplicar-se-iam os processos e aumentaria a
burocratização, exponenciando as situações de grave prejuízo para particulares[9].
Perante
a semelhança desta situação com a que se verifica no dever de obediência do
subalterno ao superior hierárquico diante de ordens ilegais, a doutrina entende
que este apenas cessa quando o cumprimento desses comandos leve à prática de um
crime (tal como advém do artigo 271.º, n.º 3, in fine, CRP). Paulo Otero distingue, entendendo que
enquanto que a vinculação ao comando determinado pelo superior hierárquico
resulta de uma expressa norma que lhe impõe esse dever de obediência, a
vinculação da Administração à aplicação de normas inconstitucionais advém da
ausência de uma norma que a habilite a desaplicar toda e qualquer norma que se
tenha por inválida ou inconstitucional[10].
Jorge Miranda[11]
concebe então a existência de um poder de recusa de aplicação de norma
inconstitucional pela Administração apenas nos seguintes casos: perante leis
inexistentes; quando estiverem em causa direitos cuja suspensão seja
insuscetível (artigo 19.º, n.º 6 CRP) e cuja valorização se possa vir a traçar
na atividade dos órgãos ou agentes administrativos; ou mediante uma reprodução
de uma norma que tenha já sido declarada inconstitucional, com força
obrigatória geral (artigo 282.º CRP). Estes cenários densificam-se,
principalmente, quando estejamos perante legislação anterior à Constituição,
totalmente desconforme com a ideia de Direito, ou quando sejam leis sobre as
quais o Tribunal Constitucional se tenha pronunciado pela inconstitucionalidade
em sede de fiscalização preventiva, mas que, apesar disso, tenham sido
promulgadas e confirmadas.
Já
a solução preconizada por Paulo Otero[12]
assentaria no reconhecimento aos órgãos administrativos, ou apenas a alguns, de
legitimidade processual ativa para solicitarem junto dos tribunais a
fiscalização abstrata de inconstitucionalidade ou ilegalidade das normas cuja
aplicação seja suscitada, e se encontrem numa antinomia com resolução apenas
segundo o critério hierárquico.
III.
Posição de solução intermédia[13]
Numa
posição cuja solução nos parece intermédia face às demais opiniões, tem-se a
conceção sufragada por Vieira de Andrade,
que apenas diante de uma inconstitucionalidade material é que reconhece
à Administração Pública a possibilidade de desaplicação da norma, recusando
então a prevalência do princípio constitucional sobre o legal, que os
anteriores autores não acompanham.
A
rejeição pela “prevalência automática”[14] do direito constitucional
sobre o legal, justifica-se pelo facto de estar em causa o juízo dos órgãos
administrativos da constitucionalidade da norma e não se esta é, ou não,
efetivamente, constitucional. A atribuição de uma competência genérica de
desaplicação de normas poderia causar prejuízos tanto aos interesses
particulares como aos públicos, desequilibrando o nexo relacional entre a
Administração e a Lei.
Bachof propunha como resolução do problema
a possibilidade de a Administração comprovar a constitucionalidade das normas,
partindo de uma presunção de constitucionalidade, pelo que se exigiria,
posteriormente, apenas uma avaliação sucinta da evidência de
inconstitucionalidade da norma. Ou seja, a Administração Pública teria o dever
de não aplicar a norma perante uma inconstitucionalidade que fosse patente. Partindo
destas premissas, mas adaptando-as a critérios de proporcionalidade, tem-se a
posição de Vieira de Andrade[15].
Primeiramente,
admite apenas a desaplicação de normas materialmente inconstitucionais, e não
formal ou organicamente, sendo que o exercício dessa faculdade competirá sempre
aos órgãos superiores da Administração. Assim, um ato que carecesse de
assinatura ou a falta de competência do órgão que o aprova (exemplos de
inconstitucionalidade formal e orgânica, respetivamente) não seriam casos em
que a Administração Pública, segundo esta teoria, pudesse desaplicar a norma. Já uma norma que violasse o regime dos direitos,
liberdades e garantias, por exemplo, constituiria uma inconstitucionalidade
material, pelo que, nesse caso, a Administração Pública poderia desaplicá-la.
Em
segundo lugar, admite a possibilidade de suspensão da aplicação da lei, se não
resultar em prejuízos para o interesse público ou para os interesses
particulares de maior relevância, sendo que se o órgão tiver apenas dúvidas
quanto à inconstitucionalidade, deverá funcionar o critério de presunção de
constitucionalidade da lei, por esta advir de um órgão mais competente que o
aplicador.
Por
fim, perante a inexistência de qualquer dúvida quanto à inconstitucionalidade
da norma, deverá ser realizada uma inferência entre os benefícios e as
desvantagens da sua desaplicação, optando-se por aquilo que seja menos oneroso.
Esta seria a solução que, principalmente, perante matéria de direitos,
liberdades e garantias, dotados de aplicabilidade direta, deveria prevalecer,
neste entendimento.
IV.
Posição minoritária[16]:
admissibilidade de um poder administrativo de rejeição das leis
inconstitucionais.
Relativamente
à possibilidade de a Administração Pública rejeitar normas que tem como
inconstitucionais, Rui Medeiros[17] defende
que exista um controlo amplo de fiscalização da constitucionalidade por parte
desta.
Face
à vinculação de todos os poderes públicos à Constituição, o Professor alega que
recai sobre as autoridades administrativas o exercício de demonstração de
inconstitucionalidade do direito que origina das instâncias com legitimidade
democrática, pelo que, por essa razão não se deveria invocar o argumento ad
terrorem da anarquia administrativa. Acrescenta ainda que as decisões administrativas
são passíveis de controlo judicial sucessivo, logo não se suscitaria o problema.
Advoga
que o dever de aplicação das leis inconstitucionais pela Administração Pública
se afigura como um dever despiciendo de qualquer sanção para os órgãos
superiores que a esta pertencem, por não ser gravosa ao ponto de fundamentar a
sua aplicação. Mais ainda, que a recusa de aplicação de lei inconstitucional
não fundamenta a admissibilidade de responsabilidade civil do Estado por factos
ilícitos, dado que a declaração de inconstitucionalidade tem eficácia retroativa,
nem produz efeitos em matéria de responsabilidade penal.
Nesta
senda, defende que a desobediência à lei inconstitucional tem meramente efeitos
disciplinares, mesmo que essa mesma conduta por parte dos órgãos superiores da
Administração Pública nunca venha a ser sancionada a esse nível, por serem
estes que exercem o poder disciplinar.
Contraria
esta posição João Caupers[18], evidenciando
que não se pretendeu atribuir à Administração Pública a apreciação de
constitucionalidade da lei, precisamente por a norma que evita a que os
tribunais apliquem normas inconstitucionais ser distinta daquela que subordina
os órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei.
Teresa de Melo Ribeiro[19]
reconhece também a existência de um poder administrativo de rejeição de leis
inconstitucionais, caracterizado por ser autónomo e quando em causa estejam normas
constitucionais diretamente aplicáveis.
A
posição da Professora encontra acolhimento na doutrina alemã e italiana. Hofman, por exemplo, defende que a
Administração deve suspender a aplicação de norma legal até que uma instância
de controlo a declare ilegal ou inconstitucional. Zagrebelsky[20] adota uma posição mais extrema, entendendo que a lei
inconstitucional não é obrigatória nem para a Administração (sendo que esta
apenas lhe deverá obediência mediante a indiscutibilidade da inconstitucionalidade
em causa), nem para particulares, cuja desobediência não é alvo de
responsabilização, uma vez que a norma se considerará nula, não produzindo
qualquer efeito, antes de o próprio comportamento ser sancionado.
Desta
forma, são três os eixos em que a presente posição doutrinária se baseia[21]: 1. a prioridade da lei
ordinária face à Constituição, em questão temporal; 2. a densidade normativa
dos preceitos constitucionais e 3. o valor jurídico da lei que se tem por
inconstitucional.
O
primeiro requisito respalda na impossibilidade de contrariedade de lei anterior
à entrada em vigor da Constituição de 1976 que se mantém, exceto se contrário a
esta ou aos princípios nela ínsitos (artigo 290.º, n.º 2 CRP). Assim, lei
anterior em desconformidade com a atual Constituição não obrigaria ao seu
cumprimento, principalmente por parte da Administração Pública.
Relativamente
ao segundo critério, tem-se o critério da aplicabilidade direta de normas
constitucionais, cuja alguma doutrina[22] tem considerado serem as
normas do regime de direitos, liberdades e garantias (artigo 18.º, n.º 1 CRP),
as normas de competência e ainda as normas organizatórias. Para além disso,
também a aplicação de princípios é imediata e vincula diretamente a Administração
Pública.
Por
conseguinte, a solução mais adequada com vista a uma maior responsabilidade da
Administração propenderia sob a possibilidade de não aplicação de leis
violadoras do conteúdo dos direitos, liberdades e garantias por parte desta, e às
quais até o cidadão pode recusar aplicação, de acordo com o direito de
resistência que lhe assiste (artigo 21.º CRP), pelo que, desta forma, não se
compreenderia a negação dessa legitimidade à Administração, que tem o poder de
evitar que sejam lesados direitos de particulares.
Quanto
ao terceiro pressuposto, a determinação do valor jurídico atribuído ao ato
depende do órgão que o aprecie, pois se for um tribunal comum há a desaplicação
e posterior ineficácia da norma no caso concreto, mas se for o Tribunal Constitucional,
tem-se a destruição retroativa dos efeitos da norma produzidos e a declaração
de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
A
doutrina tem vindo, contudo, a associar a inconstitucionalidade da lei à sua
nulidade, ainda que a Professora opte pela visão atribuída pelo Direito Privado
ao conceito[23]:
a nulidade repercute a inexistência do preceito na ausência de produção de
quaisquer efeitos, não sendo necessária uma declaração judicial para o efeito.
Não tendo efeito, a Administração não está vinculada à sua aplicação por esta
não ser obrigatória. Isto no âmbito da latência de vício grave, em termos
formais, materiais ou orgânicos.
V.
Posição adotada
Primeiramente,
quanto à posição que encontra maior acolhimento doutrinário em Portugal, a da
inadmissibilidade de uma competência da Administração Pública de rejeição de
leis inconstitucionais, apontam-se algumas questões, possíveis críticas.
Considerando
as funções da Administração Pública e o seu fim último de prossecução do
interesse público, será que não lhe compete também a realização de Direito que
se encontra implícita na Constituição, realizada com independência e
responsabilidade? Não se requer, ou até exige, que os agentes administrativos
sejam capazes de o fazer?
Para
além disso, a apreciação que o subalterno faz da ordem que emana do órgão
hierárquico superior sob forma legal e se esta conduz à prática de um crime,
parece fazer dele competente para apreciar a sua legalidade. Inversamente, como
poderá ele saber a que ordem não poderá obedecer, se não for capaz de examinar
essa mesma legalidade? Reconhece-se, porém, que não existe qualquer relação
hierárquica entre o que administra a lei e aquele que a elaborou, pelo que este
argumento poderá ser algo falacioso.
Tem-se
ainda a possibilidade de existir uma contradição, como aponta Teresa de Melo Ribeiro[24], perante o reconhecimento da supremacia da Constituição,
enquanto lex superior, e a ausência de reconhecimento de superioridade
do princípio constitucional sob o da legalidade. Afirma então que este conflito
entre princípios é aparente, pois que a legalidade advém da conformidade
constitucional, e se pressupõe diante desta, e que a obediência a uma lei
ilegal contraria objetivamente o princípio da constitucionalidade.
Em
segundo lugar, no respeitante à posição diametralmente oposta a esta, cumpre
também tecer alguns apontamentos.
Principiando
no que nos parece mais ponderoso, aponta-se para o argumento apresentado por Jorge Miranda[25], quanto
à possibilidade de exponenciar o
risco de concentração de poder no Governo, que detém as funções legislativa e,
principalmente, administrativa. Acrescendo a estas a possibilidade de
fiscalização da constitucionalidade, arriscamo-nos a facilitar um exercício
despótico do poder por este e, claro, a inversão do corolário do princípio da
separação de poderes.
De
seguida, aponta-se para a problemática da burocratização que resultaria da
desaplicação da norma pela autoridade administrativa e perante decisão do
Tribunal Constitucional que se agravaria mais do que se remetesse apenas para o
processo de fiscalização sucessiva, realizada ao abrigo do artigo 281.º CRP. Ademais,
não se compreende a posição, tendo em conta o disposto no artigo 280.º, n.º 3
CRP, que releva quanto à obrigatoriedade de recurso para o Tribunal
Constitucional se o tribunal administrativo julgar uma norma legislativa
inconstitucional.
Colocar-se-ia
ainda um outro dilema mediante a prossecução desta posição, uma vez que, se
reconhecidas às Administrações Regionais a possibilidade de desaplicar normas, permitir-se-ia
que estas contrariassem a vontade do Governo da República. Esta solução afasta-se
do espírito previsto pelo artigo 281.º, n.º 2 CRP, que
reconhece já ao Primeiro-Ministro e aos Presidentes dos Governos Regionais a
faculdade de requerer a apreciação e declaração de inconstitucionalidade.
Desta
forma, pelas razões expostas supra, que nos parecem retirar viabilidade
aos cenários propostos pelos autores destas duas soluções, entendemos que a
melhor que responde ao problema é a apresentada por Vieira de Andrade. A desconsideração de normas legais
estaria então restrita às hipóteses de inconstitucionalidade material, que
facultaria à Administração a possibilidade de rejeição da mesma.
Admitir-se-ia
a suspensão da eficácia da norma, dependendo se seria causadora de prejuízos
para o interesse público ou de interesses particulares de relevância superior, prevalecendo
o princípio de presunção da constitucionalidade quando o órgão administrativo
apresentasse meras dúvidas quanto a esta, em razão da proveniência legislativa
de órgão superior.
Por
último, e apenas nesse caso, se não restassem hesitações quanto à
inconstitucionalidade da norma, é que seria realizada uma análise ponderada dos
benefícios e desvantagens da sua desaplicação, devendo ser escolhida a opção menos
gravosa para o interesse público.
Parece-nos
que este é o caminho que assegura uma maior democratização da Administração
Pública, de suma importância, para que esta seja garante de maior
transparência, promovendo um fortalecimento da confiança dos cidadãos diante
dos órgãos que os representam. Neste contexto, a unidade e legitimidade da
Constituição, também desempenha um papel fundamental de orientação da atividade
estatal, sendo que esta solução certifica ainda a proteção dos direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos.
VI.
Bibliografia
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Constituição Portuguesa de 1976, 5ªedição, Coimbra, Edições Almedina.
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República Portuguesa: anotada, 3ªedição, Coimbra, 1993, Coimbra Editora.
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Sousa, Marcelo Rebelo de, O valor jurídico do ato inconstitucional, 1ªedição, Lisboa, 1988.
[1]
Jorge Miranda, Fiscalização
da Constitucionalidade, 2ªedição, Coimbra, 2022, pp. 226
a 234; Marcelo Rebelo de Sousa, O valor jurídico do ato inconstitucional, 1ªedição, Lisboa, 1988, pp. 233 a 271; José Joaquim Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição
da República Portuguesa: anotada, 3ªedição,
Coimbra, 1993, pp. 583 a 585; Paulo
Otero, Legalidade e Administração Pública: O sentido da vinculação
administrativa à juridicidade, 2ªedição, Coimbra, reimpr.2017, p. 703 a
715; João Caupers. Os Direitos
Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, 1ªedição, Coimbra, 1985.
[2]
O número 1 do artigo 3º do
Código de Processo Administrativo prescreve que “os órgãos da Administração
Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos
poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins.”.
[3] Paulo
Otero, Legalidade e Administração Pública:
O sentido da vinculação administrativa à juridicidade, 2ªedição,
Coimbra, reimpr.2017, cit., p. 705.
[4]
Paulo Otero, Legalidade
e Administração Pública …, ob. cit., p.
710.
[5]
Paulo
Otero, Legalidade
e Administração Pública, …, ob. cit., p. 713.
[6] Marcelo Rebelo de Sousa, O
valor jurídico do ato inconstitucional, 1ªedição,
Lisboa, 1988, p. 319.
[7]
Marcelo Rebelo de Sousa, O
valor …, ob. cit., p. 322.
[8]
Jorge
Miranda, Fiscalização
da Constitucionalidade, 2ªedição, Coimbra, 2022, p. 231.
[9]
Rui Medeiros,
A decisão de inconstitucionalidade: Os Autores, o
Conteúdo e os Efeitos da Decisão de Inconstitucionalidade da Lei,
1ª edição, Lisboa, 1999, p. 165.
[10] Paulo
Otero, Legalidade e Administração Pública
…, ob. cit., p. 711.
[12]
Paulo
Otero, Legalidade e
Administração Pública
…, ob. cit., p. 715.
[13]
José Carlos
Vieira de Andrade, Os
Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5ªedição, Coimbra, pp. 200 a 226.
[14]
José
Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de
1976, 5ªedição, Coimbra, p. 202.
[15]
J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais …, ob. cit.,
p. 204.
[16]
Rui
Medeiros, A decisão de inconstitucionalidade:
Os Autores, o Conteúdo e os Efeitos da Decisão de Inconstitucionalidade da Lei, 1ª edição, Lisboa, 1999, pp. 157
a 288; Teresa de Melo Ribeiro, O
princípio da imparcialidade da Administração Pública, 1ªedição, Coimbra,
1996, pp. 128 a 149.
[17]
Rui Medeiros,
A decisão de inconstitucionalidade …, ob. cit.,
p. 167.
[18]
João
Caupers, Os
Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, 1ªedição, Coimbra, 1985, p. 157.
[19]
Teresa de Melo Ribeiro, O
princípio da imparcialidade da Administração Pública, 1ªedição,
Coimbra, 1996, p. 135.
[20]
Zagrebelsky, Processo
Constitucional, pp. 637 a 640.
[21]
Teresa de Melo Ribeiro, O
princípio da imparcialidade da Administração Pública, 1ªedição,
Coimbra, 1996, p. 141.
[22]
José Joaquim
Gomes Canotilho, Direito
Constitucional, 6ªedição, Coimbra, 1993, pp. 191 a
194.
[23]
Teresa de Melo Ribeiro, O
princípio da imparcialidade …, ob. cit., p. 148.
[24]
Teresa
de Melo Ribeiro, O
princípio da imparcialidade …, ob. cit.,
p. 136.
[25]
Jorge
Miranda, Fiscalização
…, ob. cit., p. 231.
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