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sábado, 20 de abril de 2024

Discricionariedade Administrativa: a sua evolução e as suas complexidades

      A Administração atua através de procedimentos administrativos que regulam o modo da Administração atuar, do princípio até ao fim, mas para além dos procedimentos a lei estabelece as regras materiais e, em qualquer atuação administrativa prevista na lei, há sempre uma dimensão da discricionariedade que não pode ser anulada nem pode deixar de ser considerada, a lei realiza-se através das escolhas porque estas, diferentemente de serem livres, são determinadas pela norma legal que atribui a competência e por todo o ordenamento jurídico que naquela perspetiva material e sem fronteiras, estabelece parâmetros decisórios para a Administração e permite que esses parâmetros, por um lado são parâmetros de atuação, mas, por outro lado, são parâmetros de controlo que permite a verificação do cumprimento desses parâmetros por parte dos Tribunais.

       O poder discricionário, no seu sentido normativo, é um poder de realização do espírito e da letra da lei, interpretando e aplicando aquela lei àquele caso em concreto e tomando as decisões legais adequadas à solução daquele caso.

      O legislador quando estabelece uma competência, quando cria poderes jurídicos para atuar, o legislador estabelece o modo como esses poderes devem ser exercidos quer eles impliquem escolhas ou não por parte da Administração.

        Seja no caso da vinculação, seja no caso da possibilidade de escolha, a escolha é pautada por critérios legais porque os princípios da ordem jurídica, sejam administrativos, sejam constitucionais, sejam europeus, sejam exemplo daquilo a que o Professor Marcelo Caetano dizia que era um caso de um ato discricionário, a própria expressão era um disparate como explicou o Professor Freitas do Amaral, e bem na perspetiva do Sr. Professor Regente, há poderes discricionários e poderes vinculados, ambos existem sempre em simultâneo.

 Contudo, na lógica tradicional, o Professor Marcelo Caetano dizia que a Administração tem poderes, estes podem determinar uma vinculação ou uma discricionariedade.

Se estivermos perante uma discricionariedade, a Administração pode fazer o que quiser, o exemplo que o Professor Marcelo Caetano dava era a governação dos governadores civis (membros do Governo atualmente), a nomeação de um membro do Governo é uma escolha do primeiro-ministro e com uma grande dose de discricionariedade, mas o primeiro-ministro não pode escolher um estrangeiro, um menor, alguém que seja da sua família política ou não, alguém que já infringiu a lei, ou seja, a escolha não é livre, a escolha é determinada pelo princípio da imparcialidade, da igualdade e por um conjunto de princípios que condicionam aquela escolha.

Na altura em que o Sr. Professor Regente Vasco Pereira da Silva estava a lecionar esta matéria, falou sobre o estado político atual: se houvesse um problema com determinado Governo que, em um ano, tivesse de demitir 14 ministros por corrupção, era porque havia ali algum problema naquelas escolhas, essas escolhas não foram feitas de acordo com os critérios legais.

Neste exemplo, verifica-se que não foram cumpridos os princípios da imparcialidade e da igualdade, as decisões foram tomadas sem ter em consideração os critérios mais adequados.

 

Para desenvolvimento dos mesmos, eis as características dos dois princípios.

De acordo com o Professor Freitas do Amaral[1], o princípio da imparcialidade impõe, numa formulação sintética, que os órgãos e agentes administrativos ajam de forma isenta e equidistante relativamente aos interesses em jogo nas situações que devem decidir ou sobre as quais se pronunciam sem carácter decisório.

Se há duas partes em contenda e vem um terceiro procurar separá-las, ou dizer quem tem razão, esse terceiro, para ter autoridade e ser respeitado pelos contendores, tem de ser imparcial – o que significa que tem de estar numa posição fora e acima das partes (com se diz em latim, super partes).

Esta noção vem do Direito Processual e da prática dos tribunais. É por isso que a estátua que costuma representar a justiça é uma figura humana com dois pratos e uma venda nos olhos. Ora, se a balança procura naturalmente representar a ideia de igualdade, a venda nos olhos procura representar a ideia de que a justiça deve ser cega, i.e., não deve determinar-se em função da amizade ou da inimizade para com qualquer das partes.

       Dispõe-se no art.º 9 do Código de Procedimento Administrativo (CPA) que a “Administração Pública deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entrem em relação, designadamente considerando como objetivo todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório e adotando as soluções organizatórias e procedimentos indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção”.

 

       Subdivide-se em duas vertentes: a negativa e a positiva.

       Na vertente negativa, é a ideia de que os titulares de órgãos e os agentes da Administração Pública que estão impedidos de intervir em procedimentos, atos ou contratos que digam respeito a questões do seu interesse pessoal ou da sua família, ou de pessoas com quem tenham relações económicas de especial proximidade, a fim de que não possa suspeitar-se da isenção ou retidão da sua conduta.

          Este dever de não intervir em certos assuntos para não haver suspeita de parcialidade é depois aprofundado pela lei ordinária (CPA, arts. 69º a 76º).

      Distingue-se dois tipos de situações: as situações de impedimento e as situações de suspeição. Os casos qualificados como situações de impedimento são mais graves do que os qualificados como situações de suspeição.

          A grande diferença que existe é esta: havendo um situação de impedimento, é obrigatória por lei a substituição do órgão ou agente administrativo normalmente competente por outro, que tomará a decisão no seu lugar. Portanto, a pessoa que se encontra, legalmente, na situação de estar impedida de participar na decisão de um determinado caso é substituída por outra pessoa, em relação à qual não haja motivos de impedimento, e que possa, portanto, com imparcialidade, pronunciar-se sobre o assunto.

            Nas situações de suspeição, a substituição não é automaticamente obrigatória (bold meu), a substituição é apenas possível, tendo de ser requerida pelo próprio órgão ou agente que pede escusa de participar naquele procedimento, ou pelo particular que opõe uma suspeição àquele órgão ou agente e pede a sua substituição por outro. 

            As situações de impedimento e de suspeição estão enumeradas no art.º 69/1 do CPA.

 

        Como é que se processa então a questão do impedimento? O órgão ou agente tem o dever jurídico de se considerar impedido sempre que esteja numa das situações que a lei prevê; deve comunicá-lo imediatamente ao seu superior hierárquico ou ao órgão colegial a que pertença ou de que dependa. E estes órgãos, conforme os casos, tomarão a decisão sobre se há ou não impedimento (art.º 70 CPA).

          Se não há impedimento, acaba por morrer ali o problema e o órgão ou agente em causa tem legitimidade para decidir a questão sobre a qual se suscitou a dúvida; se for declarado que há impedimento, então ele é imediatamente substituído, e é-o, em princípio, por aquele que a lei designar como seu substituto legal, salvo se, como diz o art.º 72 do CPA, o órgão competente para o efeito resolver avocar a decisão da questão. Tratando-se de um órgão colegial, este funcionará sem o membro impedido (art.º 72/2 CPA). 

         Em caso de suspeição, as coisas passam-se de forma diversa. Perante uma situação em que a lei considera ser uma suspeição, a lei dá ao órgão ou agente administrativo o direito de pedir escusa de intervenção naquele procedimento, assim como dá aos particulares interessados no procedimento o direito de oporem suspeição ao órgão normalmente competente, pedindo a sua substituição. Quer num caso quer no outro, o órgão competente, segundo a lei, decidirá se há ou não fundamento para a suspeição. Se não houver, o órgão ou agente em causa continua em funções e fica legitimado para intervir no procedimento; se houver, é feita uma declaração de suspeição, e segue-se a substituição do órgão ou agente por aquele que o deva substituir no exercício da competência (art.º 75º, que faz remissão para o regime do impedimento).

 

       Quais as sanções para o desrespeito deste princípio? A sanção para quem esteja impedido de intervir e mesmo assim intervém ou tenha sido declarada a suspeição, será a anulabilidade (art.º 76/1 CPA).

         São atos ilegais, feridos de uma anulabilidade, o que permite levá-los a Tribunal e obter a sua anulação. 

        Todo o órgão ou agente administrativo que não comunique a quem de direito uma situação de impedimento em que se encontre comete falta disciplinar grave (76º/2 CPA).

        Fora já do CPA, há uma sanção prevista no art.º 8/2 da Lei nº 27/96, de 1 de agosto. Essa lei impõe a perda de mandato a todos os membros de órgãos autárquicos que violem as garantias de imparcialidade da Administração previstas na lei. Basta violarem uma vez para que o Ministério Público possa propor uma ação de perda de mandato e se siga naturalmente, como sanção, a perda efetiva do mandato. Utilizando as palavras do Professor Freitas do Amaral, “estranhamente” a lei não estabelece nenhuma sanção deste tipo para os restantes órgãos da Administração Pública (membros do Governo, dirigentes de institutos públicos, etc). Esta matéria está bastante carecida de revisão, no CPA, para melhor se poder evitar e combater a corrupção.

 

      Quanto à vertente positiva, aparece como significando um dever, por parte da Administração Pública, de ponderar todos os interesses públicos secundários e os interesses privados legítimos, equacionáveis para o efeito de certa decisão, antes da sua adoção. Devem-se considerar parciais os atos ou comportamentos que manifestamente não resultem de uma exaustiva ponderação dos interesses juridicamente protegidos.

       Esta obrigação de comparação definitiva implica um apreciável limite à discricionariedade administrativa, não só pela exclusão que comporta qualquer valoração de interesses estranhos à previsão normativa, mas principalmente porque o real poder de escolha da autoridade pública só subsiste onde a proteção legislativa dos vários interesses seja de igual natureza e medida. Nesta vertente, encontrará o juiz administrativo a via para anular os atos que se demonstrem terem sido praticados sem a ponderação de interesses nos termos mencionados. 

     A ausência de ponderação dos diferentes interesses em jogo – a qual, na maioria dos casos, é detetada através da análise da fundamentação do ato decisório – é, pois, o vício em que o princípio da imparcialidade aparece a suportar, ao lado dos restantes princípios jurídicos, a injunção da racionalidade decisória, caracterizando-se, justamente, por refletir a decisão que não é sustentada numa ponderação. A ausência de ponderação (bem como uma ponderação insuficiente ou mal feita) é, portanto, um vício da decisão que traduz a realização de um processo de decisão aleatório, no qual não são ponderados os interesses em jogo.

      Na nova formulação do princípio, como salienta Miguel A. Raimundo, “[…] salta à vista a distinção entre a preservação da isenção administrativa e a confiança nessa isenção, o que constitui mais um elemento sobre a discussão sobre se (fora do âmbito dos impedimentos), o princípio da imparcialidade deve considerar-se violado apenas quando se demonstrou que houve uma atuação parcial, ou se é suficiente o mero perigo para essa isenção”.

 

    Importa também relevar um ponto que é o de podermos ou não reconduzir a noção de imparcialidade à noção de justiça, ou se se tratará de noções diversas, com significados autónomos, e que se movimentam cada uma no seu plano.

       Bom, do ponto de vista do Prof. Freitas do Amaral, este princípio não é uma mera aplicação da ideia de justiça. O princípio da imparcialidade pode proibir que os órgãos da Administração Pública intervenham em certos procedimentos administrativos, ou tomem certas decisões, para evitar a suspeita de que estejam a atuar com parcialidade. Contudo, a Administração pode violar as garantias da imparcialidade intervindo num procedimento em que a lei o proíbe de intervir, mas a decisão ser justa e imparcial e o contrário também – pode haver um órgão que não tem qualquer motivo de suspeição e praticar um ato afetado de parcialidade.

       Portanto, o princípio não pode ser tido como corolário do princípio da justiça, mas antes como aplicação de uma ideia diferente, que é a proteção da confiança dos cidadãos na seriedade e honestidade da Administração Pública do seu país.

        O que se pretende com o princípio da imparcialidade é que não haja razões para suspeitar, à partida, da imparcialidade dos órgãos competentes que vão tomar a decisão, é o velho princípio de que ninguém pode ser juiz em causa própria, alargado da esfera judicial à da Administração Pública.

 

            

Falando agora do outro princípio, o da igualdade.

De acordo com a Dissertação de Mestrado em Direito e Ciência Jurídica, especialidade em Direito Administrativo, sob orientação do Senhor Professor Doutor Jorge Reis Novais, do Senhor Professor Pedro Miguel Vieira Estevão[2], declara-se que, numa definição estipulativa de igualdade, esta significa uma relação entre, pelo menos, dois termos, cuja aferição se processa através de um juízo comparativo recorrendo a um critério comum de comparação ou mesmo vários. 

Deste modo, a igualdade consiste num juízo em que cabe:

                        - selecionar termos de comparação;

                        - estabelecer um critério de comparação;

                        - compará-los nas suas semelhanças e diferenças.

Com efeito, a igualdade possui prima facie, dois elementos constitutivos:

                        - a pluralidade;

                        - comparabilidade.

No entanto, em bom rigor, a pluralidade está pressuposta na comparabilidade, na medida em que comparar implica que haja termos de comparação, pelo que falar em pluralidade é redundante.

      Através da definição de igualdade pode elaborar-se a definição de desigualdade, na medida em que esta última consubstanciará, logicamente, o reverso da primeira. Com efeito, na definição de desigualdade apenas se altera o elemento da definição de igualdade enunciada, ou seja, há um apuramento das coisas como diferentes.

       No fundo, o que é igual num plano é desigual noutro, numa lógica de infinitas possibilidades de comparação. Na medida em que o conteúdo normativo da igualdade incorpora, por inerência, o conceito de igualdade, a observação da ambiguidade e as suas consequências também surgem suscitadas nesse âmbito.

 

         De acordo com o Diário da República[3], o princípio da igualdade, que decorre do art.º 13 e do nº2 do art.º 266 da CRP, está igualmente consagrado no art.º 6 do CPA, estabelecendo-se que, nas suas relações com os particulares, a Administração Pública não pode privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever ninguém em razão de uma série de elementos que lhe sejam característicos (ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual).

         O princípio visa, no fundo, assegurar o tratamento de modo idêntico daquilo que é idêntico e de modo desigual daquilo que é diferente ou que não é idêntico. 

            Tem-se entendido que o princípio da igualdade se desdobra em duas vertentes:

                        - a da proibição de discriminação (vertente negativa): uma medida é violadora do princípio da igualdade se estabelecer uma igualdade ou diferenciação de tratamento para a qual, à luz do objetivo visado, não existe justificação material suficiente; 

                        - a da obrigação de diferenciação (vertente positiva): dever de implementação de medidas administrativas que estabeleçam um tratamento desigual para as situações que forem diferentes (por exemplo, em razão de carências físicas ou sociais), ou seja, que constituam discriminações positivas.

            A primeira vertente, esquematicamente, o iter cognitivo a seguir para averiguar se uma medida administrativa é ou não discriminatória é, sinteticamente, o seguinte[4]:  

          - primeiro, perscruta-se, através da interpretação, o fim visado pela medida administrativa;

                  - depois isolam-se as categorias que, para realizar tal fim, são, nessa medida, objeto de tratamento idêntico ou diferenciado;

              - finalmente, questiona-se se, para a realização do fim tido em vista, é ou não razoável, à luz dos valores dominantes do ordenamento, proceder àquela identidade ou distinção de tratamento: se é razoável, não há violação do princípio da igualdade; se não é, então há violação do princípio da igualdade.

 

     A segunda vertente, parte da ideia de que a igualdade não é uma igualdade absoluta e cega.

    O princípio da igualdade manda tratar por igual as situações que forem juridicamente idênticas, mas, já desde Aristóteles, aceita e exige um tratamento desigual para as situações diferentes. Daí que haja, na própria Constituição e nas leis, a previsão da adoção de medidas administrativas especiais de proteção em relação aos mais desfavorecidos, em relação às classes mais pobres da sociedade, ou em relação àqueles grupos de pessoas que, pela sua situação física ou social, careçam de uma proteção mais forte, designadamente a proteção especial à infância, à juventude, à terceira idade, aos trabalhadores, etc. É também ao abrigo desta noção que se tem defendido, sobretudo a partir dos EUA, a ideia de “proteção das minorias”, que se apresenta como ideia muito forte nas atuais democracias ocidentais e de que decorre a necessidade de tratar desigualmente o que deve vir a ser igual mas ainda é desigual (são as chamadas discriminações positivas, como já foi mencionado anteriormente).

 

        Com estes dois princípios conjugados com o exemplo da demissão dos 14 ministros, muito possivelmente podiam estar em causa estas vertentes, tanto de um como de outro.

 

    E, portanto, voltando ao exemplo do Professor Marcelo Caetano, mesmo a decisão de escolha de um ministro, se tem uma margem de escolha porque a lei não diz que tem de escolher um cidadão de 40 anos, licenciado em economia, não diz e nem tem de dizer, mas aquela escolha tem de ser determinada por todos os critérios do ordenamento jurídico.

    Há aqui uma nova perspetiva para o poder discricionário. Na Alemanha diz-se que há também um conceito novo, que em Portugal já se começou a adotar, que é a ideia da discricionariedade reduzida a zero. Diz a doutrina alemã que há casos em que a lei prevê uma possibilidade de escolha, mas analisando as circunstâncias do caso concreto, essa discricionariedade reduz-se a uma única opção correta de acordo com a lei. A discricionariedade reduziu-se a zero, quer dizer que, nessa altura, não há qualquer margem de escolha, a única solução legal é aquela. Mas isto, é um caso extremo, isso acontece com alguma raridade, o que é normal é que perante uma determinada situação e depois de interpretar a lei e aplicar ao caso concreto, chega-se à conclusão que haveria, teoricamente, 5, 6, 7 opções legalmente possíveis, mas que nas circunstâncias daquele caso essa margem de discricionariedade se produziu a duas ou a três, não eliminou a escolha, a escolha continua a existir, mas a escolha legal está limitada a esses três casos.

    Isto é um novo Direito Administrativo, o CPA estabelece, no domínio das ações de condenação que, mesmo quando está em causa o exercício do poder discricionário e mesmo que o juiz não se possa substituir à administração na tomada de decisão discricionária, o juiz pode verificar primeiro se a discricionariedade se reduziu a zero e nesse caso impor uma determinada conduta, mas nos casos em que não for esse caso, o juiz pode dizer que a sentença, naquele caso concreto, implica apenas uma decisão perante três opções porque as outras três são ilegais, violam regras e princípios constitucionais.

 

      Vamos agora analisar a evolução deste pensamento observando algumas das posições clássicas de professores da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. A noção dupla de vinculação e de discricionariedade:

                      - Professor Marcelo Caetano – lógica tradicional;

             - Professor Freitas do Amaral – sendo discípulo de Marcelo Caetano e tendo continuado muitas das coisas, foi o reformador deste no quadro do Estado de Direito democrático;

                   - Professor Sérgio Correia – tratou da questão da discricionariedade na sua tese de doutoramento;

                   - Professor Vasco Pereira da Silva – partindo desta base que aprendeu, o Professor aprendeu pela cartilha do Professor Marcelo Caetano, via Professor Freitas do Amaral e, depois, à medida que evolui foi transformando, depois aprendeu com o Professor Sérgio Correia e, à medida que foi investigando sobre estas matérias, adquiriu uma perspetiva que completa e continua estas perspetivas anteriores.

            

        Ao longo das várias análises, acrescentarei as críticas feitas pelo Sr. Professor Regente.

 

Professor Marcelo Caetano

        A Administração é livre de fazer aquilo que entender.

        Apesar da liberdade ser uma característica dos indivíduos, não é dos poderes, os poderes não são livres, são realidades inventadas que têm uma vontade jurídica e que é uma vontade que existe para cumprir os ditames da lei.

        A própria ideia de liberdade é um disparate, o Professor Marcelo Caetano dizia que havia atos discricionários e atos vinculados, os primeiros eram livres e a administração podia fazer o que quisesse. 

        O Sr. Professor Regente afirma que não há liberdade, pegando no exemplo dos ministros, é uma escolha para o exercício de um cargo, tem a ver com as aptidões dos candidatos, as funções e os fins que levam à escolha daquele cidadão e a realização de todos os critérios da ordem jurídica. E, portanto, não há liberdade.

        Não faz sentido falar sequer em atos discricionários e atos vinculados. Todos os atos têm aspetos discricionários e aspetos vinculados. O que há são aspetos vinculados em todos os poderes discricionários e esses aspetos são sempre suscetíveis, por um lado, de servir de parâmetro decisório, e por outro, de servir de controlo de decisão. 

       O Professor Marcelo Caetano ainda foi mais longe, dizia ao mesmo tempo que havia, na sua perspetiva, dois vínculos que, externamente, não eram vínculos internos porque a discricionariedade não podia ser considerada do ponto de vista interno, a tal ideia da reserva de lei (teorizada pelo Professor Sérgio Correia), é a ideia de que havia dois vínculos que, mesmo no âmbito daquilo que ele chamava de atos discricionários, poderiam ser controlados. 

        Os dois vínculos eram o vínculo da competência e o vínculo do fim. Ao falar do vínculo do fim, o Professor Marcelo Caetano estava a dar um passo em frente ao dizer que os fins da atuação administrativa são vinculativos e que esses fins merecem ser controlados. 

    Um caso clássico que demonstra isso mesmo, é o caso dos anos 60, de uma senhora enfermeira na Maternidade de Alfredo da Costa que, nesse ano, houve uma troca de bebés, alguém conseguiu entrar na maternidade e trocá-los.

      Resumidamente, o Diretor acusou a enfermeira de ter trocado os bebés. Despediu-a porque era a que se comportava pior, chegava tarde, era “respondona”, não andava bem vestida e era a primeira a sair do serviço.

     Havia aqui, claramente, uma violação do fim daquele poder do Diretor, o poder de punir aqueles que protelavam, mas punir em função daquilo que se fez, em função da culpa e do caso existente, e aquelas faltas leves da enfermeira, cujo nome era Maria da Conceição, não podiam justificar a expulsão da mesma.

     E, portanto, o Tribunal, de uma forma pioneira, seguindo os ensinamentos do Professor Marcelo Caetano, anulou aquela demissão e reintegrou-a na Administração Pública.

       Foi anulada por violar uma regra de vinculação e um princípio administrativo: competência de punir mas exercida sem cumprir o fim legal dessa competência e o princípio da proporcionalidade porque a punição tinha de ser adequada à falta que foi produzida.

        Assim, não era um controlo interno, mas sim externo. Na opinião do Sr. Professor Regente, na lógica do Direito Administrativo e no quadro do princípio da legalidade, tudo é interno e externo, nada exclusivamente interno, as coisas têm simultaneamente uma dimensão externa e interna.

 

Professor Freitas do Amaral

        O Professor Freitas do Amaral vai mais longe do que o Professor Marcelo Caetano e vem dizer que não há atos discricionários nem atos vinculados, cada ato administrativo corresponde ao exercício de poderes discricionários e poderes vinculados. Portanto, existem sempre as duas realidades em qualquer circunstância, uma posição dos anos 80.

        Ao dizer isto, o Professor Freitas do Amaral está a dizer que todos os atos são controláveis no domínio das suas vinculações legais e que permite aumentar o controlo da legalidade de um ato administrativo, mas, por outro lado, eis a crítica do Sr. Professor Regente, esta afirmação vinha acompanhada da ideia de que a administração era livre e que ela podia fazer em tudo o que fosse discricionário, podia fazer o que entendesse, ora isto não é verdade não são apenas os poderes que são discricionários ou vinculados, mas em cada um dos poderes há aspetos discricionários e vinculados.

 

Professor Sérgio Correia

          O Professor Sérgio Correia, acerca do princípio da legalidade, usa a lógica alemã de falar em margens de apreciação e margens de decisão.

    O Professor Sérgio Correia traduz esta apreciação alemã, as duas, a expressão é Spielzeugzimmer, é um quarto de brinquedos; na teoria dos jogos, há um jogo em que se toma uma decisão, mas este tem regras e, portanto, introduz a ideia de que há um controlo vinculado dessa atuação.

     E no quadro do direito alemão costumam-se falar em duas dimensões do jogo: “das Schauspielhaus der Entscheigung”, que é a casa de brinquedos da decisão (traduzido à letra), o jogo da decisão e o “Beurteilung vor der Entschiedung que é a avaliação prévia à decisão que também corresponde a uma margem de livre apreciação, não apenas da decisão final, mas também o processo de como se chegar à decisão final.

         O Sr. Professor Regente pensa que estas expressões alemãs, que são mesmo difíceis de traduzir, não correspondem à margem de livre apreciação nem de livre expressão, o professor acha que a margem é uma decisão certa e que a livre é que está lá a mais, aliás não está, foi o Professor Sérgio Correia que acrescentou e não devia ter acrescentado porque isso introduziu uma amplitude que é oposta do direito alemão dos nossos dias. Mas o Professor Sérgio Correia ainda dá uma outra dimensão que é a de estas duas da decisão e da avaliação não corresponderem a todo o universo de discricionariedade. A primeira das discricionariedades é a interpretação da lei.

        Os positivistas do século XIX entendiam que interpretar era um poder vinculado mas, como qualquer pessoa, apercebe-se que, por exemplo, os professores quando dão a matéria de Direito Administrativo ou outra àrea que envolva interpretação, estão a dar o seu melhor e a construir a sua solução acerca da matéria, têm opiniões diferentes.

            Portanto, a única coisa que o jurista tem de fazer é escolher a interpretação mais adequada em função dos parâmetros legislativos, em função da letra e em função do espírito da lei.

            O Professor Sérgio Correia, na perspetiva do Sr. Professor Regente, esqueceu-se da discricionariedade de interpretação e depois juntou a isto a ideia da reserva de administração. Não há reserva nenhuma da administração, qualquer juiz pode controlar o poder discricionário, que é um poder legal só que é distinto do poder vinculado, tem de controlar de outra maneira, mas com a mesma intensidade.

 

Professor Vasco Pereira da Silva

      O Professor Vasco Pereira da Silva, o Sr. Professor Regente, entende o poder discricionário e o poder vinculativo de uma forma diferente das que já foram mencionadas. O que está aqui em causa é o procedimento que começa pela interpretação da lei, depois a aplicação da lei aos factos e num terceiro momento a tomada das escolhas necessárias à decisão administrativa.

          Como o Professor diz é pegar na “law in the books” e aplicá-lo à realidade, “law in action”.

Esta experiência faz-se perante qualquer poder, seja ele discricionário ou vinculado, é uma experiência jurídica que corresponde a uma realidade cultural que vai interpretar a lei fazendo uma primeira escolha, portanto, há uma margem de escolha quando se interpreta a lei porque é preciso pegar na letra da lei, integrá-la no espírito do texto legislativo, integrá-la depois na lógica constitucional e compará-la com outros textos e depois vê-la à luz do Direito Europeu e global.

Eis as etapas até à decisão jurídica:

                        - momento da interpretação: determinação do sentido da norma de acordo com critérios normativos que obriga a escolhas que podem ser erradas, quando não se utilizam parâmetros legais, mas quando se utilizam podem ser discricionárias, podem implicar uma margem de escolha e vão obrigar a optar. Misturam-se aspetos discricionários e aspetos vinculados, não é um momento vinculado. Existem opiniões diferentes de legislador para legislador, em cada Tribunal pode se decidir de forma diferente e cada uma das partes tem uma visão diferente. São escolhas legais;

                        - momento da apreciação dos factos: obriga a escolhas porque ao observar os factos, obriga a que haja operações jurídicas que podem ser mais ou menos discricionárias, a lei pode determinar que a Administração calcule um valor de um bem ao preço de mercado, uma operação matemática que deve fazer e introduz uma margem de escolha, ou pode haver utilização de critérios técnicos ou de justiça e, portanto, há necessidade de fazer escolhas quando se aplica as normas aos factos;

                        - momento da decisão: também tem uma margem de decisão de escolha maior ou menor.

 

     Em suma, e nas palavras do Sr. Professor Regente, o Professor define o poder discricionário como um poder legal de tomar as decisões estabelecidas na lei e às vezes a lei permite que haja essa opção e não tem outro remédio se não permitir, não é possível determinar todas as hipóteses, há sempre hipóteses extraordinárias que aparecem e que obrigam a decisões diferentes e é preciso saber aquelas que são legítimas, aquelas que cabem na interpretação correta da lei e as que não são, as que não são podem ser afastadas, são uma ilegalidade no exercício do poder discricionário. As que são aceitáveis, umas são melhores decisões tomadas, outras são as medianas, aquelas que não forem exploradas até ao último milímetro, mas estão conforme a lei, nos termos da lei, dentro dos parâmetros legais.

       A discricionariedade administrativa também está bastante relacionada com o viés cognitivo, ou seja, quando se estão a tomar decisões não conseguimos ser totalmente imparciais e concretos naquela determinada matéria. 

       Muito sucintamente[5]: uma teoria desenvolvida por Daniel Kahneman e que se tornou mais popular com a publicação do seu livro, em 2011, “Pensar, Depressa e Devagar”, tratava do sistema dual aquando da tomada de decisão.

        O sistema 1 é marcado pela impulsividade na tomada de decisão. Com isso, ela apresenta características como: rapidez na decisão; ação sem reflexão; influência das emoções. Quem toma decisões com base neste sistema costuma-se apoiar, principalmente, de conhecimento já consolidado e nas experiências prévias. Não há uma reflexão profunda sobre as opções disponíveis ou sobre qual será a melhor alternativa.

      O sistema 2 prevê uma tomada de decisão mais elaborada e embasada, com um aspeto cognitivo mais forte. Nesse sentido, algumas características: deliberação sobre as opções disponíveis; avaliação de dados para além da experiência pessoal; maior lentidão para tomar a decisão. Prevê uma resolução que considera mais elementos e que pensa em outros aspetos além do reportório individual. Com isso, a tendência é que as escolhas sejam mais racionais.

        Assim, verificamos que, nas tomadas de decisão onde existe o domínio do sistema 1, pode prejudicar as escolhas, aumentar a margem de erro e incorrer em decisões ilegais. Temos de consolidar e aumentar o nosso conhecimento para que consigamos ter as melhores decisões, as mais racionais e as mais adequadas.

 

Bibliografia:

            

         Transcrições dos apontamentos da aula do Sr. Professor Regente Vasco Pereira Da Silva

            

        AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo volume II. 4ª edição. Coimbra: Almedina. 2018

 

        ESTEVÃO, Pedro Miguel Vieira. 2021. A configuração do Princípio da Igualdade enquanto Parâmetro de Controlo da Constitucionalidade. Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa. Dissertação de Mestrado em Direito e Ciência Jurídica, especialidade em Direito Administrativo, sob orientação do Senhor Professor Doutor Jorge Reis Novais

 

         https://diariodarepublica.pt/dr/lexionario/termo/principio-igualdade-em-direito-administrativo

 

        https://exame.com/colunistas/palavra-do-advisor/o-que-e-a-teoria-do-sistema-dual-e-como-ela-afeta-os-investidores/

KAHNEMAN, Daniel, “ThinkingFast and Slow”. 1ª edição. Porto, Maia: Círculo de Leitores, Março 2012. 

 

Maria Leonor Sebastião De Sousa, nº 67661, subturma 15



[1] AMARAL, Diogo Freitas do. 2018. Curso de Direito Administrativo volume II. 4ª ed. Coimbra: Almedina. pp. 122 e seguintes

[2] ESTEVÃO, Pedro Miguel Vieira. 2021. A Configuração do Princípio da Igualdade enquanto Parâmetro de Controlo da Constitucionalidade. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Dissertação de Mestrado em Direito e Ciência Jurídica, especialidade em Direito Administrativo, sob orientação do Senhor Professor Doutor Jorge Reis Novais

[3] https://diariodarepublica.pt/dr/lexionario/termo/principio-igualdade-em-direito-administrativo

[4] AMARAL, Diogo Freitas do. 2018. Curso de Direito Administrativo volume II. 4ª ed. Coimbra: Almedina. pp. 108-111

[5] https://exame.com/colunistas/palavra-do-advisor/o-que-e-a-teoria-do-sistema-dual-e-como-ela-afeta-os-investidores/

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