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quarta-feira, 22 de novembro de 2023

 

Trabalho do direito administrativo:  

Aminata Djau Jaura 

TEMA: - A “infância difícil” e os modernos traumas do Direito Administrativo.

O Direito Administrativo nasceu de forma traumática. E, nas instituições, tal como nas pessoas, os traumas são uma fonte de problemas para uma vida inteira. É preciso aprender a viver com os traumas que se tem. Se não se aprende a viver, criam situações patológicas, se se aprende a viver, mesmo que se chegue a uma relação saudável com o nosso próprio inconsciente isso não significa que não possam surgir lapsos, atos falhados - aquelas realidades de que Freud falou na sua psicopatologia da vida quotidiana. Olhando para o Direito Administrativo há dois traumas que marcam o início da nossa doutrina, o início do Direito Administrativo, e que, não apenas condicionam o surgimento do direito administrativo, no tal período da infância difícil, como têm consequências que perduram até aos nossos dias.

 “Experiência traumáticas”: tem a  sua ligação originária a um modelo de Contencioso dependente da Administração e a das circunstâncias que estão na base da afirmação da sua própria autonomia enquanto ramo de direito

A primeiro trauma- fala-nos do surgimento dos tribunais administrativos, porque o que aconteceu, no quadro da lógica do contencioso francês, é que este contencioso tem uma origem marcadamente jurisprudencial. Desde logo, tal é uma coisa contraditória pois nós habituamo-nos a olhar para os franceses como legalistas, cartesianos, como pessoas que pensam os problemas de uma perspetiva geral. Com tudo está destinado a garantir a defesa dos partidos. O princípio da separação de poderes, tal como então foi entendido, levou à criação de um «juiz doméstico, para usar a feliz expressão de um “juiz de trazer por casa”, pois se atribuía aos órgãos da Administração a tarefa de se julgarem a si próprios. Assim, em nome da separação de poderes, o que se instaurou foi um sistema assente na «confusão entre a função de administrar e a de julgar, na promiscuidade entre o poder administrativo e o poder judicial. E foi esse modelo de contencioso administrativo que, por intermédio da atuação dos despectivos órgãos, foi elaborando o Direito Administrativo Ora, o Direito Administrativo nasceu pela via jurisprudencial, nasceu da atuação do conselho de estado. O problema está em que esta justiça administrativa que criou o Direito Administrativo começou de uma forma traumática. A seguir à revolução francesa, o que os revolucionários franceses vão dizer é que os tribunais comuns ficam proibidos de controlar a administração - a expressão usada é deliciosa, ficam proibidos de perturbar (troublé là administration). E a razão disto, vai instaurar um sistema, que sendo elaborado em nome do princípio da separação de poderes, vai negar a separação de poderes, porque vai estabelecer a promiscuidade entre administração e justiça. Vai estabelecer a confusão total, para usar a expressão de Debbasch, entre administrar e julgar. E, portanto, estamos perante um trauma que, ainda por cima tem aquilo a Freud chamava uma recordação de cobertura, ou seja, o paciente tem uma versão dos factos traumáticos que é a que ele conta a todas as pessoas, que não é aquilo que se passou na realidade e é preciso que o paciente evolua na análise que vai fazendo a si próprio para que ele consiga. Isto é, para os revolucionários franceses o pecado original do contencioso administrativo, no início, seja um contencioso domésticos – é a expressão de Mario Nigro - o juiz administrativo é um juiz de trazer por casa. O que está em causa, como vai dizer Maurice Hauriou, uns anos mais tarde, é a criação do processo de introspeção administrativa. É a administração que se auto analisa, é a administração que se julga a si mesma. Isto é a perversão do princípio da separação de poderes. Ele é realizado naquilo a que tem a ver com as relações entre o legislativo e o administrativo, o legislativo e o judicial, mas é pervertido no quadro do relacionamento entre o Direito Administrativo e o poder judicial. E, portanto, este é o primeiro trauma – um contencioso administrativo que não era administrativo e que vai criar uma justiça privativa para a administração. No início, a confusão total de que falava Debbasch, significava que era o órgão decisor que também julgava os atos que ele próprio tinha praticado. Mais tarde, com a criação do conselho de estado, um órgão administrativo especial, há uma maior distanciação em relação à atuação, mas continua a haver a lógica da perversão do sistema, porque que continua a ser a administração a julgar-se a si mesma.

 

Há segunda trauma também marca o surgimento do direito administrativo. Este começa com as circunstâncias e que foi afirmada a autonomia do direito administrativo produzido pela justiça administrativa, que é um direito que vai ter como objetivo proteger a administração. A lógica deste contencioso privativo da administração era a de um contencioso que salvaguardasse os privilégios exorbitantes da administração, para usar a expressão de Maurice Hauriou, que salvaguardasse a lógica do poder administrativo. Na verdade, aquela que é considerada a “primeira sentença” do Direito Administrativo, consagrando a sua autonomia enquanto ramo da ciência jurídica, data de 1873, foi proferida pelo Tribunal de Conflitos francês, e é uma triste decisão, não apenas pelo caso a que se refere como pelo seu próprio conteúdo.

Não é só uma sentença triste, ou seja, um conteúdo triste, mas é também um modo triste de começar o Direito Administrativo, porque esta sentença é considerada uma espécie de batismo, a certidão de nascimento do direito administrativo, porque é a primeira vez que o tribunal vem reconhecer a autonomia do direito administrativo, e vai dizer que é preciso criar um ramo do direito diferente do Direito Privado, do Direito Civil, e que esse ramo tem de ser diferente dos outros. Só que o caso Blanco é um caso triste, e o resultado desta afirmação, desta autonomia, deste registo de nascimento é também ele próprio muito triste. Estava em causa um atropelamento de uma criança de 5 anos chamada Agnès Blanco por um vagão de uma empresa pública de tabaco em Bordéus. Os pais da criança dirigem-se ao tribunal de Bordéus para pedir uma indemnização, pois a criança ficou com lesões graves para toda a vida. O que diz o juiz comum é que em primeiro lugar não é competente porque quem atuou foi uma entidade administrativa, não foi um particular, e, portanto, o tribunal declara-se incompetente. A seguir, o tribunal acrescenta que mesmo que fosse competente não podia decidir porque não há direito aplicável, entendia o tribunal de Bordéus que as únicas normas que existiam, as normas do Código de Napoleão eram apenas aplicáveis apenas a relações entre iguais. Ora, a administração pública era uma entidade desigual, poderosa, pois não havia regras que estabelecessem a responsabilidade civil da administração pública perante uma criança de 5 anos. O que não é apenas um «episódio triste», como é também um “triste começo” para o Direito Administrativo, cujo nascimento fica associado a uma história de negação dos direitos dos particulares. Por muito que se quisesse, era difícil imaginar um começo mais “traumático” para o Direito Administrativo! Este é outro trauma ainda do qual não nos libertamos inteiramente. Não nos libertamos em termos doutrinários, porque aquela conceção autoritária do direito administrativo vai dar origem às grandes catedrais do direito administrativo, aos pais fundadores do direito administrativo, podemos pensar em Otto Mayer na Alemanha, podemos pensar em Maurice Hauriou na França, podemos pensar em Santi Romano na Itália, podemos pensar em Marcello Caetano em Portugal. Daí a importância da análise histórica para a “psicanálise cultural” do Direito Administrativo, ao funcionar como uma espécie de técnica de “catarse”, que possibilita a cura do paciente mediante a rememoração dos acontecimentos traumáticos. Impõe-se, por isso, proceder a uma apreciação mais detalhada dos referidos acontecimentos traumáticos. Voltando no que dizia o Marcelo Caetano, , que é um falso Direito, um direito macaqueado, um Direito ao cumprimento da lei, não é nada, cumprimento da lei resulta da lei. Ora bem, mas para além desta realidade que mesmo ultrapassada nos dias de hoje, mas que de vez em quando ainda encontra alguns resquícios doutrinários, do ponto de vista da realidade e pensando na realidade portuguesa, o que se passou com Agnès Blanco podia passar-se hoje, de forma algo diferente, mas não tão diferente assim.

Retomando uma metáfora, em que tenho vindo a insistir há já alguns anos, é possível distinguir três fases principais na evolução do contencioso administrativo, as quais podem também ser associadas a três momentos distintos da evolução do Estado.

1-      A fase do pecado originário correspondente ao período do seu nascimento e que vai apresentando distintas configurações até chegar ao sistema da “justiça delegada”, sendo esta última modalidade que se vai impor como paradigma do modelo de Estado liberal.

2-      A fase do baptismo, ou da plena jurisdicionalização do Contencioso Administrativo, prenunciada na transição dos séculos XIX para o XX, e cujo apogeu vai ficar associado ao modelo de Estado Social;

3-      A fase do crismo ou da “confirmação”, caracterizada pela reafirmação da natureza jurisdicional do Contencioso Administrativo, mas acompanhada agora pela acentuação da respetiva dimensão subjetiva, destinada à proteção plena e efetiva dos direitos dos particulares, que corresponde à atual situação da Justiça Administrativa no Estado Pós-social, em que vivemos.

Com tudo estamos perante a responsabilidade da administração publica.

 

 

 

Bibliografia

SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, 2016;

OTERO, Paulo, Manual de direito Administrativo, volume I, 2ª edição, Almedina, 2013;

 

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