Trabalho do direito administrativo:
Aminata Djau Jaura
TEMA: - A “infância difícil” e os modernos traumas do Direito
Administrativo.
O Direito
Administrativo nasceu de forma traumática. E, nas instituições, tal como nas
pessoas, os traumas são uma fonte de problemas para uma vida inteira. É preciso
aprender a viver com os traumas que se tem. Se não se aprende a viver, criam
situações patológicas, se se aprende a viver, mesmo que se chegue a uma relação
saudável com o nosso próprio inconsciente isso não significa que não possam
surgir lapsos, atos falhados - aquelas realidades de que Freud falou na sua
psicopatologia da vida quotidiana. Olhando para o Direito Administrativo há
dois traumas que marcam o início da nossa doutrina, o início do Direito
Administrativo, e que, não apenas condicionam o surgimento do direito
administrativo, no tal período da infância difícil, como têm consequências que
perduram até aos nossos dias.
“Experiência
traumáticas”: tem a sua ligação originária a um modelo de Contencioso dependente
da Administração e a das circunstâncias que estão na base da afirmação da sua
própria autonomia enquanto ramo de direito
A primeiro trauma- fala-nos do surgimento
dos tribunais administrativos, porque o que aconteceu, no quadro da lógica do
contencioso francês, é que este contencioso tem uma origem marcadamente
jurisprudencial. Desde logo, tal é uma coisa contraditória pois nós
habituamo-nos a olhar para os franceses como legalistas, cartesianos, como
pessoas que pensam os problemas de uma perspetiva geral. Com tudo está destinado
a garantir a defesa dos partidos. O princípio da separação de poderes, tal como
então foi entendido, levou à criação de um «juiz doméstico, para usar a feliz expressão
de um “juiz de trazer por casa”, pois se atribuía aos órgãos da Administração a
tarefa de se julgarem a si próprios. Assim, em nome da separação de poderes, o
que se instaurou foi um sistema assente na «confusão entre a função de administrar
e a de julgar, na promiscuidade entre o poder administrativo e o poder
judicial. E foi esse modelo de contencioso administrativo que, por intermédio
da atuação dos despectivos órgãos, foi elaborando o Direito Administrativo Ora,
o Direito Administrativo nasceu pela via jurisprudencial, nasceu da atuação do
conselho de estado. O problema está em que esta justiça administrativa que
criou o Direito Administrativo começou de uma forma traumática. A seguir à
revolução francesa, o que os revolucionários franceses vão dizer é que os
tribunais comuns ficam proibidos de controlar a administração - a expressão
usada é deliciosa, ficam proibidos de
perturbar (troublé là administration). E a razão disto, vai instaurar um
sistema, que sendo elaborado em nome do princípio da separação de poderes, vai
negar a separação de poderes, porque vai estabelecer a promiscuidade entre
administração e justiça. Vai estabelecer a confusão total, para usar a
expressão de Debbasch, entre administrar e julgar. E, portanto, estamos perante
um trauma que, ainda por cima tem aquilo a Freud chamava uma recordação de cobertura, ou seja, o paciente tem uma versão dos
factos traumáticos que é a que ele conta a todas as pessoas, que não é aquilo
que se passou na realidade e é preciso que o paciente evolua na análise que vai
fazendo a si próprio para que ele consiga.
Isto é, para os revolucionários franceses o pecado original do contencioso
administrativo, no início, seja um contencioso domésticos – é a expressão de
Mario Nigro - o juiz administrativo é um juiz de trazer por casa. O que está em
causa, como vai dizer Maurice Hauriou, uns anos mais tarde, é a criação do processo de introspeção
administrativa. É a administração que se auto analisa, é a administração
que se julga a si mesma. Isto é a perversão do princípio da separação de
poderes. Ele é realizado naquilo a que tem a ver com as relações entre o
legislativo e o administrativo, o legislativo e o judicial, mas é pervertido no
quadro do relacionamento entre o Direito Administrativo e o poder judicial. E,
portanto, este é o primeiro trauma – um contencioso administrativo que não era
administrativo e que vai criar uma justiça privativa para a administração. No
início, a confusão total de que falava Debbasch, significava que era o órgão
decisor que também julgava os atos que ele próprio tinha praticado. Mais tarde,
com a criação do conselho de estado, um órgão administrativo especial, há uma
maior distanciação em relação à atuação, mas continua a haver a lógica da
perversão do sistema, porque que continua a ser a administração a julgar-se a
si mesma.
Há
segunda trauma também marca o surgimento do direito administrativo. Este começa
com as circunstâncias e que foi afirmada a autonomia do direito administrativo produzido
pela justiça administrativa, que é um direito que vai ter como objetivo
proteger a administração. A lógica deste contencioso privativo da administração
era a de um contencioso que salvaguardasse os privilégios exorbitantes da
administração, para usar a expressão de Maurice Hauriou, que salvaguardasse a
lógica do poder administrativo. Na verdade, aquela que é considerada a
“primeira sentença” do Direito Administrativo, consagrando a sua autonomia
enquanto ramo da ciência jurídica, data de 1873, foi proferida pelo Tribunal de
Conflitos francês, e é uma triste decisão, não apenas pelo caso a que se refere
como pelo seu próprio conteúdo.
Não é só uma sentença triste, ou seja, um conteúdo triste,
mas é também um modo triste de começar o Direito Administrativo, porque esta
sentença é considerada uma espécie de batismo, a certidão de nascimento do
direito administrativo, porque é a primeira vez que o tribunal vem reconhecer a
autonomia do direito administrativo, e vai dizer que é preciso criar um ramo do
direito diferente do Direito Privado, do Direito Civil, e que esse ramo tem de
ser diferente dos outros. Só que o caso Blanco é um caso triste, e o resultado
desta afirmação, desta autonomia, deste registo de nascimento é também ele
próprio muito triste. Estava em causa um atropelamento de uma criança de 5 anos
chamada Agnès Blanco por um vagão de uma empresa pública de tabaco em Bordéus.
Os pais da criança dirigem-se ao tribunal de Bordéus para pedir uma
indemnização, pois a criança ficou com lesões graves para toda a vida. O que
diz o juiz comum é que em primeiro lugar não é competente porque quem atuou foi
uma entidade administrativa, não foi um particular, e, portanto, o tribunal
declara-se incompetente. A seguir, o tribunal acrescenta que mesmo que fosse
competente não podia decidir porque não há direito aplicável, entendia o tribunal
de Bordéus que as únicas normas que existiam, as normas do Código de Napoleão
eram apenas aplicáveis apenas a relações entre iguais. Ora, a administração
pública era uma entidade desigual, poderosa, pois não havia regras que
estabelecessem a responsabilidade civil da administração pública perante uma
criança de 5 anos. O que não é apenas um «episódio triste», como é também um
“triste começo” para o Direito Administrativo, cujo nascimento fica associado a
uma história de negação dos direitos dos particulares. Por muito que se
quisesse, era difícil imaginar um começo mais “traumático” para o Direito Administrativo!
Este é outro trauma ainda do qual não nos libertamos inteiramente. Não nos
libertamos em termos doutrinários, porque aquela conceção autoritária do
direito administrativo vai dar origem às grandes catedrais do direito
administrativo, aos pais fundadores do direito administrativo, podemos pensar
em Otto Mayer na Alemanha, podemos pensar em Maurice Hauriou na França, podemos
pensar em Santi Romano na Itália, podemos pensar em Marcello Caetano em
Portugal. Daí a importância da análise histórica para a “psicanálise cultural”
do Direito Administrativo, ao funcionar como uma espécie de técnica de
“catarse”, que possibilita a cura do paciente mediante a rememoração dos
acontecimentos traumáticos. Impõe-se, por isso, proceder a uma apreciação mais
detalhada dos referidos acontecimentos traumáticos. Voltando no que dizia o
Marcelo Caetano, , que é um falso Direito, um direito macaqueado, um Direito ao
cumprimento da lei, não é nada, cumprimento da lei resulta da lei. Ora bem, mas
para além desta realidade que mesmo ultrapassada nos dias de hoje, mas que de
vez em quando ainda encontra alguns resquícios doutrinários, do ponto de vista
da realidade e pensando na realidade portuguesa, o que se passou com Agnès
Blanco podia passar-se hoje, de forma algo diferente, mas não tão diferente
assim.
Retomando
uma metáfora, em que tenho vindo a insistir há já alguns anos, é possível
distinguir três fases principais na evolução do contencioso administrativo, as
quais podem também ser associadas a três momentos distintos da evolução do
Estado.
1-
A fase do pecado originário correspondente
ao período do seu nascimento e que vai apresentando distintas configurações até
chegar ao sistema da “justiça delegada”, sendo esta última modalidade que se
vai impor como paradigma do modelo de Estado liberal.
2-
A fase do baptismo, ou da plena
jurisdicionalização do Contencioso Administrativo, prenunciada na transição dos
séculos XIX para o XX, e cujo apogeu vai ficar associado ao modelo de Estado
Social;
3-
A fase do crismo ou da
“confirmação”, caracterizada pela reafirmação da natureza jurisdicional do
Contencioso Administrativo, mas acompanhada agora pela acentuação da respetiva
dimensão subjetiva, destinada à proteção plena e efetiva dos direitos dos
particulares, que corresponde à atual situação da Justiça Administrativa no
Estado Pós-social, em que vivemos.
Com tudo
estamos perante a responsabilidade da administração publica.
Bibliografia
SILVA,
Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise,
2ª edição, 2016;
OTERO, Paulo, Manual de
direito Administrativo, volume I, 2ª edição, Almedina, 2013;
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