Muitos autores dão relevância ao que ocorreu entre os séculos XIX e XX, dizendo que a evolução histórica do ponto de vista estrutural da Administração Pública foi linear. Ora como vamos ver, foi marcada por avanços e retrocessos. Tanto as funções administrativas, a própria Administração Pública e, até mesmo, o direito que a regula sofreram alterações a vários níveis como, por exemplo, em relação ao espaço, tempo, o tipo de Estado em vigor, fatores histórico-culturais, políticos ou até mesmo os sistemas de governo.
Assim, é necessário percorrer as várias fases evolutivas do Direito Administrativo até aos dias de hoje conhecendo as suas dificuldades, imperfeiçoes e até mesmo os seus traumas.
Do Estado Oriental ao Estado Moderno
É nos três primeiros milénios a.C., com o Estado Oriental que nascem as primeiras administrações públicas. Tinha como vertentes políticas um Estado unitário, uma monarquia teocrática e inexistência de garantias do indivíduo face ao Poder. Os Estados começaram a aperceber-se, face às novas necessidades dos povos, que era necessário realizar obras públicas. Para isso implementou-se a cobrança de impostos, igualmente indispensáveis à sustentação dos exércitos militares. Ou seja, as primeiras administrações públicas da história nascem quando os imperadores constituem corpos de funcionários permanentes para cobrar impostos, executar obras públicas e assegurar a defesa contra o inimigo externo. Surgem, assim, sob o signo do intervencionismo económico e social. No entanto, ainda faltavam elementos essenciais que definem o modelo administrativo típico de um país moderno, como por exemplo fórmulas de administração local autárquica ou a inexistência das garantias dos particulares face à Administração.
O
Estado grego, do século VI ao século III a.C., é na Antiguidade
Clássica, característico da civilização grega. Os Estados eram denominados de pólis
ou cidades-estados e surge, pela primeira vez, o conceito e a prática da
democracia, o pensamento político e o Direito Constitucional. Apesar de
encontrarmos manifestações de problemas de administração territorial, não chega
ao mesmo patamar do Estado Oriental, porque o Estado grego tinha uma menor
dimensão e densidade populacional. Com isto, surgem as “magistraturas” que ao
longo do tempo aumentam de número e especializam-se por assuntos, como por
exemplo questões legislativas, militares, religiosas, fiscais, etc. Eram
dependentes das assembleias políticas e tinham poderes judiciais e administrativos
para garantirem a satisfação das necessidades coletivas. As tarefas eram vastas
e complexas, e a curta duração dos mandatos foram fatores que fizeram com que, este
Estado, entrasse em decadência e numa “incapacidade de construir e fazer
funcionar um sistema administrativo eficiente”.
Já
no Estado romano (em especial, do século II a.C. ao século IV
d.C.) passam de uma pequena dimensão para uma grande expansão territorial; surge
uma primeira noção de poder político “uno, pleno e forte”; dá-se uma inserção
de todas as classes sociais na vida política e uma extensão da cidadania a
todos os habitantes do império; surgem problemáticas nas relações entre o
Estado e a Igreja, entre muitos outros aspetos. Roma, no seu início, começa por ser uma
cidade-Estado com as mesmas deficiências administrativas que se notaram na
Grécia. Mas com o tempo ultrapassa as dificuldades e constitui um aparelho
administrativo complexo, aprimorado, imponente e de invejável eficiência. Agora
já temos funcionários públicos organizados, profissionalizados, com perspetivas
de longas carreiras e pagos. Estabeleceram-se escalas de categorias consoante
os vencimentos recebidos e consoante a função do grau hierárquico, e instituiu-se
uma organização vertical definindo-se poderes e responsabilidades. Formavam,
assim, uma “burocracia imperial” no qual exerciam funções como a cobrança de
impostos, policiamento, abastecimento de água, ensino, comunicação, cultura,
etc. Surgem também as chamadas “instituições municipais”, que com autonomia
administrativa e financeira, começaram a afirmar-se algumas garantias dos
particulares perante o Estado.
A
administração pública é no Estado Medieval característico da
Idade Média, sobretudo do século V d.C. ao século XV. Os seus principais
aspetos políticos eram a forte descentralização política do Estado; lutas entre
o Papado e o Império; conceção patrimonial das funções públicas e a privatização
do poder político. Neste período, devido ao feudalismo deu-se uma fragmentação
do poder político, mas mesmo assim havia sinais da administração pública. No
entanto, esta assume um papel meio que secundário, pois com a dispersão do
povoamento e a necessidade de auto-organização espontânea das populações, estes
problemas eram tipicamente assegurados por instituições religiosas ou pelo
poder local. Porém, foi-se percebendo que tratando-se de atividades de
interesse coletivo, a administração pública não podia deixar de as fiscalizar
ou regulamentar. Os reis dispunham de corpos de funcionários públicos dispersos
pelos diferentes reinos, todavia continuava a haver uma indiferenciação entre
justiça e administração. Ou seja, a partir do século XIV, o panorama altera-se
em virtude das políticas de centralização do poder na pessoa do Rei.
A administração pública no Estado moderno:
O Estado moderno é do século XVI ao século XX característico da Idade Moderna e Contemporânea. É nesta realidade que retiramos o significado que temos hoje de “Estado”. Caracterizou-se pela centralização do poder político; pela “definição precisa dos limites territoriais do Estado”; pela afirmação da soberania do Estado (contra o feudalismo e o regime senhorial); pela crescente secularização do Estado, entre outras. Sendo este período grande (cinco séculos), há quem defenda que se divide em vários subtipos de Estado.
Nos séculos XV e XVI e início do século XVII, surge um subtipo de Estado moderno denominado de Estado corporativo ou Estado estamental. Teve como particularidades políticas a organização do elemento humano do Estado em ordens ou estados; dualidade política “Rei-ordens”; diversas instituições de caráter corporativo como associações, grémios e mesteres; fortalecimento do poder real, etc. Deixa-se entrar em declínio o feudalismo ou o regime senhorial no plano político, mas vai-se rejuvenescendo as funções administrativas noutras áreas.
No século XV, surgem as Ordenações Afonsinas, primeira compilação escrita do direito português, onde entre muitas outras considerações, uma delas eram normas de direito público referentes à justiça, que ainda era confundida com a administração propriamente dita.
Mais tarde, o rei D. Manuel I inicia uma reforma a toda a Administração Pública de onde culmina a publicação, em 1504, de uma espécie de código administrativo. Acaba-se, com a publicação das Ordenações Manuelinas (1512) e as Ordenações Filipinas (1603) pôr-se codificar o direito comum e reforçar a posição do poder político. No entanto, nos finais do século XVI e inícios do século XVII agrava-se a complexidade da administração central, do que culmina, em 1736, com D. João V a iniciar, mais uma vez, uma reforma da administração central.
Sendo o Estado Corporativo um subtipo de Estado moderno, o Estado Absoluto também o é. É característico da Monarquia absoluta, nomeadamente de meados do século XVII até finais do século XVIII. A nível político era caracterizado pela centralização do poder real; enfraquecimento da nobreza e ascensão da burguesia; a vontade do Rei como lei suprema e pelo culto da razão de Estado.
O Estado moderno consolida-se devido à grande centralização do poder político, mas também administrativo. O elo mais fraco foi o recrutamento e a promoção de funcionários públicos não pelo mérito, mas sim pelo favoritismo. Portugal também sofreu deste mal, mas é Prússia que reconhece a necessidade de ter ao serviço do Estado um corpo de funcionários profissionalizados, competentes, hierarquizados e disciplinados.
Houve melhorias graças a Frederico Guilherme I que exigiu um diploma como requisito de acesso à função pública superior, proibiu as acumulações do emprego público com os privados, introduziu exames de admissão ao funcionalismo, entre muitas outras medidas. Neste mesmo sentido, em Portugal, atuaram as reformas pombalinas com o aperfeiçoamento técnico dos serviços, maior disciplina dos funcionários e abolição da venalidade dos ofícios.
É no século XVIII que despoletam os ideais de liberdade individual, a afirmação dos direitos fundamentais e o princípio da separação dos poderes. Com isto, o sistema administrativo tradicional “cai por terra”. A Coroa perde poderes judiciais e legislativos que são atribuídos, respetivamente, aos Tribunais e aos Parlamentos. Afirmou-se o princípio da legalidade que “impede a Administração de invadir a esfera dos particulares ou prejudicar os seus direitos sem ser com base numa lei emanada do Poder Legislativo”.
Os cidadãos passam agora a ser titulares de direitos subjetivos públicos, que podiam fazer valer em tribunal. Surge, assim, o Direito Administrativo moderno com a preocupação de conferir aos particulares um conjunto de garantias jurídicas, capazes de os proteger contra o arbítrio administrativo cometido sob forma de ilegalidade. No século XIX é concebido um sistema geral de controlos sobre a ação administrativa (em favor dos particulares) e é com a figura de Napoleão, imperador francês, que se consegue alargar a intervenção do Estado na vida coletiva.
Para isso cria medidas entre as quais: a criação de escolas de formação de funcionários (que agora eram recrutados com base na competência); invenção de cinco ministérios que superintendem na administração central (justiça, guerra, negócios estrangeiros e interior, finanças) cada um dividido em direções e repartições; e até a criação do Conseil d`État com funções administrativas de consulta. Com isto, está criado o modelo europeu moderno de Administração Pública, que de forma lenta evoluirá, a partir da 2ª Guerra Mundial.
A Revolução liberal em Portugal e as reformas de Mouzinho da
Silveira
Em França, assim como aconteceu em Portugal, a principal reforma foi a separação entre administração e justiça. Neste aspeto, a Constituição de 1822 e a Carta Constitucional de 1826 determinaram a separação de poderes e novos princípios como «” a divisão e harmonia dos poderes políticos”». Todavia, era preciso concretizar estes princípios em legislação ordinária, de uma forma pormenorizada, mas também facilmente inteligível por todos os funcionários da administração.
Esta tarefa foi dada precisamente a Mouzinho da Silveira que elaborou e fez aprovar diplomas fundamentais na modificação da Administração portuguesa. A grande alteração foi a separação entre a administração e a justiça, e consequente cisão entre órgãos administrativos e tribunais.
Breve
nota:
-Segundo
o Professor Vasco Pereira da Silva apontam-se dois “traumas de infância” do
Direito Administrativo. O primeiro dá-se logo de seguida à Revolução
Francesa com a proibição dos tribunais judiciais controlarem a Administração em
prol da separação dos poderes. Contudo, esta proibição instaurou a
promiscuidade no seio da Administração e da justiça: os órgãos
administrativos passaram a controlar-se a si mesmos. A justiça
administrativa ficou comprometida- foi o “pecado original” do
contencioso administrativo.
-O
segundo trauma surge no século XIX com o caso de Agnès Blanco, uma criança de
cinco anos que, enquanto brincava, foi atingida por um vagão de um comboio de
uma empresa pública francesa ficando com lesões graves e permanentes. Os pais
dirigiram-se ao tribunal de Bordéus com o objetivo de lhes ser atribuída uma
indemnização. No entanto, o juiz da primeira instância disse que não era competente
para resolver o litígio, porque a entidade responsável pelo acidente era administrativa
(e não de um particular), e também por não haver norma aplicável ao caso.
Face a isto, os pais recorrem para a justiça administrativa, a cargo do presidente da câmara municipal, no qual também diz não ter competência. O Tribunal de Conflitos assume as “rédeas” e diz que a competência é da jurisdição administrativa, porque o que estava em causa era responsabilidade civil de uma entidade pública. Era necessário criar normas aplicáveis a casos como este. Era necessário criar Direito Administrativo.
É um subtipo do Estado moderno e atingiu o seu apogeu no século XIX, mas declina na primeira metade do século XX. As suas principais características políticas eram a adoção do constitucionalismo como técnica de limitação do poder político; reconhecimento da existência de direitos do homem que o Estado deve respeitar; adoção do princípio da soberania nacional e subordinação do Estado à lei. Foi no ano de 1851, que Portugal instaurou um caminho longo de estabilidade política e de desenvolvimento económico aumentando o número de funcionários, de obras públicas e novos serviços públicos, maioritariamente, nos domínios dos correios, dos transportes e das telecomunicações.
O Estado, face às necessidades da população, é pressionado a montar serviços públicos de caráter social e cultural como a assistência aos pobres. Dá-se o fenómeno da “municipalização dos serviços públicos”, ou seja, com o crescimento das grandes cidades, vê-se como necessária a distribuição ao domicílio de gás, água e eletricidade, e em alguns casos, isto era assumido pelas autarquias locais (daí surgir a expressão supramencionada).
De salientar que este é o primeiro período da história em que “as garantias dos particulares perante a Administração são, deliberadamente, melhoradas e reforçadas”. Por isto se diz, que o Estado liberal se afirma como um Estado de Direito.
E. O Estado constitucional do século XX
Finalmente, chegamos ao subtipo do Estado moderno característico do nosso século. A maior parte dos Estados têm uma Constituição; proclama-se em todos os países o princípio da legalidade; surgem os direitos económicos, sociais e culturais; aumenta consideravelmente o intervencionismo económico, etc. Este período é ainda característico por abarcar três modalidades: Estado comunista, Estado fascista e o Estado democrático.
O Estado comunista surge depois da Revolução russa de 1917, estruturada de acordo com o pensamento do marxismo-leninismo. Marcado por um Estado e poder centralizado, bem como da inexistência de direitos fundamentais dos cidadãos oponíveis ao Estado. Desmoronou-se a partir da Revolução democrática mundial de 1989.
O modelo posto em prática por Mussolini na Itália, a partir de 1919, na Alemanha, com Hitler, desde 1933, e noutros países europeus e latino-americanos denomina-se de Estado fascista. Estado forte e autoritário com os mesmos meios e instituições que o Estado comunista, mas com outros fins, e com um sistema administrativo centralizado e concentrado.
Por outro lado, o Estado democrático é caracterizado pela democracia política, económica, social e cultural, e assenta na soberania popular. Implantou-se na Europa continental, a seguir à queda dos regimes fascistas (em Portugal só na década de 70, século XX). A sua organização administrativa é descentralizada e desconcentrada, e criam-se instrumentos jurídicos de proteção das garantias individuais contra os abusos de poder, como por exemplo tribunais administrativos independentes. A 1ª Guerra Mundial é marcada pelo intervencionismo económico, e consequentemente se começa a falar de uma “administração económica” ou de uma “administração pública da economia privada”. O mesmo se passa com a 2ª Guerra Mundial.
Proclamada a paz, a intervenção e o dirigismo económico traduzem-se na proliferação de organismos autónomos ligados à administração central (“institutos públicos”) que constituem a chamada administração indireta. Outra característica da Administração Pública dos nossos dias, para além do intervencionismo económico, é a ação cultural e social do Estado. Fala-se por isso num Estado Providência.
A evolução em Portugal no século XX
Já no Estado Novo (2ª República, 1926-1974) a Administração portuguesa acusa a influência de fatores externos e internos, e como consequência no seu plano político-administrativo, correspondeu ao modelo do Estado fascista. Como princípios gerais perdurou a separação entre a administração e a justiça.
A
administração central muito numerosa, extensa, com poder de controlo
sobre os órgãos locais e com peso significativo relativo ao orçamento estadual tem
uma tendência predominante face à administração municipal.
O
intervencionismo estadual na vida económica, cultural e social aumenta: o
número de serviços públicos, económicos, culturais e sociais cresce; criam-se
empresas de economia mista com participação e controlo governamental, e são
nomeados “«delegados do Governo»” com funções fiscalizadoras.
Quanto
às garantias dos particulares, viu-se uma diminuição em matérias que
revestissem conotação política, mas em todos os outros casos foram reforçadas
devido à “pressão” da jurisprudência e da doutrina.
Ao
modelo do Estado democrático, corresponde a 3ª República desencadeada pelo
25 de Abril de 1974. A Administração Pública sofre alterações muito em prol
da Constituição de 1976 o que leva a caracterizá-la, mesmo nos dias de hoje, da
seguinte forma: manteve-se o predomínio da administração central (mais vasta,
“pesada” e importante) sobre a administração municipal; consolidou-se o
princípio da separação entre a administração e a justiça; e forte intervenção
do Estado, através da “socialização dos principais meios de produção” como, por
exemplo, a nacionalização da banca, dos seguros e dos transportes coletivos. Ou
seja, o Estado tornou-se uma espécie de “empresário económico”.
A
implementação de um regime democrático acatou com uma “liberalização do sistema
de garantias dos particulares contra os atos da Administração” com a criação do «"Provedor de Justiça"», dever de fundamentação dos atos administrativos,
reforço do sistema de execução das sentenças dos tribunais administrativos, etc.
Só
no ano de 2002 é que se publica uma profunda “reforma do contencioso administrativo”,
que coloca Portugal no mesmo patamar de países europeus mais avançados nestas
matérias.
Considerações finais
A
meu ver, o Direito Administrativo ainda não tem a psicanálise em dia, pois os
seus traumas ainda não foram, de todo, solucionados. Para além de não estarem
resolvidos, também não são esquecidos que na minha opinião, é essencial para
que não se volte a incorrer nos mesmos erros. A evolução tem sido sempre para
melhor. O aparelho administrativo tem vindo a crescer e a Administração vem
progredindo na sua prestação de respeitar os direitos dos particulares. Apesar
de avanços e retrocessos, deficiências e traumas acho que não determinará um
futuro menos sorridente para esta nossa disciplina jurídica.
Bibliografia:
Shania
Rodrigues- Subturma 15- Turma B
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