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domingo, 12 de novembro de 2023

 O Regime da Responsabilidade Civil por violação de Direitos de Crédito de fonte não contratual dos particulares face á Administração Pública

 

 

As diversas transformações sociais de que a sociedade e o Estado foram alvos no decorrer dos séculos levaram a que ocorresse uma mudança na forma como os particulares se relacionam com o Estado. Nos dias que correm, é ponto assente a existência de posições jurídicas de vantagem dos particulares face à Administração Pública e que a colocam numa situação de passividade face aos mesmos particulares. É nesta senda que nascem os direitos de crédito. Estes direitos baseiam-se numa relação creditícia estabelecida entre a AP e os particulares, em que a primeira se encontra adstrita a realizar determinada prestação face aos particulares, credores da mesma prestação, criando uma obrigação que tem como sujeitos 2 agentes. 

Na verdade, como aponta o Prof. Miguel Raimundo, a dogmática do Direito Administrativo preocupa-se sobretudo com as formas de atuação da Administração, e menos com as posições jurídicas conferidas pelo ordenamento, pelo que a doutrina jus-administrativa é ainda, igualmente, pouca no tratamento destes temas. Resulta assim, uma necessidade de explorar os temas, que resultam desta área. 

A questão aqui, em resolução, prende-se com saber se a violação pela Administração Pública de Direitos de Crédito com origem na lei ou em atos administrativos, ou seja, que não tenha fonte no contrato, pela sua liminar exclusão da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estrado, se integra o conceito de ilicitude atendendo á responsabilidade civil extracontratual presente no art. 1.º, nº1 da Lei 67\2007[1] e prevista no art. 9.º da mesma lei ou, se por outro lado, a violação destes direitos segue um regime especifico de responsabilidade civil diferente do acolhido naquela lei. Um exemplo que ilustra o problema com que nos deparamos: se a Administração Pública incumprir o dever de pagamento de um determinado subsídio, atribuído diretamente por lei a um particular, deve o ressarcimento dos danos resultantes do incumprimento deste dever de prestar de fonte legal, seguir o regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do EstadoSão então estas questões elencadas que visamos responder no decorrer deste post.

 

1.     Os Direitos de Crédito 

 

No âmbito das relações jurídico-administrativas, os Direitos de crédito dos particulares podem ter a sua origem na lei, em contrato público ou no ato administrativo. Quando existe uma norma jurídica que vincule a Administração ao cumprimento de um específico dever de prestar em favor de um particular, encontra-se consagrado o direito de crédito de origem legal, podendo ter origem constitucional, na lei ordinária ou em regulamento. 

 

Por outro prisma, a celebração de contratos públicos entre a Administração e os Particulares também faz surgir Direitos de Crédito dos particulares face à Administração Pública, contudo não é objetivo nosso debruçarmo-nos sobre a responsabilidade obrigacional da violação destes direitos decorrentes, mas perceber o enquadramento da responsabilidade da violação de direitos de credito que não tenham origem contratual. 

 

Finalmente, podemos ainda identificar Direitos de crédito cuja origem seja um ato administrativo, como admite o Sr. Prof. Vasco Pereira da Silva, quando a norma jurídica faça depender do juízo valorativo próprio do poder administrativo a atribuição ao particular de uma posição de vantagem de natureza obrigacional, com o exercício desta margem de decisão a ser então a origem do Direito de crédito na esfera do particular.  - Sem a tal margem de decisão, compete à Administração somente uma intervenção densificadora do conteúdo do mesmo Direito, o Direito de crédito tem origem legal, sendo a atuação administrativa apenas condição a que o Direito se torne líquido e certo como aponta Vieira de Andrade. (O artigo 37º, nº2 CPTA[2] admite este tipo de Direito de crédito)  

 

O Prof. e Juíz Pedro Machete defende que quando não existe discricionariedade, o ato administrativo não cria o Direito, limita-se a traduzir em forma a obrigação anteriormente criada pela lei, existindo um Direito Subjetivo material nas situações em que o particular tem direito a um ato com determinado conteúdo. Já o Prof. Aroso de Almeida e o Magistrado Carlos Cadilha afirmam que é a prática do ato administrativo que define, com autoridade publica, o direito aplicável ao particular interessado. 

 

Os Direitos de crédito a que nesta sede nos referimos são Direitos de crédito que não nascem de contrato. A estes Direitos de crédito estão associados, correlativamente, neste caso na esfera da Administração, deveres de crédito, um dever de prestar que se pode traduzir num dever de facere ou non facere, de dare ou de tolerar.  

 

Este Direito, enquanto Direito subjetivo público e na esteira do defendido pela sua doutrina de onde se destaca o Prof. Vasco Pereira da Silva, não apresenta diferenças estruturais face aos Direitos subjetivos privados, com a única diferença a ser a da natureza da entidade que se encontra no lado passivo da relação. Estes Direitos de crédito tanto se podem traduzir em operações materiais como em atos jurídicos. 

 

2.     A Responsabilidade civil 

 

Cabe-nos agora apurar a que tipo de responsabilidade estão sujeitas as violações destes Direitos de Crédito, que podemos desde já avançar como sendo uma lacuna legal. Tendo já restringido os mesmos direitos de créditos áqueles que não são de origem contratual, a questão coloca-se em saber se a violação destes dá origem a uma responsabilidade civil extracontratual, positivado na Lei 67\2007, ou considerar que o âmbito objetivo de aplicação desta Lei apenas abrange a violação de deveres genéricos de abstenção, afastando-se os deveres de prestar do referido âmbito, pese embora esta via não responda a que tipo de responsabilidade há de estar sujeita a violação de Direitos de Crédito. 

 

Importa assim,  interpretar a norma do mesmo artigo:

o   Analisando o artigo 1.º, nº1 da Lei, relativo ao âmbito da lei 67\2007, este apenas estipula a “responsabilidade civil extracontratual” que sugere, num sentido literal, que apenas estariam afastados os ilícitos resultantes de violações de obrigações com base contratual, dada a própria letra apontar neste sentido e a mesma ser suficiente para subtrair o significado da norma. 

o   Alguns jus-administrativistas como a Prof. Filipa Calvão defendem, por esta mesma razão, que as violações dos Direitos de Crédito de origem não contratual estariam abrangidas pelo regime desta lei. No entanto, o Prof. Tiago Macieirinha, afasta teses literalistas do n.º1, pois a dicotomia entre a responsabilidade contratual e extracontratual não se podrá fazer pela natureza contratual ou extracontratual da obrigação violada, mas sim da natureza contratual ou extracontratual do dever jurídico violado. 

o   No meu entender, efetivamente, tal interpretação literal peca por incompletude, por não tentar apurar qual o efetivo sentido da figura da responsabilidade civil extracontratual, e o âmbito a que está associado, que são conceitos que antecedem a lei 67\2007 e que como tal carecem de um estudo mais aprofundado.   

 

Pese embora este ainda não seja um tema verdadeiramente discutido a doutrina jus-administrativa, tal como não são muitos temas relativos às fontes das obrigações nesta sede por não existir um regime que trate destas matérias neste ramo, a doutrina civilista tem vindo a tratar com a devida profundidade esta temática. Na verdade, o labor da doutrina civilista foi e é considerado pelo Direito Administrativo quando o mesmo recorre ao Direito Comum para encontrar institutos, figuras e mecanismos que apresentem soluções aos problemas em que o Direito Administrativo se depara, pelo que, de modo a perceber p artigo nº1 da lei, temos de recorrer a dois instrumentos: 

·       em primeiro lugar a doutrina civilista em torno desta matéria; 

·       em segundo lugar aquele que tem vindo a ser o entendimento histórico do Direito Administrativo nos diferentes regimes que fazem referência à responsabilidade extracontratual das entidades publicas. 

 

Deste modo, há, em primeiro lugar, que perceber de que modo o Direito Comum entende a responsabilidade civil extracontratual no Direito para poder entender  como deve o Direito Administrativo entender a responsabilidade extracontratual no próprio. 

No direito comum a responsabilidade civil é entendida sob uma dualidade que opõe a responsabilidade contratual á extracontratual, interessando-nos apenas a extracontratual. – esta responsabilidade encontra-se prevista no art.483.º CC. - Este prevê a responsabilização daquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o Direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios. Para perceber então o âmbito da responsabilidade civil no Direito Comum é necessário perceber a que se refere a expressão “direitos de outrem”. Neste tópico existe uma concordância generalizada na doutrina com autores como Vaz Serra, Antunes Varela ou Almeida Costa a defenderem que a expressão remete somente para Direitos Absolutos que conferem deveres genéricos de abstenção e respeito a terceiros, servindo a responsabilidade contratual. A importância desta circunscrição é que, no Direito Civil, quando estamos perante um Direito de crédito que estabelece uma relação entre credor e devedor da devida prestação, a violação pelo devedor da mesma prestação apenas dá aso a responsabilidade obrigacional, não existindo um ilícito que releve em sede de responsabilidade extracontratual. 

 

 

É deveras importante, agora, perceber em que termos se deu a receção deste entendimento pelo Direito Administrativo, olhando pelos diferentes regimes e referências à responsabilidade civil do estado e demais entidades públicas.

 

·       O primeiro regime relativo á responsabilidade civil do estado e demais entidades publicas remonta a 1967, ao DL nº 48051[3]. Este regime, embora em aspetos centrais seja diferente daquele com que lidamos atualmente, apresenta traços gerais de semelhanças com o nosso regime atual. Há dois aspetos aqui a ter em conta: por um lado, o entendimento se tinha da Responsabilidade Civil no DA era profundamente influenciado pela ideia de RC que se tinha no Direito Comum, que, como já vimos, deixa de fora da responsabilidade civil extracontratual em matéria de violação dos Direitos de Crédito. Apesar disso, a questão controvertida neste estudo, não era, na altura, uma realidade, por outras palavras , era incomum falar-se da violação de Direitos de crédito de origem não contratual aquando da legislação do DL nº 48051, uma vez que a visão que imperava aquando da legislação do DL era abertamente contrário a uma visão que salvaguarde interesses dos particulares, pelo que a violação deste tipo e deveres de prestar não estaria previsto na mesma lei. A insindicalidade da omissão de conduta pela Administração nos tribunais na altura, é uma manifestação deste entendimento da época contrário á ideia de que os particulares pudessem ser titulares de tais posições jurídicas em face da Administração. 

 

Questão distinta é saber até que ponto este regime influenciou os regimes e referências atuais, como o art. 22.º da CRP, à responsabilidade civil do Estado. Há desde logo diferenças justificativas no que toca, em primeiro lugar, à forma como a Administração se posiciona face aos Administrados, e, em segundo lugar, no seguimento da primeira ideia, à admissibilidade da titularidade de Direitos de Crédito pelos particulares face à administração. Efetivamente, como já aqui se referiu, a Administração do Estado Novo era insensível a uma relação jurídica entre a Administração e particular, no qual o segundo fosse titular de um direito de credito, de fonte não contratual, algo que com a abertura do regime democrático, e a consequente revisão do papel do estado e da sua relação com os particulares, se veio a tornar numa realidade. 

O Prof. Tiago Macieirinha vem adiantar que efetivamente existe uma influência, no regime da lei 67\2007, daquele que era o entendimento do DL nº48051 e do próprio Direito Comum. Na verdade, aquela que era a tradição relativamente ao âmbito de responsabilidade civil extracontratual, não parece sofrer nenhuma ruptura com a lei 67\2007. O artigo 9.º da mesma lei, relativamente á ilicitude, estipula uma previsão que em pouco ou anda se afasta da disposição prevista no art. 3.º do DL, estipulando ilícitas as ações ou omissões dos titulares de órgãos, funcionários e agentes que violem disposições ou princípios constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos. Deste modo, não existindo uma ruptura no que toca à expressão “ofensa de Direitos”, e não existindo suporte doutrinal que justifique essa mesma ruptura, dever-se-á entender que o conceito de “Direito” aqui vertido deverá remeter para o conceito de Direito absoluto e do dever de abstenção, na tradição do DL 48051 e do Direito comum, e nunca da violação de um dever de prestar. 

 

Esta conclusão não significa que ocorre toda uma desresponsabilização da violação de Direitos de crédito de fonte não contratual, significa sim, que as mesmas deverão ser tratadas por um regime dogmaticamente apropriado para as mesmas, a responsabilidade obrigacional, embora seja necessário deixar aqui algumas notas: 

·       Em primeiro lugar no que diz respeito às diferenças e semelhanças entre a responsabilidade civil extracontratual e obrigacional. No que toca ao ónus da prova, pese embora em ambos os casos exista uma presunção de culpa, a presunção na Responsabilidade Civil Obrigacional abrange igualmente uma presunção de ilicitude, uma presunção de “faute”, e que o professor Menezes Cordeiro estende a uma presunção de nexo de causalidade, levando a que caiba ao devedor provar que realizou a prestação. 

 

No entanto é importante referir que a aplicação do regime da responsabilidade obrigacional no Direito administrativo deverá atender a algumas especificidades.  Se os princípios a que o Direito administrativo e a Administração pública estão sujeitos e que diferem daqueles que pautam o Direito das obrigações e as relações entre os particulares, não relevam a fim de perceber se se deve aplicar nesta sede o regime da Responsabilidade Civil Extraobrigacional  ou da Responsabilidade Civil Obrigacional, a verdade é que hão de revelar para perceber em que moldes se dá a responsabilidade obrigacional no Direito administrativo. A relevância será no âmbito da responsabilidade por facto de terceiro, e da solidariedade daí decorrente. O regime do 800º do CC, relativo à Responsabilidade Civil Obrigacional difere daquele que é o regime do 500º relativo à Responsabilidade Civil Extracontratual, pois na primeira a vinculação dá-se apenas entre devedor e credor. Faz sentido, no entanto, no âmbito do Direito administrativo das obrigações que o legislador venha a estabelecer um regime de solidariedade mais próximo do 500º, ou da solução do 7º e 8º da Lei 67\2007, na medida em que o regime da solidariedade da obrigação de indemnizar, para além de corresponder ao modelo da responsabilidade extraobrigacional, é igualmente expressão, no âmbito do Direito Administrativo, da opção constitucional por uma Administração Pública composta por um conjunto de funcionários responsáveis perante os cidadãos, assim como pode ser lida como uma decorrência dos princípios constitucionais da eficácia e eficiência da Administração Pública. 

 

3.     Conclusão

 

Para terminar este estudo, resta referir novamente as conclusões retiradas ao longo desta exposição. 

Como resulta do Direito administrativo positivado, existe uma distinção, tal como no Direito privado, entre responsabilidade civil extracontratual e obrigacional, distinção essa que resulta dum conjunto de razões comuns ao Direito privado. As violações dos Direitos de crédito de fonte não contratual, que, como se mostrou, têm igualmente lugar no Direito administrativo, por se basearem numa relação em que associado a um Direito de crédito existe um dever de prestar, caberão, na responsabilidade obrigacional. Esta conclusão, com que rematamos o estudo, parte da lacuna com que nos deparamos, relativamente ao tipo de responsabilidade a que estas violações estão sujeitas, e baseia-se nas razões da distinção entre responsabilidade obrigacional e extracontratual, que levam então à conclusão de que as violações de Direitos de crédito de fonte não contratual devem estar abrangidas pela responsabilidade obrigacional.  

 

 


 

 

 

Bibliografia: 

·       Macieirinha, Tiago, “Responsabilidade Civil da Administração por violação de dever de prestar de fonte não contratual”, in Vasco Pereira da Silva\Ingo Sarlet (Orgs.), Portugal, Brasil e o Mundo do Direito, separata, 2009, passim. 

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