O princípio da igualdade no âmbito do direito administrativo
1.Definição de Igualdade
Igualdade é um conceito universal que se tem vindo a revelar mais complexo do que aquilo que o homem tem capacidade para compreender. A igualdade pode ser tida como um ideal humano, como um fundamento para determinada atuação, ou até como o fim último de um ato. Pode ser objeto, pode ser meio e pode ser fim.
Aristóteles considera que a igualdade é o argumento utilizado por aqueles que procuram mudança, como uma bandeira de protesto que “coloca sempre a outra parte na defensiva”.
Igualdade, em termos de direito, pode ser assim classificada como um juízo comparativo que pretende verificar semelhanças e diferenças entre duas situações segundo um critério por si próprio estabelecido (A é igual a B segundo a característica C). Como não existem duas situações iguais, o que é avaliado é a semelhança de duas situações naquele aspecto concreto.
A existência ou não de comparabilidade reside assim apenas no critério de comparação selecionado para o efeito. É condição sine qua non que os termos sejam comparáveis.
Deve proceder-se à descoberta do princípio formal ou material que fundamenta a norma para que seja possível determinar o critério de comparação. Isto implica inevitavelmente a análise da relação de meio–fim da norma, sendo que o meio é a medida da diferença e o fim é o bem que a tutela jurídica visa proteger por meio de tratamento igual ou desigual conforme seja o caso.
Assim, uma avaliação que resulte numa relação de igualdade deve levar à produção de efeitos iguais; uma avaliação que resulte numa relação de desigualdade deve levar à produção de efeitos desiguais.[1]
Nas palavras de Paulo Otero, esto significa que “ninguém pode exigir que os seus interesses tenham maior proteção ou mais tutela jurídica do que os interesses idênticos titulados por qualquer outra pessoa”.[2]
Decorrente da impossibilidade de existência de duas situações iguais, até porque não existem duas pessoas iguais, até que seja permitido delimitar as semelhanças e diferenças que de facto relevam “tratar da mesma maneira os casos semelhantes» permanecerá uma fórmula vazia. Para a preencher, devemos saber quando, para as finalidades em vista, hão de ser considerados semelhantes os casos e que diferenças são relevantes”.[3]
2.Evolução histórica do conceito “Igualdade”
A evolução do princípio da igualdade reflete uma mudança gradual na compreensão dos direitos humanos e da justiça social.
Na antiguidade clássica, a noção de igualdade existia, mas era aplicada de uma forma muito diferente e limitada quando comparada aos termos atuais. Nesta altura, a igualdade abrangia apenas os cidadãos, excluindo mulheres, escravos e estrangeiros.
Durante o Iluminismo (séc. XVIII), pensadores como John Locke e Jean-Jacques Rousseau contribuíram para o desenvolvimento da ideia de igualdade. Locke argumentava que os direitos naturais deveriam ser garantidos a todos, independentemente do status social, e Rousseau explorava a ideia de um contrato social que estabeleceria uma sociedade mais igualitária.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada durante a Revolução Francesa (1789), afirmava o princípio da igualdade como fundamental. No entanto, essa igualdade inicialmente não era absoluta, pois havia limitações, especialmente em relação às mulheres.
Mais recentemente, surgem a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), que estabelecem a igualdade como um direito fundamental, já este abrangia todas as pessoas proibindo a discriminação com base em características como género, raça, religião, orientação sexual, entre outras.
3.Evolução do conceito “igualdade” no âmbito jurídico
Para melhorar compreender a evolução histórica do papel do princípio da igualdade no âmbito jurídico, recorreremos ao sistema tripartido sugerido pelo Professor Paulo Otero.[4]
3.1.- Igualdade formal/aplicação do direito
Nesta primeira fase, o conceito de igualdade era entendido como a mera aplicação da lei, representando apenas uma expressão mais simples do princípio da legalidade. A lei era entendida como igualitária por isso o destinatário deste conceito eram os aplicadores da lei e não o legislador.
Nas palavras de R. Alexy, o princípio da igualdade “nada mais significa que dizer que as normas jurídicas devem ser cumpridas”.[5]
3.2- Igualdade material/ criação do direito
A ideia de que a igualdade é um princípio que deve ser tido em conta na formulação do direito surge na Alemanha. Importa entender o contexto histórico. Existia o medo de que a tarefa de Controlo judicial coubesse a juízes que se rebelassem contra a democracia liberal, o que poderia colocar em perigo a supremacia do parlamento. Assim, o legislador foi incluído na lista de destinatários do princípio da igualdade.
3.3- Igualdade social/ através da lei
Com o nascimento de um novo conceito de estado que é social e tem preocupações económicas, sociais e políticas que vem substituir o anterior estado liberal abstencionista, surge a necessidade de efetivação do princípio da igualdade. O Estado social visa assegurar a satisfação de direitos fundamentais algo que um estado mínimo e não intervencionista era incapaz de assegurar.
4.Tipicidade normativa do princípio da igualdade
A previsão do principio da igualdade Integra a constituição portuguesa na secção de “princípios gerais” do título I da parte I da constituição de nome “direitos e deveres fundamentais”.
O princípio da igualdade vem previsto no n.º 1 do artigo 13.°, no qual, sob a epígrafe
"Princípio da igualdade"', se dispõe que "Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei".
Esta norma assume um carater geral fundamentalmente para que seja possível a sua aplicação em toda e qualquer atuação (sem restrição de âmbito de aplicação).
No âmbito de direito administrativo, o princípio da igualdade surge plasmado no Artigo 6º do código do procedimento administrativo no capitulo II denominado “princípios gerais da atividade administrativa” onde se lê “ Nas suas relações com os particulares, a Administração Pública deve reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever ninguém em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.
Em resumo, o princípio da igualdade no direito administrativo português visa garantir que a administração pública trate os cidadãos de forma justa, sem discriminações injustificadas, assegurando a equidade nas relações entre os indivíduos e o Estado.
4.1- O princípio da igualdade no âmbito do controlo de constitucionalidade
No contexto do controlo de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional é a instância responsável por garantir que as leis e outros atos normativos respeitem os princípios fundamentais da Constituição, incluindo o Princípio da Igualdade. Quando uma norma é questionada quanto à sua constitucionalidade, o Tribunal Constitucional avalia se esta respeita ou viola os princípios fundamentais, incluindo o da igualdade.
Se uma norma for considerada discriminatória sem uma justificação razoável, ela pode ser declarada inconstitucional. Este processo de controlo de constitucionalidade assegura que as leis e regulamentos em Portugal estejam alinhados com os princípios fundamentais da CRP, incluindo o Princípio da Igualdade.
Além disso, o Princípio da Igualdade também desempenha um papel importante na interpretação e aplicação das leis pelos tribunais ordinários. Os juízes são instruídos de forma a evitarem interpretações que levem à discriminação injustificada.
Segundo o acórdão 367/99 "este princípio, com sede no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, embora sistematicamente integrado na Parte 1, Título 1, da Constituição (Direitos e Deveres Fundamentais; Princípios Gerais), não está confinado à matéria dos direitos, liberdades e garantias, antes se impõe a toda a atividade legiferante do Estado”.[6]
Paulo Otero considera que o princípio da igualdade é "uma decorrência da ideia de justiça"[7], na medida em que não se pode afirmar que uma decisão é justa se esta não respeitar este mesmo princípio.
4.2-Casos uni-normativos e pluri-normativos
Quando se coloca em questão se duas situações merecem tratamento normativo igual ou desigual, pode ser devido à contraposição de duas normas ou decorrer de apenas uma.
Quando decorre de uma só norma, o que está verdadeiramente em causa é a constitucionalidade dessa mesma norma enquanto que nos casos pluri-normativos, essa questão de constitucionalidade decorre da contraposição de duas normas.
Dentro dos casos uni-normativos, podemos distinguir duas subcategorias: os casos sub-inclusivos e os casos sobre-inclusivos.
As normas sub-inclusivas, como o nome sugere, não incluem casos jurídicos na sua previsão normativa apesar de preverem casos semelhantes entre os quais é partilhado um critério de comparação que consiste na ratio legis. Ou seja, deviam abranger casos que não estão previstos na norma.
Por outro lado, as normas sobre-inclusivas operam de forma inversa, ou seja, consistem em normas jurídicas que incluem casos que embora semelhantes e previstos na norma, não partilham entre si uma razão justificativa de se lhes aplicar a mesma solução.
Nos casos pluri-normativos, é possível fazer uma subdivisão entre dois tipos de casos: casos em que existe uma relação de especialidade ou excecionalidade entre normas e casos onde essa relação não existe.
5. O Princípio da igualdade no âmbito do direito administrativo
O princípio da igualdade é um dos pilares fundamentais do direito administrativo em Portugal, assim como em muitos outros sistemas/ordenamentos jurídicos.
No âmbito do direito administrativo, o princípio da igualdade implica que a administração pública trate de forma igual todos os cidadãos que se encontrem em situações semelhantes, sem fazer distinções arbitrárias ou discriminatórias. Este princípio visa assegurar a justiça e a equidade nas relações entre os cidadãos e a administração pública.
No contexto do direito administrativo, o princípio da igualdade também se manifesta em outros aspetos, como nos concursos públicos, licitações e procedimentos administrativos em geral. A administração pública deve agir de forma transparente e justa, garantindo que todos os interessados tenham igualdade de oportunidades.
O princípio da igualdade tem diversas formas de manifestação dentro do ramo de direito administrativo, nomeadamente na igualdade de aplicação da lei, igualdade na criação da lei, igualdade de tratamento, a igualdade de repartição nos encargos públicos, etc.[8]
No entanto, é importante destacar que o princípio da igualdade não implica tratamento idêntico em todas as situações, mas sim tratamento igual perante situações iguais. Existem circunstâncias em que a diferenciação de tratamento é justificável e legal, desde que haja uma razão objetiva e razoável para tal.
A igualdade das situações tem que se verificar em relação aos aspetos relevantes à luz do poder administrativo em concreto exercido e do fim para o qual ele foi legalmente conferido.
5.1- Ligação do princípio da igualdade com os demais princípios administrativos
a) Princípio da imparcialidade: O princípio da igualdade tem uma forte ligação com um princípio administrativo de importância fundamental, o princípio da imparcialidade, visto que o princípio da igualdade visa assegurar que a administração pública trate todos os cidadãos de forma justa e equitativa. Isso contribui para a construção de uma sociedade mais justa, na qual todos são tratados com imparcialidade, independentemente de características pessoais, como raça, género, religião ou estatuto social;
O princípio da igualdade está ainda frequentemente ligado aos direitos fundamentais consagrados na Constituição portuguesa, pois garante que os cidadãos tenham acesso igualitário a serviços públicos, benefícios e oportunidades, protegendo assim os seus direitos fundamentais.
b) Princípio da legalidade: O princípio da igualdade está intrinsecamente ligado ao princípio da legalidade. A administração pública deve agir de acordo com a lei, e a igualdade implica que as decisões administrativas se baseiem em critérios objetivos e razoáveis, promovendo assim a transparência e a previsibilidade das ações administrativas;
c) Princípio da confiança: A observância do princípio da igualdade reforça a credibilidade do sistema jurídico e administrativo. Quando os cidadãos têm confiança de que serão tratados de forma justa e igualitária, isso fortalece a legitimidade das instituições públicas e promove a confiança na administração;
d) Princípio da proporcionalidade: Provavelmente o princípio com o qual existe uma ligação mais forte. De tal modo que na jurisprudência portuguesa é já comum a utilização da ideia “igualdade proporcional”. É frequentemente utilizada para designar a medida da diferença entre duas situações segundo critérios da proporcionalidade. Esta ideia é utilizada como critério em alguns acórdãos do Tribunal Constitucional;[9]
Ainda nas palavras do Tribunal Constitucional, o “reconhecimento da igualdade como valor constitucional converte-a em critério geral que modela o ordenamento jurídico no seu conjunto e releva como elemento de interpretação desse mesmo ordenamento, logo, por isso, também da própria Constituição”.[10]
6. Síntese
6.1- Igualdade é um conceito que apesar de universal é indeterminado e por isso abstrato, daí a existência de uma certa dificuldade de positivação. Em termos simplificados, opera como um juízo comparativo entre duas situações onde são identificadas as suas semelhanças e diferenças segundo um critério de comparação;
6.2- A sua evolução no âmbito jurídico pode ser dividida em três fases: (i) as normas eram tidas como igualitárias por natureza, por isso o princípio da igualdade era dirigido aos aplicadores da lei; (ii) a igualdade é um princípio que deve ser tido em conta na formulação do direito e por isso deve o legislador ser um destinatário do mesmo; (iii) o Estado tem que assegurar que o principio da igualdade é cumprido para que haja satisfação de direitos fundamentais;
6.3- O princípio da igualdade está tipificado na constituição no seu artigo 13/1º e no Código do procedimento administrativo no seu artigo 6º;
6.4- O princípio da igualdade desempenha uma função importante no que toca à interpretação e aplicação de leis por parte dos juízes;
6.5- Quando se põe em causa o princípio da igualdade este pode ser decorrente de uma norma ou da contraposição de duas normas. Nos casos uni-normativos, podemos distinguir ainda normas sub-inclusivas e normas sobre-inclusivas sendo que as primeiras não preveem casos que deviam prever e as segundas incluem casos que não deviam ter a mesma solução;
6.6- No direito administrativo o princípio da igualdade tem diversas manifestações e é extremamente relevante, dado ser indispensável num estado de direito, que todos os cidadãos tenham iguais possibilidades e condições de acesso a serviços, bem como equidade nas suas relações entre si e com a administração;
6.7- O princípio da igualdade tem estreita ligação com diversos outros princípios nomeadamente o princípio da imparcialidade, legalidade, confiança e proporcionalidade;
6.8- Em Portugal, a jurisprudência tem em conta o princípio da igualdade e fundamenta frequentemente as suas decisões no mesmo, mais concretamente na “igualdade proporcional”;
7. Conclusão
Em resumo, o princípio da igualdade desempenha um papel crucial no direito administrativo em Portugal, contribuindo para a promoção de uma administração pública justa, transparente e respeitadora dos direitos fundamentais dos cidadãos.
[1] M. GLÓRIA GARCIA, "Princípio da Igualdade: Fórmula Vazia ou Fórmula «Carregada» de Sentido?”, in Estudos sobre o Princípio da Igualdade, p.44.
[2] P. OTERO, “Direito do procedimento administrativo”, Vol. I, Coimbra, p.167.
[3] H. L. A. HART, - The Concept of Law, 2.a ed., Oxford, 1994, pp-173-174.
[4] Sistematização tripartida da evolução do principio da igualdade: P.OTERO, "Sumários de um Curso de Direitos Fundamentais", in RFDUL, Vol.41, n.º 1, 2000, pp.425-426.
[5] R. ALEXY, Theorie der Grundrechte, Frankfurt, 2006 (tradução portuguesa "Teoria dos Direitos
Fundamentais", de Virgílio Afonso da Silva, 2. ed., São Paulo, 2015, p.394.
[6] Acórdão n.º 367/99, de 16.06.1999, processo n.º 146/98, primeiro parágrafo do ponto 13.
[7] P. OTERO, “Direito do Procedimento Administrativo”, Vol.I, p.165.
[8] VASCO PEREIRA DA SILVA, “Direito Constitucional e Administrativo sem fronteiras”, Almedina, 2023, p.117.
[9] Acórdãos do Tribunal Constitucional n° 353/2012, 187/2013, 39/88 e 96/05.
[10] Acórdãos do Tribunal Constitucional n° 14/84, 126/84, 76/85, 352/91, 400/91, 806/93, 270/2009, 407/2010.
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