Antigamente, pensava-se que os direitos fundamentais só incidiam na relação entre os cidadãos e o Estado – também conhecido por eficácia vertical. Por outras palavras, pensava-se que os direitos fundamentais apenas existiam entre um poder superior (o Estado) e um poder inferior (os cidadãos). Porém, no século XX, surgiu, na Alemanha, a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais[1]. Esta teoria defende a existência destes direitos em relações privadas entre iguais, também conhecida por eficácia dos direitos fundamentais contra terceiros. Segundo Carlos Jorge Marques Santos, é imperativo que o Estado, por via dos seus deveres de proteção, permita o exercício dos direitos fundamentais de forma livre e justa[2].
Jorge Miranda faz uma clara distinção entre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e a eficácia externa. Enquanto nesta última o mesmo diz que a sua finalidade não é interferir no exercício dos direitos dos outros, na eficácia horizontal dos direitos fundamentais existem relações bilaterais, nas quais determinados direitos, liberdades e garantias podem ser postos em causa. Ou seja, algumas situações privadas, pela sua natureza, podem ser equivalentes às relações entre um indivíduo e um poder público. Isto pode ter como exemplo relações entre trabalhadores e entidades patronais, ou relações entre inquilinos e senhorios, onde a parte mais fraca fica limitada no exercício e gozo dos seus direitos, liberdades e garantias, por pressão de uma entidade mais forte[3]. Mesmo sabendo que o artigo 18° n°1 da Constituição deixa evidente que a aplicação dos direitos, liberdades e garantias é admissível tanto às entidades publicas quanto às privadas[4], a sua aplicabilidade por vezes encontra-se comprometida devido à natureza intrinsecamente fluída do referido dispositivo. A ambiguidade do mesmo pode resultar em interpretações variadas, o que, por sua vez, pode impactar a consistência na implementação prática do termo constitucional.
No que diz respeito á eficácia horizontal dos direitos fundamentais, é imperativo considerar o princípio geral da igualdade, estipulado no artigo 13° da Constituição[5]. Este mesmo artigo proíbe a discriminação em razão de sexo, raça, língua, entre outros critérios, sublinhando a importância do tratamento justo entre os cidadãos. Segundo o Professor Doutor David Duarte, a ideia de igualdade resulta da assunção universal de que todos os homens, na sua diferença, são iguais e que devem, por isso, ser tratados de igual forma e ter as mesmas condições de acesso aos bens económicos e culturais[6]. Neste contexto, a autonomia privada, embora seja um princípio reconhecido, deve ser cuidadosamente analisada quando as suas manifestações podem comprometer o direito à igualdade. Segundo o Professor Doutor Paulo Otero, o princípio da igualdade diz-nos, no fundo, que todos são iguais perante a lei. Porém, o professor menciona que o Estado de Direito Social e do Bem-Estar vai mais longe; não se limitando quer a uma igualdade formal, quer a uma igualdade real, falando-se então de uma igualdade substancial, material. Esta igualdade substancial, material significa que não podemos tratar como igual aquilo que é desigual. Este apelo a uma ideia de justiça material de respeito pelo princípio da igualdade é mencionado no artigo 266° da Constituição, mas também é resultante do artigo 13° da Constituição[7]. Nas relações verticais entre o Estado e os cidadãos, a obrigação de igualdade mostra-se imperativa. Em geral, a doutrina aceita que a liberdade implicada no princípio da autonomia privada prevaleça sobre os critérios objetivos da contratação. Ou seja, é-se livre de contratar ou de não contratar, sem que isso indique uma violação do princípio constitucional da igualdade. Neste âmbito, atenta mencionar que o professor Reis Novais interpreta o princípio da igualdade como um princípio com diferentes níveis de densidade ou intensidade quanto ao controlo jurisdicional.
Com isto, há certas situações em que o cumprimento do princípio em questão pode ser posto em causa. Tomemos como exemplo um ginásio exclusivo para mulheres. Como expressão de autonomia privada, tal medida pode levantar questões sobre o cumprimento do princípio da igualdade de género. Consequentemente, é necessário ponderar até que ponto essas práticas podem resultar em descriminações inconstitucionais. Isto posto, a análise da eficácia horizontal dos direitos fundamentais não pode dispensar da reflexão sobre como a autonomia privada pode afetar o equilíbrio entre as liberdades individuais e os princípios constitucionais.
Usando ainda o mesmo exemplo do ginásio exclusivo para mulheres, o mesmo pode ser justificado como exercício legítimo da autonomia privada, pois a sua execução não viola necessariamente o princípio da igualdade. Como princípio fundamental do ordenamento jurídico, a autonomia privada confere o direito de estabelecer regras próprias, desde que as mesmas não violem normas legais ou constitucionais. Com isto, visto que o ginásio em questão pode ser uma resposta às preocupações de segurança e privacidade das mulheres – e visto que o Direito Administrativo reconhece a importância da autonomia privada, se a medida for considerada necessária para salvaguardar a segurança e proteção das mulheres, ela pode ser justificada. Respeitando assim, os princípios do Direito Administrativo que equilibram os interesses públicos com a autonomia privada. Assim, importa ponderar não apenas o princípio da igualdade, mas também os demais princípios administrativos que moldam a análise de situações como esta. Interessa mencionar que nem os direitos fundamentais são absolutos, pois mesmo estes sendo básicos, podem ser casuisticamente usados em menor ou maior medida. Com isto, os direitos fundamentais podem ser perspetivados, desde que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade sejam respeitados.
Em suma, ao analisar o problema da aplicabilidade do princípio da igualdade a entidades privadas, importa considerar se a não aplicabilidade do mesmo tem uma razão social forte o suficiente que possa justificar nomeadas violações. Importa também identificar se a discriminação em causa se enquadra na esfera pública ou na esfera privada do cidadão. Conclui-se, portanto, que o direito fundamental do princípio da igualdade pode, excecionalmente, ser mitigado em face de razões sociais superiores. Reconhecendo a importância da autonomia privada, é possível argumentar que, mediante uma justificação social vigorosa, restrições, neste caso com base em género, podem ser aceitáveis. Porém, a análise de tais situações deve ser conduzida cautelosamente, preservando o equilíbrio entre os direitos fundamentais e os imperativos do Direito Administrativo. Com isto, para resumir todos os pontos mencionados, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais no âmbito do Direito Administrativo, ao estender-se às relações entre particulares e entidades públicas, destaca-se pela conservação do princípio geral da igualdade. No entanto, em circunstâncias excecionais, é reconhecida a possibilidade de entidades privadas, motivadas por razões sociais superiores, infringirem o princípio da igualdade.
Bibliografia:
Constituição Da República Portuguesa.
Duarte, David. Procedimentalização Participação E Fundamentos. Vol. 2, pp. 1–573. Páginas 302-303.
Jorge Marques Santos, Carlos. A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA de 1976. FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO PORTO, 2013.
Schmidt, Anderson. “A Eficácia Horizontal Dos Direitos Fundamentais.” Www.schmidtadvogados.com, www.schmidtadvogados.com/portfolio-view/a-eficacia-horizontal-dos-direitos-fundamentais/. Accessed 19 Nov. 2023.
Maria Carolina Martins Bleck da Silva
PB15, 68094
[1] Schmidt, Anderson. “A Eficácia Horizontal Dos Direitos Fundamentais.” Www.schmidtadvogados.com, www.schmidtadvogados.com/portfolio-view/a-eficacia-horizontal-dos-direitos-fundamentais/. Accessed 19 Nov. 2023.
[2] Jorge Marques Santos, Carlos. A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA de 1976. FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO PORTO, 2013.
[3] Jorge Marques Santos, Carlos. A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA de 1976. FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO PORTO, 2013.
[4] Constituição Da República Portuguesa.
[5] Constituição Da República Portuguesa.
[6] Duarte, David. Procedimentalização Participação E Fundamentos. Vol. 2, pp. 1–573. Páginas 302-303.
[7] Constituição Da República Portuguesa.
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