Semestres

terça-feira, 28 de novembro de 2023

O Espelho do Direito Administrativo: Sistema Francês e Sistema Anglo-Saxónico.

 

  • Introdução

Atualmente, é incompreensível e fraturante, tendo por base a noção de Estado Democrático de Direito, conceber a ideia do particular não ser sujeito de direito e que, por consequência disso, não possuir direitos perante a Administração. A Constituição da República Portuguesa esclarece, no artigo primeiro, o particular como um sujeito de direito (“ Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária) . Por isso mesmo, está em posição de igualdade perante a administração pública, pois o particular, concentra em si a origem do poder público. Significa isto que, a função da administração, por si só, autolimita-se quando esclarece que o seu objetivo é a prossecução do interesse público. Esta autolimitação verifica-se no facto do interesse público envolver o particular, na medida em que, não é possível realizar o interesse público se deste resultar a violação da dignidade da pessoa humana . Por outras palavras, o interesse público não pode pôr em causa os direitos dos particulares, e consequentemente, o artigo primeiro da Constituição da República Portuguesa bem como a ideia de Estado de Direito Democrático (artigo 2 da CRP). De todas as maneiras, considera-se portanto que há um equilíbrio estabelecido na relação entre o particular e a administração. 

De facto, nem sempre foi considerado incomensurável a desconsideração pelos direitos de particulares, sendo estes postos em causa por uma administração agressiva, que transparece o primeiro grande trauma de infância direito administrativo e um segundo, igualmente desconcertante, trauma (refletido através do Acórdão Blanco, de 1872) , como acontece no sistema francês, no século XVIII e XIX, ou, contrariamente ao verificado,  durante a juventude do sistema britânico. 

O Senhor Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, considera que a evolução histórica da Administração não foi, de todo, linear, chegando a defender que esta apresentava avanços e retrocessos e que, contrariamente a alguns autores, a evolução histórica da Administração Pública não se iniciou com o Estado Liberal, mas sim com o Estado Oriental. Defende, desta forma, que as primeiras administrações públicas nascem quando os imperadores, sob sua direção constituem corpos de funcionários permanentes, pagos pelo tesouro público, para cobrar impostos, executar obras públicas e assegurar a defesa de território contra inimigos.

Desta forma, o presente post, tem como objetivo principal, percorrer a continuidade (Modelo de Estado Liberal e Democrático, Modelo de Estado Social e Modelo de Estado Pós-Social) do direito administrativo através da análise das descontinuidades dos sistemas opostos já mencionados. 

  • Sistema Francês e Sistema Britânico

De modo, a sistematizar os conteúdos da melhor forma, importa distinguir inicialmente os dois sistemas privilegiados em análise: o sistema francês e o sistema britânico. 

O nascimento do Modelo de Estado Liberal Democrático (século XVIII e XIX), verificou-se em ambos os sistemas, por motivações diferentes. No sistema anglo-saxônico, a inexistência de revolução, bem como a necessidade de autoridade, colidiu com uma transição pacífica, da sociedade feudal para a nova sociedade democrática que não exigiu a criação de normas especiais destinadas a proteger a administração pública. Desta forma, é possível esclarecer apenas um seguimento e não uma rutura, como no sistema francês. Por outras palavras, a Revolução Francesa (século XVIII) foi fundamental para a proteção desmesurada da administração que, naturalmente, refletiu essa fragilidade no sistema francês, mas não no anglo-saxónico. Neste, a Administração Pública estava submetida ao common law, o que permite concluir a inexistência de um direito administrativo, se o entendermos como o conjunto de normas destinado a proteger a administração. 

Durante a segunda metade do século XIX e XX, emerge um segundo modelo: o Modelo de Estado Social Democrático que, irá coincidir com uma primeira aproximação entre sistemas, que funciona como uma resolução positiva de desenvolvimento e aperfeiçoamento das bases constituintes do Estado Democrático de Direito. Constata-se, portanto, uma democratização da administração pública. Assim sendo, é possível verificar já durante este período, uma coleção de metamorfismos que colidem numa administração prestadora ( de bens e serviços), consensual quanto à diversidade de formas de atuação, bem como ao interesse pela consideração dos particulares como sujeitos de direito e, portanto, associados a direitos, perante a Administração (procedimento administrativo)

Desta forma, a análise de cada um dos Modelos de Estado mencionados, irá distinguir-se, entre os sistemas, no Estado Liberal Democrático e no Estado Social Democrático, sendo portanto coincidente no Estado Pós-Social, pelas razões mencionadas. 

  1. Modelo de Estado Liberal Democrático 

O Estado Liberal nasceu da Revolução Francesa no final do século XVIII e caracteriza-se essencialmente pelo nascimento das primeiras Repúblicas nos grandes países ocidentais que utilizavam como mecanismo de limitação do poder político o constitucionalismo; a adoção do princípio da soberania popular associada também ao aparecimento de partidos políticos. 

1.1 Sistema Francês e os (dois) Traumas  de Infância do Direito Administrativo.

O primeiro grande trauma, que se reflete até aos dias de hoje no direito administrativo, reside no seu nascimento. 

Decorrente da Revolução Francesa, fundamentada em princípios liberais assentes na separação de poderes, a Administração Pública parece evidenciar-se como a exceção, sem esclarecimento, ao princípio da separação de poderes que lhe serve de base. Ora, parece clara a impossibilidade de consideração dos ideais liberais somente   quando favorável à proteção da administração. Assim, sem coerência, o Estado Liberal, sustentado pela separação de poderes e pela garantia dos direitos dos particulares, parece remar na direção oposta quanto ao contencioso administrativo que é retirado aos tribunais e entregue ao autocontrolo da Administração. Perante a Administração Pública, o particular não tinha direitos , pois estes estavam limitados ao domínio das relações privadas. Desta forma, podemos caracterizar a Administração como agressiva, pois esta atuava para suprimir os direitos dos particulares com base nas funções de defesa e segurança que a esta pertenciam. Assim, é possível clarificar que, ainda que a Revolução Francesa tivesse como objetivo descartar o modelo de administração de polícia, a realidade liberal continuava a aproximar-se desse modelo, uma vez que não tinha em consideração os sujeitos de direito, bem como os direitos associados a estes. Para comprovar tal afirmação, o Senhor Professor Doutor Vasco Pereira da Silva esclarece a existência de um segundo trauma: o do contencioso administrativo, nomeadamente, a sentença do Tribunal de Conflitos, quanto ao caso de Agnés Blanco, onde Agnés, com 5 anos de idade, sofreu um atropelamento por um vagão da Companhia Nacional da Manufatura do Tabaco, uma empresa pública. O Tribunal de Bordéus considera-se incompetente uma vez que a atuação proveio de uma entidade administrativa e não de um particular. Para além disto considera que, mesmo que não o fosse, não existia norma a aplicar, pois o Código de Napoleão apenas podia ser invocado em conflitos entre iguais, o que não se verificava. A jurisdição administrativa fundamenta, também, com base em incompetência, uma vez que não está em causa um ato administrativo, mas antes uma operação. O Tribunal de Conflitos intervém de modo a decidir qual o tribunal competente para julgar o caso em questão. O Acórdão Blanco surgiu, portanto, para determinar que cabe à justiça administrativa resolver conflitos inerentes à responsabilidade civil da administração e esclarece, para além disso, a inexistência de norma aplicável, uma vez que não nos encontramos perante uma relação entre iguais. 

 Os atos administrativos são entendidos como atos de autoridade, ou seja, atos de poder. Esta realidade de um ato administrativo no centro do direito administrativo, conduzia a outra realidade: o ato administrativo como centro do processo. Em Portugal, o Senhor Professor Doutor Marcello Caetano,  considerava o ato como definitivo, porque decidia sobre os direitos dos particulares no caso concreto e executório, pois era suscetível de execução por força coativa. Esta noção só foi abandonada com a revisão constitucional de 1989.

Os privilégios da Administração são comprovados mediante a proibição de julgamento desta, por parte dos tribunais conciliando, em reunião,  verdadeiros problema sociais que culminam na incerteza e desconfiança, fruto de injustiça, pois se parece claro, atualmente, que os mesmos órgãos devem ser separados consoante as suas funções (função administrativa e judicial, no caso em questão), tão nítido não seria na altura, uma vez que a administração controlava-se a si mesma. As fragilidades do modelo são claras, através da ilegitimidade da separação de poderes dita preservada que, em tom quase caricato, poderá ser comparada à realidade de recordação de cobertura apresentada por Sigmund Freud, criador da psicanálise, como uma construção idealizada, distante da realidade, que a facilita. Na prática, corresponde a um “ajuste” excessivo da realidade, que ao extrapolar dessa, não permite o ajuste mas, sim uma imposição de uma utopia à realidade. O mesmo se verifica em relação ao princípio da separação de poderes, uma vez que este é associado à ideia de Estado Liberal Democrático, mas permite-se, sem fundamento justo, o descarte do mesmo quando em causa estão os direitos do particulares em oposição à Administração que nutria poderes especiais de autocontrolo. 

O Conselho de Estado, criado por Napoleão Bonaparte, detinha 2 funções essenciais: era o órgão consultivo da administração e detinha função jurisdicional. Ao deter a função jurisdicional, o Conselho de Estado emitia pareceres, sendo estes sujeitos a aprovação por parte do Chefe de Estado para efeito de entrada em vigor. Desta forma, ainda que exista um controlo por parte do Chefe de Estado, este, por sua vez, também é um órgão da administração pública o que resulta, na clara e distinta ideia já mencionada de administração controlada por si mesma. A autonomia do Conselho de Estado começou a intensificar-se ao longo do tempo, sobretudo com a delegação de poderes por parte do Chefe de Estado o que contribuiu para um coeso exercício em matéria de julgamento, uma vez que o Conselho de Estado acabava por ganhar autonomia quanto à decisão de conflitos, não sendo necessário recorrer à homologação por parte do Chefe de Estado. A doutrina diverge quanto à criação do contencioso administrativo: Vasco Pereira da Silva, defendeu na tese Em Busca do Ato Administrativo Perdido, a importância associada à não confusão desta realidade com a criação de tribunais administrativos. Marcello Caetano, Diogo Freitas do Amaral e Sérgio Correia, fundamentam o contrário com base na justiça delegada . Vasco Pereira da Silva defende, portanto, que tal suporte não poderia ser verdadeiro, na medida em que, primeiramente, o Conselho de Estado, detém 2 funções que, entre si, também não revelam qualquer distinção aparente. Significa isto que, havia confusão entre a tarefa de julgar e a de administrar; para além disso, a delegação de poderes não cria um tribunal, na medida em que esta corresponde a uma transferência de poderes na administração,  não implicando a perda de competência pelo órgão que delegou. Assim sendo, não é possível a criação de um tribunal por meio de um mecanismo administrativo. Desta forma, Vasco Pereira da Silva considera que, só com a jurisdicionalização do contencioso (nos finais do século XIX e XX) em que os tribunais deixam de ser órgãos administrativos, e tornam-se autónomos e independentes, como esclarecido no artigo 203 da Constituição da República Portuguesa de 1976. 

1.2. Sistema Anglo-Saxónico e o trauma de juventude do Direito Administrativo

Dissociado da ideia de rutura, estabelecida no sistema francês, o sistema anglo-saxónico não considera a existência de direito administrativo durante o século XVIII e XIX, uma vez que não se verificaram problemas que exigissem a criação de normas especiais para a Administração Pública. Desta forma, a Administração Pública está sujeita ao common law pelo que, qualquer tribunal comum podia julgar a Administração. Isto permite concluir que, contrariamente ao sistema francês, onde verificámos a existência de dois traumas provocados pela existência de uma administração agressiva, o sistema anglo-saxónico não evidencia tais problemáticas, pelo menos durante a sua infância. 

  1. Modelo de Estado Social Democrático 

Este modelo nasce como consequência da Revolução Industrial, no século XIX, e das necessidades económicas, sociais e culturais verificadas. Desta forma, a Administração passa a ser uma administração prestadora, na medida em que presta bens e serviços, sendo esta a principal função do Estado: a função administrativa. Com a diversidade de formas de exercer a função administrativa, o ato administrativo deixa de ser autoritário que, agora, satisfaz as necessidades coletivas por meio do direito. 

O surgimento da administração prestadora exige, ao sistema britânico, a criação de leis especiais para a Administração uma vez que, durante o Estado Social verificou-se uma ampliação da intervenção das entidades públicas na vida económica, social e cultural. Desta forma surgiram, no Reino Unido, os administrative tribunals, órgãos administrativos com poderes especiais de decisão coativa. Estes tribunais, considerados como o trauma da juventude do direito administrativo por Vasco Pereira da Silva, derivam da confusão de funções. 

Também o mesmo se verificava no sistema francês, na medida em que, como mencionado anteriormente, o Conselho de Estado também sofria do mesmo vício, que resultava numa administração que, metaforicamente escondia à vista de todos uma relação de convívio superficial com a ideia de justiça. 

  1. Modelo de Estado Pós-Social

No final dos 60, princípio dos anos 70, a realidade pós guerras mundiais exigiu uma maior disciplina económica distinta da injeção de moeda na economia por intervenção do lado da procura de modo a promover o crescimento e desenvolvimento económico. A substituição deste modelo económico (modelo Keynesiano) verificou-se pelas problemáticas associadas à estagnação e inflação por parte do efeito multiplicador das despesas públicas. Considerava-se que o Estado intervinha em muito, talvez mesmo em demasia. 

Fruto do descontentamento associado à crise económica mencionada, emerge uma crise cultural, coincidente com o modelo hippie como alternativa ao modelo de sociedade. Desta forma, motivados pela vontade de revolucionar e reformular uma sociedade, em muito errada, a geração hippie participou em importantes movimentos de caráter ecológico e ambiental, que resultaram numa nova função do Estado: a função ambiental. Desta forma, podemos considerar que no Estado Pós-Social surgiram novos direitos fundamentais no domínio do ambiente. Para além disto, o ramo digital e tecnológico continua, até aos dias de hoje em constante aprimoramento.

Aflora, desta forma, um novo modelo de administração: uma administração infraestadual que criava infraestruturas de modo a poder exercer a função administrativa e satisfazer as necessidades coletivas. Significa isto que, a Administração cria as condições necessárias para a prestação de serviços, o que não significa que seja, obrigatoriamente, está a providenciá-los, mas antes um particular ou entidade pública sob forma privada particular. Desta forma, podemos caracterizar a administração como reguladora, uma vez que regula o modo de exercício da função administrativa, de modo a estabelecer colaboração entre particulares e a administração pública. O princípio da tutela plena efetiva vem esclarecer que o contencioso administrativo tem como objetivo assegurar a tutela dos direitos dos particulares de forma plena, ou seja, nenhum direito pode ser excluído do tribunal, e de forma efetiva, ou seja, o meio processual tem de ser o adequado ao domínio correspondente. 

  • Conclusão 

Assim, em gesto de conclusão, parece claro estabelecer que ao avaliar o papel que a Administração Pública ocupa em cada um dos períodos mencionados, esta adota diferentes características que, associadas à realidade política, económica e social, permitem verificar tópicos interessantes, como o facto de, ainda que influenciados por ideais liberais, as externalidades fazem com que possamos estabelecer dois extremos: o sistema anglo-saxónico e o sistema francês, que serviriam de base para outros sistemas, estes, mistos e que, por esta qualidade, irão também refletir na Administração Pública outras características.

Ainda assim, é de considerar que a evolução conduz a uma convergência destes sistemas. Desta forma, a evolução do Direito Administrativo, funciona como um espelho. Espelho este que poderá provocar modificações na maneira como a Administração se apresenta, no entanto, a base será a mesma. De qualquer das formas, este espelho, que simboliza a dimensão social, económica e cultural de cada um dos países, irá influenciar o método de avaliação e análise do Direito Administrativo. No entanto, importa salientar que sem espelhos, não seria possível verificar quais as características físicas que nos distinguem enquanto pessoas. O mesmo se verifica em relação ao Direito Administrativo, cuja evolução precisa e clara só poderá ser realizada com o apoio do dito "espelho".


  • Bibliografia

Freitas do Amaral, D. (2015). Curso de Direito Administrativo (4ª ed., Vol. I). Almedina.

Pereira da Silva, V. (2016). Em Busca do Ato Administrativo Perdido (Reimpressão 2021 ed.). Almedina.

Pereira da Silva, V. (2016). O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo (2ª edição, 2009 ed.). Almedina.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Acontecimentos revolucionários no Direito Administrativo.

      Acontecimentos revolucionários no Direito administrativo:        Fazendo uma análise da evolução do direito Administrativo na sua vert...