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terça-feira, 28 de novembro de 2023

O dever de obediência na "galáxia administrativa"

 

O dever de obediência na "galáxia administrativa" 

 

     Desde a passagem de um Estado Liberal para um Estado social e democrático de Direito, que se defende que o Estado deixou de ter concentrado em si os meios de satisfação dos interesses da sociedade. Neste estado, há de certa forma uma reavaliação dos fins e recomposição das relações entre este e a Sociedade. Apesar de ainda configurado como a figura suprema, o Estado não tem o monopólio da satisfação dos interesses gerais devido à impossibilidade de uma única entidade atender a todas as necessidades. Com isto, criam-se várias entidades públicas que terão como função satisfazer certos interesses sociais, no fundo, falamos de uma descentralização administrativa onde cada entidade terá o escopo de satisfazer esses interesses de acordo com as atribuições jurídicas que lhes são dispostas.

     Com o aumento de entidades públicas, revelou-se uma multiplicidade e complexidade de relações que o Professor Paulo Otero refere de maneira sem igual como “verdadeiras teias que cruzam a galáxia administrativa”[1]. A expressão “galáxia administrativa” foi um termo utilizado por Eduardo García de Enterría[2], um jurista espanhol que explicava assim que cada entidade administrativa tinha órgãos e era através destes órgãos que se realizavam poderes jurídicos para satisfazer o interesse geral atribuído à própria (coordenação global da atividade administrativa).

     Claro que, toda esta teia relacional acaba por ter que ser arrumada para que opere verdadeiramente na prossecução do seu fim. Noutros termos, é seguro dizer que a diversidade de órgãos institui a necessidade de serem organizados de acordo com as suas competências, daí se referir a hierarquia administrativa. Apesar de ser um conceito muito discutido na doutrina, é factual que consiste numa organização vertical e que acaba por se formar uma relação hierárquica graças ao dito processo de escalonar que, quer o Professor Marcelo Rebelo de Sousa quer o Professor Marcello Caetano referem[3]. Portanto, existindo pelo menos dois órgãos, estes estão ligados por um vínculo de prossecução de interesses comuns, que vai atribuir ao superior certos poderes e ao subalterno certos deveres, formando-se uma relação interorgânica (entre órgãos da mesma entidade e não entre pessoas singulares) de prossecução de atribuições comuns. O Professor Freitas do Amaral refere mesmo que o vínculo estabelecido “confere ao superior o poder de direção e impõe ao subalterno o dever de obediência”[4], entrando-se assim no domínio dos poderes de cada uma das partes.

     Ora, numa relação hierárquica, as partes (superior e subalterno) possuem várias capacidades, direitos e deveres, sendo que, o superior detém três poderes fundamentais: o poder de direção, o poder de supervisão e o poder disciplinar. São poderes correlativos e interdependentes, pois, sem a existência de um, a soberania do superior estaria muito frágil e enfraquecida, o que leva a querer que há uma relação de complementaridade e reforço. Sem margem para dúvidas que o poder que releva é o poder de decisão – o poder de dar ordens ou instruções ao subalterno (importante referir que são duas realidades distintas, a primeira é um comando individual e concreto e a segunda um comando geral e abstrato) – mas antes de o abordarmos, é ponderoso que se denote os restantes poderes de forma sucinta. O poder de supervisão é caracterizado por atribuir ao superior a capacidade de revogar ou suspender atos administrativos praticados pelo seu subalterno e o poder disciplinar confere a possibilidade de o superior punir o subalterno por práticas ilícitas e infrações cometidas.

     Voltando ao ponto, sabe-se que perante direitos, surgem deveres e na administração a situação não se altera: perante os poderes do superior, elevam-se deveres alusivos ao subalterno – dever de assiduidade, de zelo, de respeito, sigilo profissional -- mas, há predominantemente um dever que surge coligado ao poder de direção: o dever de obediência.

     O dever de obediência consiste para o Professor Diogo Freitas do Amaral na “obrigação de o subalterno cumprir as ordens e instruções dos seus legítimos superiores hierárquicos, dados em objeto de serviço e sob a forma legal”[5]. Portanto, atendendo ao direito português vigente, é necessário analisar alguns requisitos deste dever, já que este não é incondicional. O antigo Estatuto Disciplinar no seu artigo 3º/nº8, referia que o dever de obediência consistia em “acatar e cumprir as ordens dos legítimos superiores hierárquicos, dadas em objeto de serviço e com a forma legal.” Evidentemente, esta norma ainda se encontra vigente na ordem jurídica portuguesa, mas noutro diploma legislativo já que o Estatuto Disciplinar se encontra revogado inserindo-se agora na Lei Geral do trabalhador da Função Pública (Lei nº35/2014 de 20 de junho) no seu artigo 73º/nº2 alínea f) e nº8 que releva os deveres do trabalhador.

     Desconstruindo esta ideia, primeiramente, é compreensível que apenas há dever de obediência quando se trata de uma ordem ou instrução proveniente do legítimo superior do subalterno, pois, se há um modelo hierárquico, faz sentido que este tenha de ser respeitado – desconstruindo o artigo 73º no seu nº8 da LGTFP “acatar e cumprir as ordens dos legítimos superiores hierárquicos”. De facto, o Professor Paulo Otero aborda este ponto denominando-o de requisito subjetivo dizendo que “a lei contenta-se em exigir que o autor do comando hierárquico seja o efetivo superior do órgão destinatário do comando”[6] referindo ainda que mesmo integrados no mesmo serviço, tem de haver um vínculo entre as partes. Por outro lado, há o dito requisito objetivo – “dadas em objeto de serviço” – esclarecendo que ordens ou instruções sobre assuntos de vida particular do superior, do subalterno ou assuntos alheios ao serviço são completamente ilícitas. Por último, há ainda um requisito formal – “e com a forma legal” – incidindo sobre a necessidade de revestir a forma legalmente prevista. Significa então que, qualquer ordem dada tem que cumprir o requisito previsto na lei. Podendo concluir-se que um comando hierárquico deve reunir os três requisitos acima simultaneamente os requisitos acima não reunir simultaneamente os três requisitos apontados, ele é juridicamente inexistente, ou seja, nunca pode gerar um dever de obediência porque é uma mera aparência de um comando hierárquico.

     Mas, pegando no pensamento do professor Diogo Freitas do Amaral: o que é que se sucede caso a ordem ou instrução dada ao subalterno provenha do seu superior, incida sobre matéria de serviço e tenha sido dada pela forma devida, mas se for acatada gera uma ação ilegal ou mesmo a prática de um crime? Ora, nestes casos, importa ter em conta a distinção entre uma ordem extrinsecamente legal e uma ordem intrinsecamente legal. A primeira, é referente aos requisitos do dever de obediência, isto é, quando há uma fuga aos três requisitos e, assim, o subalterno não fica obrigado ao acatamento dessa mesma ordem. Já a segunda, reflete as ordens que respeitam os três requisitos, mas acabam por se tornar ilegais com a sua prática e acatamento por parte do subalterno. E é nesta segunda modalidade que surgem certas divergências na doutrina no que toca ao cumprimento ou não cumprimento dessas ordens intrinsecamente ilegais.

     De facto, existem diferentes correntes, como a corrente hierárquica defendida por Otto Mayer, um dos grandes nomes do Direito Administrativo e referência para o Professor Vasco Pereira da Silva. Muito brevemente, o cerne desta corrente gira em torno da posição de verdadeiro subalterno, ou seja, o subalterno não tem a competência para questionar a legalidade das ordens do superior logo, o dever de obediência prevalece. Mesmo em situações de dúvida abundante e fortemente fundamentadas em que o subalterno tem o direito de respeitosa representação – direito de, em situação de dúvida por parte do subalterno quanto à legalidade da determinação, este possa esclarecê-las ao seu superior – o subalterno tem de efetivamente cumprir a ordem se esta for mantida pelo superior. Como se pode deduzir, esta corrente encontra-se ultrapassada, mas teve, logicamente, a sua passagem por Portugal durante o Estado Novo – “quem manda, manda bem”.

     No polo oposto, encontra-se a corrente legalista que, contrariamente, defende que perante ordens julgadas ilegais, não existe dever de obediência. De todas as inspirações possíveis desta corrente, qual será a que atualmente temos em Portugal?  Portugal cria exceções ao dever de obediência? É unânime a corrente seguida na ordem jurídica portuguesa?

     Para melhor explicação desta questão, o melhor é recorrer às ações e decisões jurisprudenciais dos nossos tribunais administrativos tendo em conta a nossa legislação.

     Um acórdão que nos pode ajudar é o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29 de abril de 2014. Ora, o caso em questão aborda um indivíduo que era fiscal da Câmara Municipal do Porto que concentrava em si as funções de fiscalização de infrações ao Código da Estrada. Este mesmo trabalhador intentou no TAF do Porto uma ação administrativa para ser anulada a deliberação que recebeu da CM do Porto que o puniu com a sanção de demissão por se ter recusado a assinar autos de contraordenação acerca da sua matéria de serviço por ele registadas, ou seja, verificou as infrações ao Código da Estrada e registou no computador portátil, mas, estava provado que mais tarde, se recusou a assinar os autos invocando o desconhecimento dos autos, apesar de por eles registadas. O Tribunal Centro Administrativo Norte (TCAN), revoga a decisão emitida no tribunal inferior chegando à conclusão de que “(…) os factos provados no processo disciplinar não configuram a violação do dever de obediência pelo arguido.”

     Desconstruindo estas posturas, o TAF considerou improcedente a deliberação por achar não haver razões válidas para que o autor recusasse assinar os autos, alegando ainda que esta recusa violava não só o dever de zelo, mas também o dever de obediência, na medida em que, por um lado, incumpriu as ordens do seu superior hierárquico, mas, para além disso, tinha meios para esclarecer se os autos eram seus. Já o TCAN, discorda defendendo que o autor apenas violava o dever de obediência caso recusasse assinar os autos e conhecesse efetivamente que os autos tinham sido verificados e registados pelo mesmo. Atribui grande peso à falta de confiança que o arguido tinha em relação aos autos e, ainda que o arguido tivesse os meios necessários para esclarecer o problema e não o fez, apenas agiu negligentemente ferindo somente o dever de zelo. Por último, do meu ponto de vista o TCAN refere um último argumento que reforça a sua posição referente a um cenário que existiria caso o arguido assinasse os autos com pleno desconhecimento e desconfiança apenas para não violar o dever de obediência – “perante a previsível objeção «então não foi você quem assinou esse auto?» teria que admitir: «assinei para cumprir ordens do meu superior hierárquico». Obviamente, tal cenário seria inaceitável”. Rematando então que: “o funcionário com dúvidas tinha até o dever de não assinar esses documentos” e que apenas violou o dever de zelo não tendo este uma pena expulsiva.

     Face aos factos apresentados, o STA aborda o artigo 271º da CRP que é, a meu ver, o artigo que define o modelo que a ordem jurídica portuguesa acaba por adotar. Portugal, possui um sistema legalista, mas mais moderado – para certos autores mitigado[7] (Professor Freitas do Amaral), para outros um sistema legalista intermédio[8] (professor Marcelo Rebelo de Sousa).

     Continua o STA no seu acórdão que por vezes, o trabalhador não tem que acatar as ordens provenientes do seu superior hierárquico mesmo respeitando os três requisitos anteriormente referidos já que, (recuperando a constituição) no artigo 271º/nº3 da CRP refere que “cessa o dever de obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática de qualquer crime”. Todavia, é importante ter em consideração que a ordem jurídica nacional preserva o direito de respeitosa representação e isto leva à conclusão de que se forem dadas ordens intrinsecamente ilegais, mas que não envolvam a prática de um crime, o subalterno tem a hipótese de reclamar ou exigir a confirmação da ordem perante o respetivo superior, mas apenas em situações de exclusão da responsabilidade. Para ajudar a consolidar esta ideia, o acórdão referido alude para a situação de que o trabalhador teria o direito de reclamar da ordem que acha ilegal, mas não se pode recusar a cumpri-la se esta for confirmada pelo superior, havendo um exemplo bastante claro da relação hierárquica onde em certos casos a opinião do superior prevalece à do subalterno – “salvo o caso excecional do cumprimento da ordem implicar a prática de um crime o direito a desobedecer (…) não está na sua mão determinar se cumpre, ou não (…)” – tal como defende o Professor Diogo Freitas do Amaral. Portanto, a recusa da assinatura só seria legítima quando a ação constituía a prática de um crime onde o recorrido poderia ainda reclamar da ordem por ser ilegal, nos termos do artigo 177º/nº2 e 5 da LGTFP.

     É necessário aditar que, o subalterno não se pode converter em “juiz da legalidade” como afirma o Professor Marcelo Rebelo de Sousa[9], pois se o subalterno pudesse fiscalizar todas as ordens que discordasse da legalidade do seu superior, o direito de respeitosa representação poderia a meu ver tornar-se uma obrigação e, aí, o superior estaria numa posição mais desfavorecida, contribuiria para uma permanente estagnação dos trabalhos administrativos e violaria a principal função da atividade administrativa – a satisfação regular e contínua das necessidades de interesse geral da sociedade. Relacionando o exposto com o acórdão do STA de 29 de abril de 2014, com a conduta adotada, o trabalhador “paralisou a atividade da administração pública, inclusive a administração central, revelando um desinteresse pelo cumprimento dos seus deveres”, tal como o documento refere. Estaria assim a haver um bloqueio das ações do superior por parte do subalterno, rompendo-se particularmente a relação hierárquica entre as partes e um completo desrespeito do artigo 266º/nº2.

     Concluindo a observação do acórdão do STA, o trabalhador ao limitar-se a recusar assinar os autos invocando a ilegalidade, mas permanecer inativo não invoca sequer o direito de respeitosa representação, por isso, os juízes do STA referem que a “desculpa” que o autor apresentou não tem qualquer efeito para o dever de obediência porque as dúvidas permanecem, isto, dado que não só poderia reclamar ao seu superior, como era sua obrigação enquanto trabalhador nesta matéria de serviço em causa verificar ele mesmo o conteúdo dos autos, como referem os atuais artigos 177º/nº1 e nº2 da LGTFP (artigo 10º/nº1 e 2º do revogado Estatuto Disciplinar de 1984) Com isto, o STA defende o julgamento dado pelo TFA do Porto e impugna o do TCAN pois, as assinaturas que eram pedidas não constituíam a prática de crimes mesmo que fossem ilegais, era uma ordem que, apesar disto, deveria ter sido encarada de outra forma por parte do trabalhador, porque de todas as opções que tinha para agir (direito de reclamar ao seu superior para eliminar das duvidas relativas à licitude ou até ele próprio verificar os autos), decidiu recusar a assinatura e, portanto, evidentemente que incorreu na violação do dever de obediência nesta ação deveras negligente e a pena de demissão aplicada é apropriada face à situação.

     De facto, a meu ver a jurisprudência portuguesa decidiu adotar uma corrente legalista em que houvesse ainda assim um equilíbrio da relação hierárquica entre superior e subalterno, pois preserva-se o direito de reclamar ao superior a dúvida acerca da ilicitude da ordem ou instrução dada, diminuindo a diferença entre os dois no que toca à hierarquia. Explicitando esta ideia, quer o Professor Marcelo Rebelo de Sousa quer o professor Diogo Freitas do Amaral, defendem que o subalterno não é um autómato, um instrumento ou um escravo da Administração Pública e, portanto, o dever de obediência não se estabelece simplesmente para que o superior ordene e o subalterno cumpra a todo o custo[10]. Refere ainda o Professor Marcelo nas suas lições que “se trata de um dever e não de uma sujeição, o que supõe uma liberdade de opção e então, suscetibilidade de violação”[11]. De facto, resulta da Constituição portuguesa a exceção ao cumprimento do dever de obediência, o que na minha consideração, delimita a ação administrativa e delimita também o poder do superior, pois, o seu espaço de autonomia é restrito ao que a lei e a Constituição permitirem, tal como é referido no artigo 266º/2 – “os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei (…)”. Posto isto, a decisão tomada pelo STA ao dar razão ao TAF do Porto no acórdão de 24 de abril de 2014 vai muito em conta da ordem jurídica portuguesa e é bastante adequada à sua legislação. Se um dever de obediência apenas não é cumprido por negligência e desinteresse nas funções que um trabalhador na área administrativa tem e alega incertezas relativas à legalidade das ordens do seu superior sem as verificar, não há melhor instrumento na nossa ordem jurídica para refutar esse lúgubre comportamento que a Constituição no seu artigo 271º/nº3 (adicionalmente na altura da emissão do parecer ainda se referiu o artigo 3º do Estatuto Disciplinar de 1984 nos seus nº1, 7 e 8). Contrário aconteceria se, o trabalhador mesmo depois de reclamar a sua ilegalidade, tivesse cumprido a ordem apenas porque foi mantida pelo seu legítimo superior hierárquico.

     Serão assim as ordens ilegais uma exceção ao princípio da legalidade? Na verdade, parece mais adequado debruçar sobre a ideia defendida pelo Professor Diogo Freitas do Amaral que é, efetivamente uma ideia positiva em relação a uma exceção ao principio da legalidade e que defende que esta excecionalidade é legitimada pela própria Constituição, mas não deixa de ser uma norma que quando acatada é ilegal – “por razões de eficiência administrativa, a Constituição entende dever abrir uma ou outra exceção ao princípio da legalidade”[12]. Existe ainda a tese do Professor Paulo Otero que contradiz a de Freitas do Amaral referindo que “resulta da própria lei ser legal o cumprimento de uma ordem ilegal”[13] pensando criar-se uma legalidade especial na legalidade externa, porque admitir uma zona derrogatória do princípio da legalidade é conferir validade parcial à aplicação subordinada da Administração à lei. Mas, ao invés deste pensamento, é mais claro achar que algo ilegal será sempre inegavelmente ilegal, mas essa ação ilegal é legitimada pela nossa Constituição (não é por isso que o deixa de ser).

     Em tom de conclusão, em Portugal, permanece um modelo de organização vertical em que se assume a Administração Pública como um poder e detentora de poderes para que possa cumprir o seu escopo – satisfação das necessidades públicas – mas isto só se verifica caso haja um “aparelho administrativo hierarquicamente estruturado”[14] tal como refere Mário Aroso de Almeida. Como inicialmente referido, gera-se uma “galáxia administrativa” em que cada entidade tem os seus devidos órgãos para cumprir os interesses que estão adstritos a satisfazer. Depois da elaboração deste trabalho, penso que se pode ir mais longe defendendo que este termo pode ser utilizado para descrever a relação de hierarquia dentro das entidades administrativas. Nas relações entre o superior e o respetivo subalterno, é de notar que estas não aparecem individualizadas ou segregadas, pois o subalterno de uma relação é o superior noutra e por sua vez o respetivo subalterno é o superior de outra relação (e assim sucessivamente). Em diferentes vínculos hierárquicos, as responsabilidades de cada alternam e não se devem estudar individualmente, ao mesmo tempo que se detêm os poderes de direção, detém-se também o dever de obediência num outro vínculo que se mistura no mesmo órgão. O próprio acórdão referido neste trabalho acaba por demonstrar esta mesma ideia da ramificação dos poderes do superior e deveres do subalterno ao referir o trabalhador que pertencia ao quadro de pessoal da CM do Porto com funções de fiscal principal, depois o chefe dos serviços de Fiscalização da Direção Municipal da Via pública, Vereador da CM do Porto, o próprio Presidente da CM do Porto, etc. Confirmando-se então vários órgãos dentro da mesma entidade administrativa para que se prossigam os interesses públicos de forma eficaz e eficiente.

     Uma última nota sobre o vínculo hierárquico, ao atribuir-se competências distintas aos órgãos administrativos, são, de facto, estabelecidos superiores e subalternos, cada um com as suas competências. Dentro de todos os poderes que o superior detém, o primordial é o poder de direção – o poder de emanar ordens-- ao qual se conecta o dever de obediência – dever de acatar essas mesmas ordens – pelo seu legítimo subalterno. Este dever tem de reunir três requisitos para que possa ser considerado legítimo: tem de ser emanado pelo legítimo superior do subalterno, incidir sobre matéria de serviço e ainda deve respeitar a forma legal. Para além disso, existem ainda situações em que não obstante a ordem emanada agrupe estes requisitos, ela é intrinsecamente ilegal, o que origina alguma discussão na doutrina.

     Posto isto, o dever de obediência cessa sempre que não esteja cumprido um dos três requisitos base: sempre que o comando seja alheio ao poder administrativo, com objeto impossível, que viole ou perturbe direitos fundamentais e também liberdades e garantias fundamentais (art. 18º/nº CRP), quando não há qualquer vontade jurídica no comando hierárquico ou até quando se configura contra a ordem pública e ofensivo aos bons costumes. Apenas terá que haver uma cautela adicional quanto à conformação da nulidade como sanção de invalidade da ordem dada pelo superior, pois aí, esta acaba por ser nula e não acata um dever de obediência, já que a nulidade não produz quaisquer efeitos. Pelo contrário, existe dever de obediência em todos os outros casos, tendo em atenção a ordem ilegal que não constitui um crime, na qual o subalterno tem o direito a reclamar das consequências que da prática dessa ordem se originam, como consta do artigo 177º/nº1 e nº2 da LGTFP. Ou seja, não está na esfera de decisão do subalterno decidir se cumpre ou não o dever de obediência, mas o subalterno pode ficar excluído das responsabilidades que se originam na execução da ordem ou instrução dada pelo superior. Surge a situação controversa em que a prática de uma ordem ilegal acaba por ser aceite, situação tal que o Professor Diogo Freitas do Amaral refere como uma “excecionalidade ao princípio da legalidade” em que o dever de obediência é legitimado também pela própria Constituição no seu artigo 271º/nº3.

     Concluindo, como foi referido, a administração encontra-se vinculada à lei pelo que consta do artigo 266º/nº2, o que significa que o princípio da legalidade torna-se um bom auxiliar, uma vez que ao exigir o seu respeito e observância, pede-se também o respeito pela garantia da eficácia da Administração em assegurar a satisfação do interesse público à luz do artigo 266º/nº1, mas por vezes, para que se respeite a eficácia da administração, acaba por se contornar o respeito pelo princípio da legalidade, sendo então o nº3 do artigo 271º um excelente exemplo disso, pois legitima o  acatamento de ordens ilegais que não levem à prática de crimes – se a CRP permite que os subalternos represente instruções ilegais, há causa de exclusão de culpa -- porque apesar de legítima, “uma ordem ilegal (…) é sempre uma ordem ilegal” como refere Freitas do Amaral no seu Curso. O que leva assim, a que a atividade administrativa seja hierarquizada também por questões de eficácia na prossecução de vários fins de interesse público, uma vez que, a função administrativa para que realize estes fins, não pode estar equiparada juridicamente aos particulares, sendo dotada de poderes e privilégios que a permitam tomar decisões prevalecentes.

Tomás Casquilha Elias    s15    68005 

 

BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Diogo Freitas do, “Curso de Direito Administrativo”, 3ª edição, Almedina, 2006.

AMARAL, Diogo Freitas do, “Conceito e natureza do recurso hierárquico Vol. I”, Atlântida Editora, Coimbra, 1981

ALMEIDA, Mário Aroso de, “Teoria Geral do Direito Administrativo”, 10ª edição, Almedina, 2022

CAETANO, Marcello, “Manual de Direito Administrativo Vol. I”, 10ª edição, Almedina, Coimbra, 1991

ENTERRÍA, Eduardo García y FERNANDÉZ, Tomás-Ramón, “Curso de Derecho Administrativo I”, 2ª edição, Editorial Civitas, Madrid, 1977

SOUSA, Marcelo Rebelo de, “Lições de Direito Administrativo I”, LEX editora, Lisboa, 1999

OTERO, Paulo, “Hierarquia Administrativa e substituição hierárquica, I volume”, Dissertação de Mestrado, Lisboa, 1989



[1] PAULO OTERO, “Hierarquia administrativa e substituição hierárquica”, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-políticas, apresentada à Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 1989

[2] EDUARDO GARCIA DE ENTERRIA, TOMÁS-RAMÓN FERNÁNDEZ, “curso de derecho administrativo, 2ª edição, Editorial Civitas, Madrid, 1977

[3] MARCELLO CAETANO, “Manual de Direito Administrativo, vol. I”, 10ª edição, Almedina, Coimbra, 1991

[4] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo, vol. I “, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006

[5] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo, vol. I “, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006

[6] PAULO OTERO, “Hierarquia administrativa e substituição hierárquica”, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-políticas, apresentada à Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 1989

[7] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo, vol. I “, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006

 

[8] MARCELO REBELO DE SOUSA, “Lições de Direito Administrativo I, LEX, Lisboa, 1999

[9] Ibidem.

[10] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo, vol. I “, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006

 

[11] MARCELO REBELO DE SOUSA, “Lições de Direito Administrativo I, LEX, Lisboa, 1999

[12] DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo, vol. I “, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006

[13] PAULO OTERO, “Hierarquia administrativa e substituição hierárquica”, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-políticas, apresentada à Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 1989

 

[14] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “Teoria Geral do Direito Administrativo”, 10ª edição, Almedina, 2022

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