O dever de obediência na "galáxia
administrativa"
Desde a passagem
de um Estado Liberal para um Estado social e democrático de Direito, que se
defende que o Estado deixou de ter concentrado em si os meios de satisfação dos
interesses da sociedade. Neste estado, há de certa forma uma reavaliação dos
fins e recomposição das relações entre este e a Sociedade. Apesar de ainda
configurado como a figura suprema, o Estado não tem o monopólio da satisfação
dos interesses gerais devido à impossibilidade de uma única entidade atender a
todas as necessidades. Com isto, criam-se várias entidades públicas que terão
como função satisfazer certos interesses sociais, no fundo, falamos de uma
descentralização administrativa onde cada entidade terá o escopo de satisfazer
esses interesses de acordo com as atribuições jurídicas que lhes são dispostas.
Com o aumento de
entidades públicas, revelou-se uma multiplicidade e complexidade de relações
que o Professor Paulo Otero refere de maneira sem igual como “verdadeiras teias que cruzam a galáxia
administrativa”[1].
A expressão “galáxia administrativa” foi um termo utilizado por Eduardo
García de Enterría[2], um
jurista espanhol que explicava assim que cada entidade administrativa tinha
órgãos e era através destes órgãos que se realizavam poderes jurídicos para
satisfazer o interesse geral atribuído à própria (coordenação global da
atividade administrativa).
Claro que, toda
esta teia relacional acaba por ter que ser arrumada para que opere verdadeiramente
na prossecução do seu fim. Noutros termos, é seguro dizer que a diversidade de
órgãos institui a necessidade de serem organizados de acordo com as suas
competências, daí se referir a hierarquia administrativa. Apesar de ser um
conceito muito discutido na doutrina, é factual que consiste numa organização
vertical e que acaba por se formar uma relação hierárquica graças ao dito
processo de escalonar que, quer o Professor Marcelo Rebelo de Sousa quer o
Professor Marcello Caetano referem[3].
Portanto, existindo pelo menos dois órgãos, estes estão ligados por um vínculo
de prossecução de interesses comuns, que vai atribuir ao superior certos
poderes e ao subalterno certos deveres, formando-se uma relação interorgânica
(entre órgãos da mesma entidade e não entre pessoas singulares) de prossecução
de atribuições comuns. O Professor Freitas do Amaral refere mesmo que o vínculo
estabelecido “confere ao superior o poder de direção e impõe ao subalterno o
dever de obediência”[4],
entrando-se assim no domínio dos poderes de cada uma das partes.
Ora, numa relação
hierárquica, as partes (superior e subalterno) possuem várias capacidades,
direitos e deveres, sendo que, o superior detém três poderes fundamentais: o
poder de direção, o poder de supervisão e o poder disciplinar. São poderes
correlativos e interdependentes, pois, sem a existência de um, a soberania do
superior estaria muito frágil e enfraquecida, o que leva a querer que há uma
relação de complementaridade e reforço. Sem margem para dúvidas que o poder que
releva é o poder de decisão – o poder de dar ordens ou instruções ao subalterno
(importante referir que são duas realidades distintas, a primeira é um comando
individual e concreto e a segunda um comando geral e abstrato) – mas antes de o
abordarmos, é ponderoso que se denote os restantes poderes de forma sucinta. O
poder de supervisão é caracterizado por atribuir ao superior a capacidade de
revogar ou suspender atos administrativos praticados pelo seu subalterno e o
poder disciplinar confere a possibilidade de o superior punir o subalterno por
práticas ilícitas e infrações cometidas.
Voltando ao
ponto, sabe-se que perante direitos, surgem deveres e na administração a
situação não se altera: perante os poderes do superior, elevam-se deveres
alusivos ao subalterno – dever de assiduidade, de zelo, de respeito, sigilo
profissional -- mas, há predominantemente um dever que surge coligado ao poder
de direção: o dever de obediência.
O dever de
obediência consiste para o Professor Diogo Freitas do Amaral na “obrigação de o subalterno cumprir as ordens
e instruções dos seus legítimos superiores hierárquicos, dados em objeto de
serviço e sob a forma legal”[5]. Portanto,
atendendo ao direito português vigente, é necessário analisar alguns requisitos
deste dever, já que este não é incondicional. O antigo Estatuto Disciplinar no
seu artigo 3º/nº8, referia que o dever de obediência consistia em “acatar e cumprir as ordens dos legítimos
superiores hierárquicos, dadas em objeto de serviço e com a forma legal.” Evidentemente,
esta norma ainda se encontra vigente na ordem jurídica portuguesa, mas noutro
diploma legislativo já que o Estatuto Disciplinar se encontra revogado
inserindo-se agora na Lei Geral do trabalhador da Função Pública (Lei nº35/2014
de 20 de junho) no seu artigo 73º/nº2 alínea f) e nº8 que releva os deveres do
trabalhador.
Desconstruindo
esta ideia, primeiramente, é compreensível que apenas há dever de obediência
quando se trata de uma ordem ou instrução proveniente do legítimo superior do
subalterno, pois, se há um modelo hierárquico, faz sentido que este tenha de
ser respeitado – desconstruindo o artigo 73º no seu nº8 da LGTFP “acatar e cumprir as ordens dos legítimos
superiores hierárquicos”. De facto, o Professor Paulo Otero aborda este
ponto denominando-o de requisito subjetivo dizendo que “a lei contenta-se em exigir que o autor do comando hierárquico seja o
efetivo superior do órgão destinatário do comando”[6] referindo
ainda que mesmo integrados no mesmo serviço, tem de haver um vínculo entre as
partes. Por outro lado, há o dito requisito objetivo – “dadas em objeto de serviço” – esclarecendo que ordens ou instruções
sobre assuntos de vida particular do superior, do subalterno ou assuntos
alheios ao serviço são completamente ilícitas. Por último, há ainda um
requisito formal – “e com a forma legal”
– incidindo sobre a necessidade de revestir a forma legalmente prevista.
Significa então que, qualquer ordem dada tem que cumprir o requisito previsto
na lei. Podendo concluir-se que um comando hierárquico deve reunir os três
requisitos acima simultaneamente os requisitos acima não reunir simultaneamente
os três requisitos apontados, ele é juridicamente inexistente, ou seja, nunca
pode gerar um dever de obediência porque é uma mera aparência de um comando
hierárquico.
Mas, pegando no
pensamento do professor Diogo Freitas do Amaral: o que é que se sucede caso a
ordem ou instrução dada ao subalterno provenha do seu superior, incida sobre
matéria de serviço e tenha sido dada pela forma devida, mas se for acatada gera
uma ação ilegal ou mesmo a prática de um crime? Ora, nestes casos, importa ter
em conta a distinção entre uma ordem extrinsecamente legal e uma ordem
intrinsecamente legal. A primeira, é referente aos requisitos do dever de
obediência, isto é, quando há uma fuga aos três requisitos e, assim, o
subalterno não fica obrigado ao acatamento dessa mesma ordem. Já a segunda,
reflete as ordens que respeitam os três requisitos, mas acabam por se tornar
ilegais com a sua prática e acatamento por parte do subalterno. E é nesta
segunda modalidade que surgem certas divergências na doutrina no que toca ao
cumprimento ou não cumprimento dessas ordens intrinsecamente ilegais.
De facto, existem
diferentes correntes, como a corrente hierárquica defendida por Otto Mayer, um
dos grandes nomes do Direito Administrativo e referência para o Professor Vasco
Pereira da Silva. Muito brevemente, o cerne desta corrente gira em torno da
posição de verdadeiro subalterno, ou seja, o subalterno não tem a competência
para questionar a legalidade das ordens do superior logo, o dever de obediência
prevalece. Mesmo em situações de dúvida abundante e fortemente fundamentadas em
que o subalterno tem o direito de respeitosa representação – direito de, em
situação de dúvida por parte do subalterno quanto à legalidade da determinação,
este possa esclarecê-las ao seu superior – o subalterno tem de efetivamente
cumprir a ordem se esta for mantida pelo superior. Como se pode deduzir, esta
corrente encontra-se ultrapassada, mas teve, logicamente, a sua passagem por
Portugal durante o Estado Novo – “quem manda, manda bem”.
No polo oposto,
encontra-se a corrente legalista que, contrariamente, defende que perante
ordens julgadas ilegais, não existe dever de obediência. De todas as
inspirações possíveis desta corrente, qual será a que atualmente temos em
Portugal? Portugal cria exceções ao
dever de obediência? É unânime a corrente seguida na ordem jurídica portuguesa?
Para melhor
explicação desta questão, o melhor é recorrer às ações e decisões
jurisprudenciais dos nossos tribunais administrativos tendo em conta a nossa
legislação.
Um acórdão que
nos pode ajudar é o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29 de abril
de 2014. Ora, o caso em questão aborda um indivíduo que era fiscal da Câmara
Municipal do Porto que concentrava em si as funções de fiscalização de
infrações ao Código da Estrada. Este mesmo trabalhador intentou no TAF do Porto
uma ação administrativa para ser anulada a deliberação que recebeu da CM do
Porto que o puniu com a sanção de demissão por se ter recusado a assinar autos
de contraordenação acerca da sua matéria de serviço por ele registadas, ou
seja, verificou as infrações ao Código da Estrada e registou no computador
portátil, mas, estava provado que mais tarde, se recusou a assinar os autos
invocando o desconhecimento dos autos, apesar de por eles registadas. O
Tribunal Centro Administrativo Norte (TCAN), revoga a decisão emitida no
tribunal inferior chegando à conclusão de que “(…) os factos provados no
processo disciplinar não configuram a violação do dever de obediência pelo
arguido.”
Desconstruindo
estas posturas, o TAF considerou improcedente a deliberação por achar não haver
razões válidas para que o autor recusasse assinar os autos, alegando ainda que
esta recusa violava não só o dever de zelo, mas também o dever de obediência,
na medida em que, por um lado, incumpriu as ordens do seu superior hierárquico,
mas, para além disso, tinha meios para esclarecer se os autos eram seus. Já o
TCAN, discorda defendendo que o autor apenas violava o dever de obediência caso
recusasse assinar os autos e conhecesse efetivamente que os autos tinham sido
verificados e registados pelo mesmo. Atribui grande peso à falta de confiança
que o arguido tinha em relação aos autos e, ainda que o arguido tivesse os
meios necessários para esclarecer o problema e não o fez, apenas agiu
negligentemente ferindo somente o dever de zelo. Por último, do meu ponto de
vista o TCAN refere um último argumento que reforça a sua posição referente a
um cenário que existiria caso o arguido assinasse os autos com pleno
desconhecimento e desconfiança apenas para não violar o dever de obediência – “perante a previsível objeção «então não foi
você quem assinou esse auto?» teria que admitir: «assinei para cumprir ordens
do meu superior hierárquico». Obviamente, tal cenário seria inaceitável”. Rematando
então que: “o funcionário com dúvidas tinha até o dever de não assinar esses
documentos” e que apenas violou o dever de zelo não tendo este uma pena
expulsiva.
Face aos factos
apresentados, o STA aborda o artigo 271º da CRP que é, a meu ver, o artigo que
define o modelo que a ordem jurídica portuguesa acaba por adotar. Portugal,
possui um sistema legalista, mas mais moderado – para certos autores mitigado[7]
(Professor Freitas do Amaral), para outros um sistema legalista intermédio[8]
(professor Marcelo Rebelo de Sousa).
Continua o STA no
seu acórdão que por vezes, o trabalhador não tem que acatar as ordens
provenientes do seu superior hierárquico mesmo respeitando os três requisitos
anteriormente referidos já que, (recuperando a constituição) no artigo 271º/nº3
da CRP refere que “cessa o dever de
obediência sempre que o cumprimento das ordens ou instruções implique a prática
de qualquer crime”. Todavia, é importante ter em consideração que a ordem
jurídica nacional preserva o direito de respeitosa representação e isto leva à
conclusão de que se forem dadas ordens intrinsecamente ilegais, mas que não envolvam
a prática de um crime, o subalterno tem a hipótese de reclamar ou exigir a
confirmação da ordem perante o respetivo superior, mas apenas em situações de
exclusão da responsabilidade. Para ajudar a consolidar esta ideia, o acórdão
referido alude para a situação de que o trabalhador teria o direito de reclamar
da ordem que acha ilegal, mas não se pode recusar a cumpri-la se esta for
confirmada pelo superior, havendo um exemplo bastante claro da relação
hierárquica onde em certos casos a opinião do superior prevalece à do
subalterno – “salvo o caso excecional do
cumprimento da ordem implicar a prática de um crime o direito a desobedecer (…)
não está na sua mão determinar se cumpre, ou não (…)” – tal como defende o
Professor Diogo Freitas do Amaral. Portanto, a recusa da assinatura só seria
legítima quando a ação constituía a prática de um crime onde o recorrido
poderia ainda reclamar da ordem por ser ilegal, nos termos do artigo 177º/nº2 e
5 da LGTFP.
É necessário
aditar que, o subalterno não se pode converter em “juiz da legalidade” como afirma o Professor Marcelo Rebelo de Sousa[9],
pois se o subalterno pudesse fiscalizar todas as ordens que discordasse da
legalidade do seu superior, o direito de respeitosa representação poderia a meu
ver tornar-se uma obrigação e, aí, o superior estaria numa posição mais
desfavorecida, contribuiria para uma permanente estagnação dos trabalhos
administrativos e violaria a principal função da atividade administrativa – a
satisfação regular e contínua das necessidades de interesse geral da sociedade.
Relacionando o exposto com o acórdão do STA de 29 de abril de 2014, com a
conduta adotada, o trabalhador “paralisou a atividade da administração pública,
inclusive a administração central, revelando um desinteresse pelo cumprimento
dos seus deveres”, tal como o documento refere. Estaria assim a haver um
bloqueio das ações do superior por parte do subalterno, rompendo-se
particularmente a relação hierárquica entre as partes e um completo desrespeito
do artigo 266º/nº2.
Concluindo a
observação do acórdão do STA, o trabalhador ao limitar-se a recusar assinar os
autos invocando a ilegalidade, mas permanecer inativo não invoca sequer o
direito de respeitosa representação, por isso, os juízes do STA referem que a
“desculpa” que o autor apresentou não tem qualquer efeito para o dever de
obediência porque as dúvidas permanecem, isto, dado que não só poderia reclamar
ao seu superior, como era sua obrigação enquanto trabalhador nesta matéria de
serviço em causa verificar ele mesmo o conteúdo dos autos, como referem os
atuais artigos 177º/nº1 e nº2 da LGTFP (artigo 10º/nº1 e 2º do revogado
Estatuto Disciplinar de 1984) Com isto, o STA defende o julgamento dado pelo
TFA do Porto e impugna o do TCAN pois, as assinaturas que eram pedidas não
constituíam a prática de crimes mesmo que fossem ilegais, era uma ordem que,
apesar disto, deveria ter sido encarada de outra forma por parte do
trabalhador, porque de todas as opções que tinha para agir (direito de reclamar
ao seu superior para eliminar das duvidas relativas à licitude ou até ele
próprio verificar os autos), decidiu recusar a assinatura e, portanto,
evidentemente que incorreu na violação do dever de obediência nesta ação
deveras negligente e a pena de demissão aplicada é apropriada face à situação.
De facto, a meu
ver a jurisprudência portuguesa decidiu adotar uma corrente legalista em que
houvesse ainda assim um equilíbrio da relação hierárquica entre superior e
subalterno, pois preserva-se o direito de reclamar ao superior a dúvida acerca
da ilicitude da ordem ou instrução dada, diminuindo a diferença entre os dois
no que toca à hierarquia. Explicitando esta ideia, quer o Professor Marcelo
Rebelo de Sousa quer o professor Diogo Freitas do Amaral, defendem que o
subalterno não é um autómato, um instrumento ou um escravo da Administração Pública
e, portanto, o dever de obediência não se estabelece simplesmente para que o
superior ordene e o subalterno cumpra a todo o custo[10].
Refere ainda o Professor Marcelo nas suas lições que “se trata de um dever e
não de uma sujeição, o que supõe uma liberdade de opção e então,
suscetibilidade de violação”[11].
De facto, resulta da Constituição portuguesa a exceção ao cumprimento do dever
de obediência, o que na minha consideração, delimita a ação administrativa e
delimita também o poder do superior, pois, o seu espaço de autonomia é restrito
ao que a lei e a Constituição permitirem, tal como é referido no artigo 266º/2
– “os órgãos e agentes administrativos
estão subordinados à Constituição e à lei (…)”. Posto isto, a decisão
tomada pelo STA ao dar razão ao TAF do Porto no acórdão de 24 de abril de 2014
vai muito em conta da ordem jurídica portuguesa e é bastante adequada à sua
legislação. Se um dever de obediência apenas não é cumprido por negligência e
desinteresse nas funções que um trabalhador na área administrativa tem e alega
incertezas relativas à legalidade das ordens do seu superior sem as verificar,
não há melhor instrumento na nossa ordem jurídica para refutar esse lúgubre
comportamento que a Constituição no seu artigo 271º/nº3 (adicionalmente na
altura da emissão do parecer ainda se referiu o artigo 3º do Estatuto
Disciplinar de 1984 nos seus nº1, 7 e 8). Contrário aconteceria se, o
trabalhador mesmo depois de reclamar a sua ilegalidade, tivesse cumprido a
ordem apenas porque foi mantida pelo seu legítimo superior hierárquico.
Serão assim as
ordens ilegais uma exceção ao princípio da legalidade? Na verdade, parece mais
adequado debruçar sobre a ideia defendida pelo Professor Diogo Freitas do
Amaral que é, efetivamente uma ideia positiva em relação a uma exceção ao
principio da legalidade e que defende que esta excecionalidade é legitimada
pela própria Constituição, mas não deixa de ser uma norma que quando acatada é
ilegal – “por razões de eficiência
administrativa, a Constituição entende dever abrir uma ou outra exceção ao
princípio da legalidade”[12]. Existe
ainda a tese do Professor Paulo Otero que contradiz a de Freitas do Amaral
referindo que “resulta da própria lei ser
legal o cumprimento de uma ordem ilegal”[13] pensando
criar-se uma legalidade especial na legalidade externa, porque admitir uma zona
derrogatória do princípio da legalidade é conferir validade parcial à aplicação
subordinada da Administração à lei. Mas, ao invés deste pensamento, é mais
claro achar que algo ilegal será sempre inegavelmente ilegal, mas essa ação
ilegal é legitimada pela nossa Constituição (não é por isso que o deixa de
ser).
Em tom de
conclusão, em Portugal, permanece um modelo de organização vertical em que se
assume a Administração Pública como um poder e detentora de poderes para que
possa cumprir o seu escopo – satisfação das necessidades públicas – mas isto só
se verifica caso haja um “aparelho
administrativo hierarquicamente estruturado”[14]
tal como refere Mário Aroso de
Almeida. Como inicialmente referido, gera-se uma “galáxia administrativa” em que cada entidade tem os seus devidos
órgãos para cumprir os interesses que estão adstritos a satisfazer. Depois da
elaboração deste trabalho, penso que se pode ir mais longe defendendo que este
termo pode ser utilizado para descrever a relação de hierarquia dentro das
entidades administrativas. Nas relações entre o superior e o respetivo
subalterno, é de notar que estas não aparecem individualizadas ou segregadas,
pois o subalterno de uma relação é o superior noutra e por sua vez o respetivo
subalterno é o superior de outra relação (e assim sucessivamente). Em
diferentes vínculos hierárquicos, as responsabilidades de cada alternam e não
se devem estudar individualmente, ao mesmo tempo que se detêm os poderes de
direção, detém-se também o dever de obediência num outro vínculo que se mistura
no mesmo órgão. O próprio acórdão referido
neste trabalho acaba por demonstrar esta mesma ideia da ramificação dos poderes
do superior e deveres do subalterno ao referir o trabalhador que pertencia ao
quadro de pessoal da CM do Porto com funções de fiscal principal, depois o
chefe dos serviços de Fiscalização da Direção Municipal da Via pública,
Vereador da CM do Porto, o próprio Presidente da CM do Porto, etc.
Confirmando-se então vários órgãos dentro da mesma entidade administrativa para
que se prossigam os interesses públicos de forma eficaz e eficiente.
Uma última nota sobre o vínculo
hierárquico, ao atribuir-se competências distintas aos órgãos administrativos,
são, de facto, estabelecidos superiores e subalternos, cada um com as suas
competências. Dentro de todos os poderes que o superior detém, o primordial é o
poder de direção – o poder de emanar ordens-- ao qual se conecta o dever de
obediência – dever de acatar essas mesmas ordens – pelo seu legítimo
subalterno. Este dever tem de reunir três requisitos para que possa ser
considerado legítimo: tem de ser emanado pelo legítimo superior do subalterno,
incidir sobre matéria de serviço e ainda deve respeitar a forma legal. Para
além disso, existem ainda situações em que não obstante a ordem emanada agrupe
estes requisitos, ela é intrinsecamente ilegal, o que origina alguma discussão
na doutrina.
Posto isto, o
dever de obediência cessa sempre que não esteja cumprido um dos três requisitos
base: sempre que o comando seja alheio ao poder administrativo, com objeto
impossível, que viole ou perturbe direitos fundamentais e também liberdades e
garantias fundamentais (art. 18º/nº CRP), quando não há qualquer vontade
jurídica no comando hierárquico ou até quando se configura contra a ordem
pública e ofensivo aos bons costumes. Apenas terá que haver uma cautela
adicional quanto à conformação da nulidade como sanção de invalidade da ordem
dada pelo superior, pois aí, esta acaba por ser nula e não acata um dever de
obediência, já que a nulidade não produz quaisquer efeitos. Pelo contrário,
existe dever de obediência em todos os outros casos, tendo em atenção a ordem
ilegal que não constitui um crime, na qual o subalterno tem o direito a
reclamar das consequências que da prática dessa ordem se originam, como consta
do artigo 177º/nº1 e nº2 da LGTFP. Ou seja, não está na esfera de decisão do
subalterno decidir se cumpre ou não o dever de obediência, mas o subalterno
pode ficar excluído das responsabilidades que se originam na execução da ordem
ou instrução dada pelo superior. Surge a situação controversa em que a prática
de uma ordem ilegal acaba por ser aceite, situação tal que o Professor Diogo
Freitas do Amaral refere como uma “excecionalidade ao princípio da legalidade”
em que o dever de obediência é legitimado também pela própria Constituição no
seu artigo 271º/nº3.
Concluindo, como
foi referido, a administração encontra-se vinculada à lei pelo que consta do
artigo 266º/nº2, o que significa que o princípio da legalidade torna-se um bom
auxiliar, uma vez que ao exigir o seu respeito e observância, pede-se também o
respeito pela garantia da eficácia da Administração em assegurar a satisfação
do interesse público à luz do artigo 266º/nº1, mas por vezes, para que se
respeite a eficácia da administração, acaba por se contornar o respeito pelo
princípio da legalidade, sendo então o nº3 do artigo 271º um excelente exemplo
disso, pois legitima o acatamento de
ordens ilegais que não levem à prática de crimes – se a CRP permite que os
subalternos represente instruções ilegais, há causa de exclusão de culpa -- porque
apesar de legítima, “uma ordem ilegal (…) é sempre uma ordem ilegal” como
refere Freitas do Amaral no seu Curso. O que leva assim, a que a atividade
administrativa seja hierarquizada também por questões de eficácia na
prossecução de vários fins de interesse público, uma vez que, a função
administrativa para que realize estes fins, não pode estar equiparada
juridicamente aos particulares, sendo dotada de poderes e privilégios que a
permitam tomar decisões prevalecentes.
Tomás Casquilha Elias s15 68005
BIBLIOGRAFIA
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OTERO, Paulo, “Hierarquia
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Mestrado, Lisboa, 1989
[1] PAULO
OTERO, “Hierarquia administrativa e
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Jurídico-políticas, apresentada à Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 1989
[2] EDUARDO
GARCIA DE ENTERRIA, TOMÁS-RAMÓN FERNÁNDEZ, “curso
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[3] MARCELLO
CAETANO, “Manual de Direito
Administrativo, vol. I”, 10ª edição, Almedina, Coimbra, 1991
[4] DIOGO
FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito
Administrativo, vol. I “, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006
[5] DIOGO
FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito
Administrativo, vol. I “, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006
[6] PAULO
OTERO, “Hierarquia administrativa e
substituição hierárquica”, Dissertação de Mestrado em Ciências
Jurídico-políticas, apresentada à Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 1989
[7] DIOGO
FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito
Administrativo, vol. I “, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006
[8] MARCELO
REBELO DE SOUSA, “Lições de Direito
Administrativo I, LEX, Lisboa, 1999
[9] Ibidem.
[10] DIOGO
FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito
Administrativo, vol. I “, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006
[11] MARCELO
REBELO DE SOUSA, “Lições de Direito
Administrativo I, LEX, Lisboa, 1999
[12] DIOGO
FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito
Administrativo, vol. I “, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2006
[13] PAULO
OTERO, “Hierarquia administrativa e
substituição hierárquica”, Dissertação de Mestrado em Ciências
Jurídico-políticas, apresentada à Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, 1989
[14] MÁRIO
AROSO DE ALMEIDA, “Teoria Geral do Direito Administrativo”, 10ª edição,
Almedina, 2022
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