O Dever de Obediência
No âmbito da disciplina de Direito Administrativo, o presente post visa explorar uma peça fundamental que delineia as relações entre os funcionários e a Administração pública, nomeadamente o dever de obediência. Este dever, embora essencial para manter a ordem e a eficiência na gestão pública, não é desprovido de desafios e questionamentos. Deste modo, iremos analisar as suas origens, o seu modo de aplicação e os limites que o cercam.
I.
A hierarquia administrativa
Para entendermos a essência do dever de obediência, é importante ter presente um outro conceito – a hierarquia administrativa. Ora, a hierarquia administrativa é o modelo de organização administrativa vertical dos serviços públicos, sendo estes, segundo o entendimento do professor Diogo Freitas do Amaral, “as organizações humanas criadas no seio de cada pessoa coletiva pública com o fim de desempenhar as atribuições desta, sob a direção dos respetivos órgãos”.1 Neste sentido, o professor Cunha Valente define a hierarquia como “o conjunto de órgãos administrativos de competências diferenciadas mas com atribuições comuns, ligados por um vínculo de subordinação que se revela no agente superior pelo poder de direção e no subalterno pelo dever de obediência.”2
Ora, a estrutura hierárquica pressupõe a existência de um vinculo entre dois ou mais órgãos e agentes administrativos. Esse vinculo envolve atribuições comuns e competências diferenciadas. E ainda, um vinculo jurídico constituído pelo poder de direção do superior hierárquico e pelo dever de obediência do subalterno. Este vinculo é precisamente a relação hierárquica.
II.
O dever de obediência
O Professor Freitas do Amaral
define o dever de obediência como “a obrigação de o subalterno cumprir as
ordens e instruções dos seus legítimos superiores hierárquicos, dadas em objeto
de serviço e sob forma legal”3 . Desta definição extraem-se
três requisitos para estarmos perante um dever:
1. 1. A legitimidade do superior hierárquico- por
exemplo, o Diretor-Geral da Saúde não pode dar uma ordem a um subalterno da
Direção-Geral do Ensino Superior
2. 2. A ordem é obrigatoriamente dada em matérias de
serviço – as instruções deverão ser feitas dentro das funções dos respetivos
agentes administrativos e dentro daquilo que é a normal relação administrativa.
3. 3. Exige-se forma legalmente prevista – por exemplo,
a ordem não pode ser dada oralmente quando a lei exige que seja dada por
escrito
Se não se se verificarem estes
três requisitos, a ordem que foi emanada por um superior pode ser facilmente
recusada pelo subalterno. Resumidamente, para que a ordem seja legítima, exige-se
que o superior tenha legitimidade para a dar, o inferior para cumprir e que
cumpra os requisitos formais.
III.
O dever de obediência a ordens ilegais
Mas e se se preencherem todos
os requisitos elencados anteriormente e o conteúdo for ilegal ou ilícito? Ao executar
a ordem, o subalterno estaria a consubstanciar a prática de um crime. Poderá o
subalterno recusar a ordem? Surgem várias dúvidas quanto a este problema.
O principio da legalidade, que
é uma pedra angular do direito administrativo, sugere que, em teoria, o subalterno
deveria ter o direito de desobedecer às ordens ilegais dos seus superiores hierárquicos,
dado que são instruídos a seguir a lei.
Neste sentido, o Professor
Freitas do Amaral entende que o subalterno não é um escravo nem uma máquina,
pois mesmo enquanto subalterno, ele é um ser racional e livre, moral e
juridicamente responsável pelas suas decisões.
No entanto, conceder a
liberdade ao subalterno de interpretar, questionar e examinar os comandos que
recebem inevitavelmente resulta em alguma indisciplina na administração pública
e poderá criar obstáculos para a gestão eficiente dos assuntos públicos.
Assim surge o conflito entre
dois princípios gerais do direito administrativo – por um lado, o principio hierárquico,
onde dita que as relações administrativas seguem uma ordem hierarquia clara,
isto é, implica uma relação de autoridade e subordinação entre o superior e o
subordinado, respetivamente, e, por outro lado, o principio da legalidade, que afirma
que todas as ações da administração pública devem estar de acordo com a lei.
Para responder a este conflito
entre estes dois princípios gerais do
direito administrativo, a doutrina fundou duas teorias:
1.
Teoria Legalista: Nesta
teoria, destaca-se que não há dever de obediência quanto ao comando hierárquico
caso tal comando seja ilegal, dando liberdade ao subordinado de rejeitar a
ordem. Prevalece aqui o principio da legalidade.
2.
Teoria Hierárquica: Esta
teoria defende que há sempre dever de obediência. O subalterno deverá sempre
acatar as ordens superiores. Não é admitido que questione ou interprete a legalidade
dos comandos hierárquicos, cabe-lhe apenas executá-los. Aqui prevalece o principio
hierárquico.
A segunda
teoria parece-me contraditória com os valores de um Estado Democrático devido à
sua ênfase na obediência cega . Mesmo que o órgão que as emana seja eleito
democraticamente, a forma como gere a coisa pública tem de poder ser
questionada, nem que seja por meio da conformidade com a lei. A execução cega
de ordens, sem a possibilidade de as avaliar, parece inadequada em um contexto
onde a transparência e a legalidade são aspetos fundamentais da administração
pública.
Além destas duas teorias, o
professor Paulo Otero apresenta ainda uma terceira perspetiva, que parece
oscilar entre as duas teorias anteriores - em certos contextos concede prioridade ao
principio hierárquico, pois há situações em que se admite a existência do dever
de obediência a comandos ilegais, enquanto, noutros casos, reconhece a primazia
do principio da legalidade, excluindo a obediência a comandos ilegais. Esta teoria
carece de uma delimitação precisa das circunstâncias de ilegalidade que anulam
o dever de obediência.
Alguns autores admitem que o
dever de obediência extingue-se se um comando hierárquico ilegal comprometer gravemente
um interesse público, persistindo, no entanto, em relação a outros comandos
ilegais. Outra parte da doutrina, reconhece um dever geral de obediência a
todas as ordens, exceto aquelas que claramente violam a lei.
Há ainda, finalmente, uma outra
parte da doutrina que se assemelha à teoria hierárquica, porque o dever de obediência
cobre todos os comandos ilegais, exceto os:
1. 1. Que forem dados verbalmente
2. 2. Cuja ilegalidade está relacionada com as
competências do próprio subalterno
3. 3. Que estejam ligados à pratica de um ato
criminoso na sua execução
Em todas estas três conceções,
o dever de obediência é a regra geral, daí se aproximarem à teoria hierárquica.
No panorama nacional, o
professor Marcelo Caetano apresenta uma solução hierárquica embora “temperada
nos termos em que está regulada nas leis portuguesas” a este problema. Por sua
vez, o professor Diogo Freitas do Amaral defende uma solução legalista
moderada. Tal consideração deriva do principio do Estado de Direito Democrático
e da submissão da administração pública à lei, por força do artigo 266º, nº2 da
Constituição da República (CRP), ou seja, o subalterno não teria de cumprir uma
ordem ilegal.
Na prática, à semelhança do
professor Diogo Freitas do Amaral, o direito positivo consagra uma abordagem legalista
mitigada, refletida nos termos do artigo 271º nº 2 e nº3 da CRP e do artigo
177º nº2 e nº5 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP). Essa abordagem
pode ser resumida da seguinte maneira:
1. 1. Não é exigido o dever de obediência em relação
a ordens que não atendam aos critérios da legitimidade hierárquica, da relevância
para as funções desempenhadas em matéria de serviço e conformidade com a forma
legal.
2. 2. Mesmo nos casos em que os comandos respeitem os três requisitos, o subalterno não está obrigado a obedecer se a sua execução dessas ordens resultar na prática de um crime ou provenham de um ato nulo – artigo 162º, nº1, do Código do Procedimento Administrativo
IV.
Implicações e Responsabilidades na execução
de ordens ilegais
Neste momento é relevante
examinar a quem recai a responsabilidade das consequências da execução das
ordens.
Ora, o professor Paulo Otero
isenta de responsabilidade o funcionário que executa um comando, argumentando
que esse individuo não tem a liberdade de recusar a sua execução e, na verdade,
apenas transmite a mensagem do superior hierárquico. No entanto, essa isenção não
se verifica nestes contornos e está tipificada no artigo 177º LGTFP.
Nos casos em que o funcionário
deve obediência mas considera um comando ilegal, a isenção de responsabilidade das
consequências da sua execução só ocorre se o funcionário tiver solicitado a confirmação
escrita do comando antes de executá-lo. Exceto se o comando exigir execução
imediata; nesse caso, o funcionário precisa expressar a sua objeção à
ilegalidade do comando imediatamente após a sua execução.
Durante o período entre o pedido de confirmação da ordem ilegal e a resposta ao pedido, o funcionário deve avaliar se a demora na execução da ordem compromete ou não o interesse público. Se a demora afetar positivamente, o funcionário deve informar o seu superior dos “termos exatos” da ordem que recebeu e da reclamação que fez e, logo de seguida, executar a ordem. Se não, aguada a resposta.
V.
Exclusão ao principio da legalidade
Os professores Paulo Otero e Diogo
Freitas do Amaral debatem se o dever de obediência consubstancia na exclusão do
principio da legalidade.
Na opinião do professor Paulo
Otero, uma vez que o dever de obediência a ordens ilegais está estabelecido
pela própria lei, este dever não implica o afastamento do principio da
legalidade.
Por outro lado, o professor
Diogo Freitas do Amaral discorda e argumenta que o dever de obediência a ordens
ilegais, de facto, constitui uma exclusão ao principio da legalidade. Alem disso,
o autor declara que as leis que impõem o dever de obediência a ordens ilegais
que não envolvam a prática de um crime são legitimas apenas se estiverem em
conformidade com a CRP. Existindo um preceito constitucional que legitimiza
estas leis, o artigo 271º nº3, consideram-se conforme à Constituição. Desta forma,
o dever de obediência é, de facto, uma exclusão ao principio da legalidade mas
que é positivado pela CRP.
VI.
Conclusão
O debate sobre o dever de obediência
a ordens ilegais destaca a tensão entre a necessidade de manter a disciplina na
Administração Pública e o imperativo de proteger os princípios democráticos e o
Estado de Direito.
Com base nos assuntos tratados
nos pontos anteriores, concluo que o entendimento do professor Diogo Freitas do
Amaral é o mais coerente. Embora reconheça que desobedecer a ordens ilegais por
parte dos subalternos possa resultar em indisciplina nos serviços públicos,
parece-me mais legitimo permitir que os funcionários se recusem a executar
ordens ilegais provenientes de superiores hierárquicos. Isso é preferível a
permitir que a Administração Pública utilize os seus subordinados para promover
objetivos ilícitos, com base no dever de obediência destes.
Aqueles que defendem o contrário
podem argumentar que não é necessário expandir esses casos, uma vez que a
responsabilidade pela execução de uma ordem ilegal não recai sobre o executor,
como foi explicado no titulo IV, mas sim sobre o superior hierárquico que
emitiu a ordem. No entanto, essa perceção não parece nada adequada a um sistema
jurídico onde o principio da prevenção é fundamental. Se for possível prevenir
a execução de uma ordem ilegal e, portanto, evitar prejudicar os interesses ou
direitos de outros, não vejo motivo para limitar a capacidade do subalterno de
fazer essa avaliação e evitar danos.
Além disso, ainda antes de se
originar a crise politica que reina nos dias de hoje, no panorama politico em
Portugal que vigorava a maioria absoluta dos deputados no parlamento, órgão
responsável pela fiscalização do Governo e, sendo este último, o órgão superior
da Administração Pública, mesmo acreditando nas boas intenções do partido e dos
seus dirigentes, preocupa-me a facilidade com que que poderia forçar os
subalternos a cumprir ordens ilegais com a sua positivação e confiança da Assembleia
da República. Essa execução cega de ordens não parece ser compatível com o que
se espera de um Estado Democrático como o nosso, mesmo que esteja em
conformidade com a Constituição.
[1]DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 4ª edição, 2018, p. 654
[2] CUNHA VALENTE, A Hierarquia Administrativa, Coimbra, 1939, p. 45.
[3] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 4ª edição, 2018, p. 681
Bibliografia
DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso
de Direito Administrativo, volume I, 4ªedição, 2018
CUNHA VALENTE, A Hierarquia
Administrativa, Coimbra, 1939
MARCELO CAETANO, O poder
disciplinar, 1932, Coimbra
MARCELO REBELO DE SOUSA,
Direito Administrativo Geral, v.I, 2004
PAULO OTERO, Conceito e Fundamento
da Hierarquia Administrativa, 1992
Legislação
- Constituição da Republica Portuguesa
- Lei Geral do Trabalho em
Funções Públicas
- Código do Procedimento Administrativo
Soraia Penha, nº 66161, Turma
B, subturma 15
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