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segunda-feira, 27 de novembro de 2023

O dever de obediência

O Dever de Obediência

 

No âmbito da disciplina de Direito Administrativo, o presente post visa explorar uma peça fundamental que delineia as relações entre os funcionários e a Administração pública, nomeadamente o dever de obediência. Este dever, embora essencial para manter a ordem e a eficiência na gestão pública, não é desprovido de desafios e questionamentos. Deste modo, iremos analisar as suas origens, o seu modo de aplicação e os limites que o cercam.


I.                A hierarquia administrativa

Para entendermos a essência do dever de obediência, é importante ter presente um outro conceito – a hierarquia administrativa. Ora, a hierarquia administrativa é o modelo de organização administrativa vertical dos serviços públicos, sendo estes, segundo o entendimento do professor Diogo Freitas do Amaral, “as organizações humanas criadas no seio de cada pessoa coletiva pública com o fim de desempenhar as atribuições desta, sob a direção dos respetivos órgãos”.1 Neste sentido, o professor Cunha Valente define a hierarquia como “o conjunto de órgãos administrativos de competências diferenciadas mas com atribuições comuns, ligados por um vínculo de subordinação que se revela no agente superior pelo poder de direção e no subalterno pelo dever de obediência.”2

Ora, a estrutura hierárquica pressupõe a existência de um vinculo entre dois ou mais órgãos e agentes administrativos. Esse vinculo envolve atribuições comuns e competências diferenciadas. E ainda, um vinculo jurídico constituído pelo poder de direção do superior hierárquico e pelo dever de obediência do subalterno. Este vinculo é precisamente a relação hierárquica.


II.              O dever de obediência

O Professor Freitas do Amaral define o dever de obediência como “a obrigação de o subalterno cumprir as ordens e instruções dos seus legítimos superiores hierárquicos, dadas em objeto de serviço e sob forma legal. Desta definição extraem-se três requisitos para estarmos perante um dever:

1.    1. A legitimidade do superior hierárquico- por exemplo, o Diretor-Geral da Saúde não pode dar uma ordem a um subalterno da Direção-Geral do Ensino Superior

2.    2. A ordem é obrigatoriamente dada em matérias de serviço – as instruções deverão ser feitas dentro das funções dos respetivos agentes administrativos e dentro daquilo que é a normal relação administrativa.

3.    3. Exige-se forma legalmente prevista – por exemplo, a ordem não pode ser dada oralmente quando a lei exige que seja dada por escrito

Se não se se verificarem estes três requisitos, a ordem que foi emanada por um superior pode ser facilmente recusada pelo subalterno. Resumidamente, para que a ordem seja legítima, exige-se que o superior tenha legitimidade para a dar, o inferior para cumprir e que cumpra os requisitos formais.

 

III.            O dever de obediência a ordens ilegais

Mas e se se preencherem todos os requisitos elencados anteriormente e o conteúdo for ilegal ou ilícito? Ao executar a ordem, o subalterno estaria a consubstanciar a prática de um crime. Poderá o subalterno recusar a ordem? Surgem várias dúvidas quanto a este problema.

O principio da legalidade, que é uma pedra angular do direito administrativo, sugere que, em teoria, o subalterno deveria ter o direito de desobedecer às ordens ilegais dos seus superiores hierárquicos, dado que são instruídos a seguir a lei.

Neste sentido, o Professor Freitas do Amaral entende que o subalterno não é um escravo nem uma máquina, pois mesmo enquanto subalterno, ele é um ser racional e livre, moral e juridicamente responsável pelas suas decisões.

No entanto, conceder a liberdade ao subalterno de interpretar, questionar e examinar os comandos que recebem inevitavelmente resulta em alguma indisciplina na administração pública e poderá criar obstáculos para a gestão eficiente dos assuntos públicos.

Assim surge o conflito entre dois princípios gerais do direito administrativo – por um lado, o principio hierárquico, onde dita que as relações administrativas seguem uma ordem hierarquia clara, isto é, implica uma relação de autoridade e subordinação entre o superior e o subordinado, respetivamente, e, por outro lado, o principio da legalidade, que afirma que todas as ações da administração pública devem estar de acordo com a lei.

Para responder a este conflito entre estes  dois princípios gerais do direito administrativo, a doutrina fundou duas teorias:

1.     Teoria Legalista: Nesta teoria, destaca-se que não há dever de obediência quanto ao comando hierárquico caso tal comando seja ilegal, dando liberdade ao subordinado de rejeitar a ordem. Prevalece aqui o principio da legalidade.

2.     Teoria Hierárquica: Esta teoria defende que há sempre dever de obediência. O subalterno deverá sempre acatar as ordens superiores. Não é admitido que questione ou interprete a legalidade dos comandos hierárquicos, cabe-lhe apenas executá-los. Aqui prevalece o principio hierárquico.

A segunda teoria parece-me contraditória com os valores de um Estado Democrático devido à sua ênfase na obediência cega . Mesmo que o órgão que as emana seja eleito democraticamente, a forma como gere a coisa pública tem de poder ser questionada, nem que seja por meio da conformidade com a lei. A execução cega de ordens, sem a possibilidade de as avaliar, parece inadequada em um contexto onde a transparência e a legalidade são aspetos fundamentais da administração pública.

Além destas duas teorias, o professor Paulo Otero apresenta ainda uma terceira perspetiva, que parece oscilar entre as duas teorias anteriores -  em certos contextos concede prioridade ao principio hierárquico, pois há situações em que se admite a existência do dever de obediência a comandos ilegais, enquanto, noutros casos, reconhece a primazia do principio da legalidade, excluindo a obediência a comandos ilegais. Esta teoria carece de uma delimitação precisa das circunstâncias de ilegalidade que anulam o dever de obediência.

Alguns autores admitem que o dever de obediência extingue-se se um comando hierárquico ilegal comprometer gravemente um interesse público, persistindo, no entanto, em relação a outros comandos ilegais. Outra parte da doutrina, reconhece um dever geral de obediência a todas as ordens, exceto aquelas que claramente violam a lei.

Há ainda, finalmente, uma outra parte da doutrina que se assemelha à teoria hierárquica, porque o dever de obediência cobre todos os comandos ilegais, exceto os:

1.     1. Que forem dados verbalmente

2.     2. Cuja ilegalidade está relacionada com as competências do próprio subalterno

3.    3. Que estejam ligados à pratica de um ato criminoso na sua execução

Em todas estas três conceções, o dever de obediência é a regra geral, daí se aproximarem à teoria hierárquica.

No panorama nacional, o professor Marcelo Caetano apresenta uma solução hierárquica embora “temperada nos termos em que está regulada nas leis portuguesas” a este problema. Por sua vez, o professor Diogo Freitas do Amaral defende uma solução legalista moderada. Tal consideração deriva do principio do Estado de Direito Democrático e da submissão da administração pública à lei, por força do artigo 266º, nº2 da Constituição da República (CRP), ou seja, o subalterno não teria de cumprir uma ordem ilegal.

Na prática, à semelhança do professor Diogo Freitas do Amaral, o direito positivo consagra uma abordagem legalista mitigada, refletida nos termos do artigo 271º nº 2 e nº3 da CRP e do artigo 177º nº2 e nº5 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP). Essa abordagem pode ser resumida da seguinte maneira:

1.     1Não é exigido o dever de obediência em relação a ordens que não atendam aos critérios da legitimidade hierárquica, da relevância para as funções desempenhadas em matéria de serviço e conformidade com a forma legal.

2.    2.  Mesmo nos casos em que os comandos respeitem os três requisitos, o subalterno não  está obrigado a obedecer se a sua execução dessas ordens resultar na prática de um crime ou provenham de um ato nulo – artigo 162º, nº1, do Código do Procedimento Administrativo


IV.           Implicações e Responsabilidades na execução de ordens ilegais

Neste momento é relevante examinar a quem recai a responsabilidade das consequências da execução das ordens.

Ora, o professor Paulo Otero isenta de responsabilidade o funcionário que executa um comando, argumentando que esse individuo não tem a liberdade de recusar a sua execução e, na verdade, apenas transmite a mensagem do superior hierárquico. No entanto, essa isenção não se verifica nestes contornos e está tipificada no artigo 177º LGTFP.

Nos casos em que o funcionário deve obediência mas considera um comando ilegal, a isenção de responsabilidade das consequências da sua execução só ocorre se o funcionário tiver solicitado a confirmação escrita do comando antes de executá-lo. Exceto se o comando exigir execução imediata; nesse caso, o funcionário precisa expressar a sua objeção à ilegalidade do comando imediatamente após a sua execução.

Durante o período entre o pedido de confirmação da ordem ilegal e a resposta ao pedido, o funcionário deve avaliar se a demora na execução da ordem compromete ou não o interesse público. Se a demora afetar positivamente, o funcionário deve informar o seu superior dos “termos exatos” da ordem que recebeu e da reclamação que fez e, logo de seguida, executar a ordem. Se não, aguada a resposta.


V.             Exclusão ao principio da legalidade  

Os professores Paulo Otero e Diogo Freitas do Amaral debatem se o dever de obediência consubstancia na exclusão do principio da legalidade.

Na opinião do professor Paulo Otero, uma vez que o dever de obediência a ordens ilegais está estabelecido pela própria lei, este dever não implica o afastamento do principio da legalidade.

Por outro lado, o professor Diogo Freitas do Amaral discorda e argumenta que o dever de obediência a ordens ilegais, de facto, constitui uma exclusão ao principio da legalidade. Alem disso, o autor declara que as leis que impõem o dever de obediência a ordens ilegais que não envolvam a prática de um crime são legitimas apenas se estiverem em conformidade com a CRP. Existindo um preceito constitucional que legitimiza estas leis, o artigo 271º nº3, consideram-se conforme à Constituição. Desta forma, o dever de obediência é, de facto, uma exclusão ao principio da legalidade mas que é positivado pela CRP.

 

VI.           Conclusão

O debate sobre o dever de obediência a ordens ilegais destaca a tensão entre a necessidade de manter a disciplina na Administração Pública e o imperativo de proteger os princípios democráticos e o Estado de Direito.

Com base nos assuntos tratados nos pontos anteriores, concluo que o entendimento do professor Diogo Freitas do Amaral é o mais coerente. Embora reconheça que desobedecer a ordens ilegais por parte dos subalternos possa resultar em indisciplina nos serviços públicos, parece-me mais legitimo permitir que os funcionários se recusem a executar ordens ilegais provenientes de superiores hierárquicos. Isso é preferível a permitir que a Administração Pública utilize os seus subordinados para promover objetivos ilícitos, com base no dever de obediência destes.

Aqueles que defendem o contrário podem argumentar que não é necessário expandir esses casos, uma vez que a responsabilidade pela execução de uma ordem ilegal não recai sobre o executor, como foi explicado no titulo IV, mas sim sobre o superior hierárquico que emitiu a ordem. No entanto, essa perceção não parece nada adequada a um sistema jurídico onde o principio da prevenção é fundamental. Se for possível prevenir a execução de uma ordem ilegal e, portanto, evitar prejudicar os interesses ou direitos de outros, não vejo motivo para limitar a capacidade do subalterno de fazer essa avaliação e evitar danos.  

Além disso, ainda antes de se originar a crise politica que reina nos dias de hoje, no panorama politico em Portugal que vigorava a maioria absoluta dos deputados no parlamento, órgão responsável pela fiscalização do Governo e, sendo este último, o órgão superior da Administração Pública, mesmo acreditando nas boas intenções do partido e dos seus dirigentes, preocupa-me a facilidade com que que poderia forçar os subalternos a cumprir ordens ilegais com a sua positivação e confiança da Assembleia da República. Essa execução cega de ordens não parece ser compatível com o que se espera de um Estado Democrático como o nosso, mesmo que esteja em conformidade com a Constituição.


[1]DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 4ª edição, 2018, p. 654

[2] CUNHA VALENTE, A Hierarquia Administrativa, Coimbra, 1939, p. 45.

[3] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 4ª edição, 2018, p. 681


Bibliografia

DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, volume I, 4ªedição, 2018

CUNHA VALENTE, A Hierarquia Administrativa, Coimbra, 1939

MARCELO CAETANO, O poder disciplinar, 1932, Coimbra

MARCELO REBELO DE SOUSA, Direito Administrativo Geral, v.I, 2004

PAULO OTERO, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, 1992

Legislação

- Constituição da Republica Portuguesa

- Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas

- Código do Procedimento Administrativo

 

Soraia Penha, nº 66161, Turma B, subturma 15



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