Como já sabemos, no ano de 1789 inicia-se a Revolução em França – é este o cenário que semeia o Direito Administrativo e o cria na sua forma mais primordial e pura. Aliado à importância extrema do princípio da separação de poderes e à controvérsia francesa na concretização desse mesmo princípio (uma vez que, recordemo-nos, o poder de administrar e o poder de julgar eram distintos mas eram exercidos pelos mesmos órgãos), conhece-se assim o primeiro Trauma que terá formado este braço essencial do Direito. O segundo Trauma, datado de 1873, como é também do nosso conhecimento, debruçou-se sobre uma decisão do Tribunal de Conflitos francês que tratava um célebre caso: o de Agnés Blanco, uma menina de 5 anos que viu uma perna ser-lhe amputada, após ter sido atropelada por um vagão de uma companhia de tabaco – diga-se, uma empresa pública – em Bordéus. Através da decisão, para além da responsabilidade extracontratual do Estado pelos danos causados pelos serviços públicos, regista-se outro marco notável – consagra-se a competência dos Tribunais Administrativos para julgar casos deste âmbito, após o Tribunal de Conflitos ter atribuído à jurisdição administrativa competência para decidir sobre este litígio. Por serem problemas de nível público e não poderem ser equiparados de forma alguma aos problemas entre particulares, surge aqui a necessidade de criar todo um novo regime especial para aplicar nestes casos e de também de ser um órgão judicial mais destinado ao Direito Público a decidir sobre os mesmos. Legitimou-se aqui, portanto, o serviço público como critério de competência dos Tribunais Administrativos e estabeleceu-se o regime que é aplicável aos serviços públicos, tendo-se então fundado uma relação essencial entre o conteúdo da lei aplicável e a competência da jurisdição administrativa. A partir daqui, o Conselho de Estado passou a julgar litígios do foro administrativo de forma independente e, na segunda metade do século XIX, a metodização do Direito Administrativo foi-se solidificando.
Estes acontecimentos não só criaram aquilo que é o Direito Administrativo como serviram também de base ao seu aparecimento noutros países nos anos que se seguiram – sobretudo, e como seria de esperar, em países europeus, como a Espanha, a Itália, Portugal, a Alemanha e a Bélgica. Todavia, não podemos dizer que esta experiência foi unânime à escala mundial. No presente post, veremos com mais detalhe essas realidades que tiveram um percurso administrativo diferente.
Talvez seja boa ideia começar por fazer uma referência – ainda que pouco alongada – aos países anglo-saxônicos, onde opera o sistema de common law. Não existia, nesses países, um regime específico aplicável à atividade administrativa, sendo a mesma regulada pelos mesmos ditames que regulam o direito privado, e por isso dizia-se que não havia, lá, Direito Administrativo. Hoje, após muitos anos de evolução doutrinária, já se fala em Direito Público, e Administrativo; embora não esteja muito separado do Direito Privado, vemos características similares ao Direito Administrativo europeu.
Passamos, sem mais, nem menos, para a história do Direito Administrativo no Brasil. Releva, em primeira análise, dizer que no Brasil não houve qualquer adesão à perspetiva de instituir a independência na justiça administrativa e deixar esse poder com órgãos independentes.
A figura do
Concelho de Estado terá aqui surgido após uma transição para um regime
constitucional e independente, com a consequente elaboração de uma Constituição
brasileira, em 1824; com a criação deste, extinguiu-se um outro órgão – o
Concelho de Procuradores-Gerais –, que tinha poderes semelhantes aos de um
Concelho de Estado. O novo órgão era composto por 10 membros. Só neste facto já
se nota uma diferença abismal se ousarmos comparar com o que fora estabelecido
em França (24 anos antes, por Napoleão, no tempo da Revolução), tendo em conta
que eram (inicialmente) 250 membros a constituí-lo, estando até divididos hierarquicamente em três níveis (os
auditores, os referendários, e os conselheiros de Estado). E esta diferença tem
uma razão: também em contraste com o caso francês, onde era essencialmente visível
no Concelho uma dupla função de conselheiro e de juiz, o Conselho de Estado brasileiro
apenas concentrava em si a responsabilidade de conselheiro – foi, essencialmente,
um órgão assessor do Imperador D. Pedro I (o segundo e último imperador
brasileiro), para assuntos graves e medidas administrativas gerais (como declarações
de guerra, ajustes de paz ou negociações com o estrangeiro). Era, além disso, o
grande guardião da constitucionalidade e da legalidade dos atos do Executivo e arbitrava
contenciosos administrativos e conflitos a nível de competências, tendo exercido
um papel fundamental no julgamento dos recursos contra decisões de ministros de
Estado e dos presidentes das províncias, mas não terá tido quaisquer funções a
nível jurisdicional. Assim sendo, não sucedeu qualquer avanço neste sentido:
nunca puderam ser elaborados textos acerca da jurisdição administrativa, e por
isso também não existia matéria com que se pudesse trabalhar uma ideia
minimamente semelhante à francesa, que estudámos; não existiram decisões que
servissem de base, e assim também não existiram elaborações doutrinárias sobre
elas.
O Professor
Doutor Francisco De Saltes Almeida Mafra Filho aponta, num excerto da sua
autoria, que a jornada do Direito Administrativo brasileiro só teve início em
1851, com a criação das cadeiras específicas desta área nas instituições de
ensino superior de São Paulo e de Olinda; o conhecimento e as vastas obras de
Direito Administrativo que foram, ao longo dos anos anteriores, trabalhadas na
Europa, serviram ainda de influência e por isso, fizeram também parte neste
desenvolvimento de uma forma bastante crucial.
Apenas a partir daí é que se foi consolidando o Direito Administrativo e foram sendo publicadas obras no Brasil, sendo a maior parte delas fruto do trabalho progressivo na matéria que era feito nas faculdades. A primeira, intitulada de Elementos de direito administrativo brasileiro comparado com o direito administrativo francês segundo o método de P. Pradier-Foderé, foi elaborada por Vicente Pereira do Rego e lançada em Recife em 1857. Destacam-se igualmente as obras de Veiga Cabral (1859), do Visconde do Uruguai (1862) e de Ribas (1866).
Em suma, com esta exposição, podemos constatar que, de facto, após o nascimento do Direito Administrativo no berço francês, enquanto alguns países (sobretudo na Europa) o acolhiam nos seus sistemas jurídicos, outros mantiveram-se inertes, como o Brasil, tendo vindo apenas a desenvolver-se nesta área mais tarde. Esta perceção não só é interessante como é também, a meu ver, relevante para que não se caia numa ilusão de que esta Ciência nasceu e houve, repentinamente, um abraçar instantâneo pelo mundo todo – a adesão foi irregular, assimétrica, mais complexa do que coloquialmente se possa pensar.
Bibliografia e Webgrafia
- FILHO, Francisco De Saltes
Almeida Mafra (2004). Nascimento e Evolução do Direito Administrativo. Rio
de Janeiro, Revista de Direito Administrativo, Vol. 238.
- GAZIER, François (1984). A
Experiência do Conselho de Estado Francês (traduzido). São Paulo, Revista
do Serviço Público (RSP), Vol. 112.
- MEDAUAR, Odete (2015). Direito Administrativo Moderno. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 19ª Edição.
-http://mapa.an.gov.br/index.php/menu-de-categorias-2/290-conselho-de-estado
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