Discricionariedade
Administrativa: autonomia da Administração, competência e decisão
O Direito Administrativo não define, de forma
taxativa e definitiva, o conteúdo das ações administrativas em todos os casos. A
lei administrativa permite à Administração a realização de escolhas, feitas através
de poderes unilaterais- atos administrativos.
Tal
é designado de discricionariedade, um poder derivado da lei que se consubstancia
na liberdade reconhecida à Administração de escolher uma solução dentre uma
série de soluções juridicamente admissíveis através de uma “abertura da norma”.
É neste sentido que o poder discricionário pode associar-se a uma ideia de
autonomia da Administração de “liberdade administrativa”.
A
discricionariedade na decisão administrativa integra, pois, a “autonomia
pública da Administração”, que o Professor Sérvulo Correia define como “o poder
conferido pela lei à Administração de criação de efeitos jurídicos substantivos
próprios do Direito Administrativo no âmbito das formas de ação administrativa”
(ato administrativo, contrato administrativo e regulamento administrativo)- Artigo
127º CPA e Artigo 57/3 CPA.
A
liberdade de decisão administrativa só é atribuída e reconhecida na medida em
que exista uma justificação. A ideia de democracia justifica esta autonomia
concedida à Administração, mas a justificação da discricionariedade não reside
apenas nesta ideia, exige-se ainda uma articulação com a condição especial da
Administração, a sua competência e a sua situação particular no contexto do
caso concreto sobre o qual é chamada a intervir. Neste sentido, o Professor Pedro
Costa Gonçalves define a discricionariedade administrativa como “poder
conferido por uma norma de competência à Administração Pública para que esta,
com base nos seus próprios juízos de apreciação e valoração, decida, em última
instância, sobre a medida a adotar numa situação concreta”.
Relativamente
ao poder conferido à Administração pela norma de competência, é necessário
referir que esse poder discricionário tem uma fonte normativa, resultando da
concessão ou da autorização do poder normativo através de uma abertura
normativa que resulta de uma decisão do legislador.
No
entanto, para além desta normatividade, a determinação da existência do poder
discricionário depende, também, de uma operação de interpretação jurídica da
própria norma de competência. A discricionariedade é, assim, uma atividade de
concretização jurídica posterior à interpretação.
Um
poder é discricionário porque o seu exercício em concreto, que se materializa
numa escolha, se baseia em valorações e juízos que o sistema jurídico deve
reconhecer e assumir como próprios e privativos da Administração ou, como
referem o CPA (artigo 8º) e o CPTA( Artigos 71/2; 95/5; 168/2 e 179/1), em
“valorações próprias do exercício da função administrativa”.
Em
cada caso, a conclusão sobre se a norma de competência convoca a valoração
própria ou suscita juízos próprios da Administração- definindo, assim, canais
de abertura discricionária- depende de uma operação de interpretação da
“decisão legislativa” que se materializa na própria norma de competência.
É
necessário, ainda, questionarmo-nos como é feita essa escolha, a medida a adotar
numa situação concreta. Primeiramente, referir que a discricionariedade
pressupõe e assenta num momento valorativo, na formulação de juízos sore os
factos ou situações a que a decisão responde. Seguidamente, o exercício efetivo
da discricionariedade vai materializar-se num momento volitivo, na tomada de
uma decisão e na escolha do conteúdo ou substância dessa decisão. Relativamente a isto e ao dito anteriormente,
o Professor Vasco Pereira da Silva, afirmando que a
Administração é balizada pelos princípios constitucionais, salienta que existem
três momentos na atuação administrativa: i) interpretação da norma,
ii) margem de apreciação da
Administração, analisando as circunstâncias da vida, iii) discricionariedade
quanto à decisão, no sentido de existirem diversas soluções.
O
poder discricionário consubstancia-se, assim, num poder de escolha sobre a
medida a adotar num caso determinado, sendo necessário pensar neste como um
processo de escolha.
Esta
escolha remete, ainda, para limites jurídicos ao exercício da
discricionariedade:
-respeito
do âmbito da norma de competência: o agente só está autorizado a agir com
discricionariedade “no âmbito da autorização”, ou seja, dentro dos limites dos
poderes que lhe são conferidos (artigo 3/1 CPA).
-respeito
por limites gerais da ordem jurídica, pelo que não pode, infringir quaisquer
disposições legislativas.
Além
deste poder ter de se desenvolver no respeito de limites, “no âmbito da
autorização”, o poder discricionário tem de ser exercido segundo critérios:
1)
o sujeito tem de “procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja
adequado e necessário à tomada de uma decisão legal e justa” (artigo 115/1
CPA).
2)
esse exercício tem de ser baseado no principio de adequação da decisão à
situação, consagrado no artigo 7/1 CPA, defendendo que na prossecução do
interesse público, a Administração pública deve adotar os comportamentos
adequados aos fins prosseguidos.
3)Ao
abrigo do artigo 9º CPA, o agente deve, ainda, considerar todos os interesses
relevantes no contexto decisório, pautado por um processo de “aquisição” de
interesses, orientado pelos princípios da legalidade e da imparcialidade. Nos
termos dos artigos 266/1 CRP e 4º CPA, a prossecução do interesse público
efetiva-se no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, o que
implica, para a Administração, uma efetiva proibição de discriminação ou
desconsideração dos interesses particulares relevantes no contexto da decisão a
proferir.
De
referir que, os limites apresentados bem como os critérios deste poder
discricionário se baseiam no principio da legalidade (Artigo 266º CRP e 3/1 CPA), ou seja, na ideia de todo o agere
administrativo estar sujeito à lei, ao direito e aos limites que estes
impõem, visto que a prossecução do interesse público por parte da Administração
nunca pode pôr em causa certos princípios e regras (caso contrário estar-se-ia
perante uma conduta administrativa arbitrária).
Conceitos
jurídicos indeterminados como fonte de discricionariedade
A
utilização de conceitos jurídicos indeterminados na descrição dos pressupostos pode
constituir um modo de a norma de competência conferir discricionariedade ao
agente administrativo.
Sem
a presença de uma intencionalidade de abertura à valoração própria da
Administração, não se pode atribuir a esta o sentido de decisão de última
instância sobre a valoração de um conceito. Assim, só se está perante um poder
discricionário quando o agente administrativo tenha uma liberdade de decisão
não apenas em face do legislador, mas também em face do tribunal.
Há
que referir a metodologia que permite perceber quando é que se deve entender
que a norma que utiliza um conceito jurídico indeterminado tem a intenção de
conferir à Administração um poder discricionário.
O
primeiro passo é identificar o tipo de valoração que o conceito indeterminado
suscita. São exemplo de conceitos indeterminados que, empregues na norma de
competência, são uma fonte de discricionariedade:
i)conceitos
que suscitam juízos administrativos, que a norma de competência utiliza para
abrir um espaço de apreciação administrativa na situação concreta;
ii)conceitos
intrinsecamente associados à descrição do núcleo típico das competências de uma
autoridade administrativa;
iii)conceitos
que remetem para o saber específico da Administração, para os seus
conhecimentos especializados, a sua formação e competência técnica;
iv)situações
em que a norma define competências decisórias que se sustentam na ponderação de
situações e problemas complexos que exigem a adoção de medidas em situações de incerteza ou de risco e que, em geral, têm
de se basear em juízos prospetivos, estimativas e projeções.
No
entanto, há que saber que nem todos os conceitos jurídicos indeterminados
conduzem a um tal resultado: a indeterminação no modo de descrição da hipótese
normativa não corresponde sempre, em todos os casos, a uma abertura
discricionária. Exige-se, pois, que a indeterminação seja corolário de uma intenção
legislativa (da norma de competência) de “autorizar” um poder discricionário da
Administração. Neste sentido, conceitos como “boa fé” fazem apelo a critérios
de natureza jurídica, não se justificando a decisão da Administração como se se
tratasse de uma valoração própria da função administrativa.
Cumpre
ainda observar que, em relação a matérias protegidas pela reserva de lei
parlamentar, impõe-se ao legislador um dever de especial contenção no emprego
de conceitos jurídicos indeterminados. O objetivo é, na definição das normas de
competência, evitar indefinições e aberturas normativas em áreas da ação
administrativa que interferem diretamente com essas matérias. No sentido de a norma
atributiva de competência não cumprir esse “imperativo de determinabilidade” é
necessário um controlo judicial mais profundo, que assegure a fiscalização
suficiente da legalidade das decisões concretas da Administração.
Esta
densificação mais profunda também se deve exigir nas normas que conferem
competências sancionatórias à Administração. Aqui, o propósito da determinação
já não consiste em diminuir a discricionariedade da Administração, mas sim em
diminuir a indefinição da conduta ilícita, ou seja, a indefinição da sanção
aplicável.
Referências
Bibliográficas:
AMARAL,
Diogo Freitas ,Curso de Direito Administrativo, Almedina Editora, 2011;
SILVA,
Vasco Pereira da, Em busca do Ato administrativo perdido, Almedina,2016;
GONÇALVES,
Pedro Costa, Manual de Direito Administrativo, Almedina, 2019;
DUARTE,
Maria Luísa, A Discricionariedade administrativa e os conceitos
indeterminados, comentário de 1987.
Patrícia Falé
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