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sábado, 18 de novembro de 2023

Discricionariedade administrativa e conceitos indeterminados

 

Discricionariedade Administrativa: autonomia da Administração, competência e decisão

O Direito Administrativo não define, de forma taxativa e definitiva, o conteúdo das ações administrativas em todos os casos. A lei administrativa permite à Administração a realização de escolhas, feitas através de poderes unilaterais- atos administrativos.

Tal é designado de discricionariedade, um poder derivado da lei que se consubstancia na liberdade reconhecida à Administração de escolher uma solução dentre uma série de soluções juridicamente admissíveis através de uma “abertura da norma”. É neste sentido que o poder discricionário pode associar-se a uma ideia de autonomia da Administração de “liberdade administrativa”.

A discricionariedade na decisão administrativa integra, pois, a “autonomia pública da Administração”, que o Professor Sérvulo Correia define como “o poder conferido pela lei à Administração de criação de efeitos jurídicos substantivos próprios do Direito Administrativo no âmbito das formas de ação administrativa” (ato administrativo, contrato administrativo e regulamento administrativo)- Artigo 127º CPA e Artigo 57/3 CPA.

A liberdade de decisão administrativa só é atribuída e reconhecida na medida em que exista uma justificação. A ideia de democracia justifica esta autonomia concedida à Administração, mas a justificação da discricionariedade não reside apenas nesta ideia, exige-se ainda uma articulação com a condição especial da Administração, a sua competência e a sua situação particular no contexto do caso concreto sobre o qual é chamada a intervir. Neste sentido, o Professor Pedro Costa Gonçalves define a discricionariedade administrativa como “poder conferido por uma norma de competência à Administração Pública para que esta, com base nos seus próprios juízos de apreciação e valoração, decida, em última instância, sobre a medida a adotar numa situação concreta”.

Relativamente ao poder conferido à Administração pela norma de competência, é necessário referir que esse poder discricionário tem uma fonte normativa, resultando da concessão ou da autorização do poder normativo através de uma abertura normativa que resulta de uma decisão do legislador.

No entanto, para além desta normatividade, a determinação da existência do poder discricionário depende, também, de uma operação de interpretação jurídica da própria norma de competência. A discricionariedade é, assim, uma atividade de concretização jurídica posterior à interpretação.

Um poder é discricionário porque o seu exercício em concreto, que se materializa numa escolha, se baseia em valorações e juízos que o sistema jurídico deve reconhecer e assumir como próprios e privativos da Administração ou, como referem o CPA (artigo 8º) e o CPTA( Artigos 71/2; 95/5; 168/2 e 179/1), em “valorações próprias do exercício da função administrativa”.

Em cada caso, a conclusão sobre se a norma de competência convoca a valoração própria ou suscita juízos próprios da Administração- definindo, assim, canais de abertura discricionária- depende de uma operação de interpretação da “decisão legislativa” que se materializa na própria norma de competência.

É necessário, ainda, questionarmo-nos como é feita essa escolha, a medida a adotar numa situação concreta. Primeiramente, referir que a discricionariedade pressupõe e assenta num momento valorativo, na formulação de juízos sore os factos ou situações a que a decisão responde. Seguidamente, o exercício efetivo da discricionariedade vai materializar-se num momento volitivo, na tomada de uma decisão e na escolha do conteúdo ou substância dessa decisão.  Relativamente a isto e ao dito anteriormente, o Professor Vasco Pereira da Silva, afirmando que a Administração é balizada pelos princípios constitucionais, salienta que existem três momentos na atuação administrativa: i) interpretação da norma, ii) margem  de apreciação da Administração, analisando as circunstâncias da vida, iii) discricionariedade quanto à decisão, no sentido de existirem diversas soluções.

O poder discricionário consubstancia-se, assim, num poder de escolha sobre a medida a adotar num caso determinado, sendo necessário pensar neste como um processo de escolha.

Esta escolha remete, ainda, para limites jurídicos ao exercício da discricionariedade:

-respeito do âmbito da norma de competência: o agente só está autorizado a agir com discricionariedade “no âmbito da autorização”, ou seja, dentro dos limites dos poderes que lhe são conferidos (artigo 3/1 CPA).

-respeito por limites gerais da ordem jurídica, pelo que não pode, infringir quaisquer disposições legislativas.

Além deste poder ter de se desenvolver no respeito de limites, “no âmbito da autorização”, o poder discricionário tem de ser exercido segundo critérios:

1) o sujeito tem de “procurar averiguar todos os factos cujo conhecimento seja adequado e necessário à tomada de uma decisão legal e justa” (artigo 115/1 CPA).

2) esse exercício tem de ser baseado no principio de adequação da decisão à situação, consagrado no artigo 7/1 CPA, defendendo que na prossecução do interesse público, a Administração pública deve adotar os comportamentos adequados aos fins prosseguidos.

3)Ao abrigo do artigo 9º CPA, o agente deve, ainda, considerar todos os interesses relevantes no contexto decisório, pautado por um processo de “aquisição” de interesses, orientado pelos princípios da legalidade e da imparcialidade. Nos termos dos artigos 266/1 CRP e 4º CPA, a prossecução do interesse público efetiva-se no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, o que implica, para a Administração, uma efetiva proibição de discriminação ou desconsideração dos interesses particulares relevantes no contexto da decisão a proferir.

De referir que, os limites apresentados bem como os critérios deste poder discricionário se baseiam no principio da legalidade (Artigo 266º  CRP e 3/1 CPA), ou seja, na ideia de todo o agere administrativo estar sujeito à lei, ao direito e aos limites que estes impõem, visto que a prossecução do interesse público por parte da Administração nunca pode pôr em causa certos princípios e regras (caso contrário estar-se-ia perante uma conduta administrativa arbitrária).

 

Conceitos jurídicos indeterminados como fonte de discricionariedade

A utilização de conceitos jurídicos indeterminados na descrição dos pressupostos pode constituir um modo de a norma de competência conferir discricionariedade ao agente administrativo.

Sem a presença de uma intencionalidade de abertura à valoração própria da Administração, não se pode atribuir a esta o sentido de decisão de última instância sobre a valoração de um conceito. Assim, só se está perante um poder discricionário quando o agente administrativo tenha uma liberdade de decisão não apenas em face do legislador, mas também em face do tribunal.

Há que referir a metodologia que permite perceber quando é que se deve entender que a norma que utiliza um conceito jurídico indeterminado tem a intenção de conferir à Administração um poder discricionário.

O primeiro passo é identificar o tipo de valoração que o conceito indeterminado suscita. São exemplo de conceitos indeterminados que, empregues na norma de competência, são uma fonte de discricionariedade:

i)conceitos que suscitam juízos administrativos, que a norma de competência utiliza para abrir um espaço de apreciação administrativa na situação concreta;

ii)conceitos intrinsecamente associados à descrição do núcleo típico das competências de uma autoridade administrativa;

iii)conceitos que remetem para o saber específico da Administração, para os seus conhecimentos especializados, a sua formação e competência técnica;

iv)situações em que a norma define competências decisórias que se sustentam na ponderação de situações e problemas complexos que exigem a adoção de medidas em situações  de incerteza ou de risco e que, em geral, têm de se basear em juízos prospetivos, estimativas e projeções.

No entanto, há que saber que nem todos os conceitos jurídicos indeterminados conduzem a um tal resultado: a indeterminação no modo de descrição da hipótese normativa não corresponde sempre, em todos os casos, a uma abertura discricionária. Exige-se, pois, que a indeterminação seja corolário de uma intenção legislativa (da norma de competência) de “autorizar” um poder discricionário da Administração. Neste sentido, conceitos como “boa fé” fazem apelo a critérios de natureza jurídica, não se justificando a decisão da Administração como se se tratasse de uma valoração própria da função administrativa.

Cumpre ainda observar que, em relação a matérias protegidas pela reserva de lei parlamentar, impõe-se ao legislador um dever de especial contenção no emprego de conceitos jurídicos indeterminados. O objetivo é, na definição das normas de competência, evitar indefinições e aberturas normativas em áreas da ação administrativa que interferem diretamente com essas matérias. No sentido de a norma atributiva de competência não cumprir esse “imperativo de determinabilidade” é necessário um controlo judicial mais profundo, que assegure a fiscalização suficiente da legalidade das decisões concretas da Administração.

Esta densificação mais profunda também se deve exigir nas normas que conferem competências sancionatórias à Administração. Aqui, o propósito da determinação já não consiste em diminuir a discricionariedade da Administração, mas sim em diminuir a indefinição da conduta ilícita, ou seja, a indefinição da sanção aplicável.

 

 

Referências Bibliográficas:

AMARAL, Diogo Freitas ,Curso de Direito Administrativo, Almedina Editora, 2011;

SILVA, Vasco Pereira da, Em busca do Ato administrativo perdido, Almedina,2016;

GONÇALVES, Pedro Costa, Manual de Direito Administrativo, Almedina, 2019;

DUARTE, Maria Luísa, A Discricionariedade administrativa e os conceitos indeterminados, comentário de 1987.

 

Patrícia Falé

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