Semestres

sábado, 25 de maio de 2024

A proteção plena e efetiva dos particulares no quadro da Administração Pública

 

A proteção plena e efetiva dos particulares no quadro da Administração Pública

A Administração Pública pode ser definida como o poder administrativo exercido pelos centros institucionalizados titulares de poderes e deveres, para efeitos da prática de atos jurídicos imputáveis à pessoa coletiva, dispostos no artigo 20º, n.º1 do Código de Procedimento Administrativo (doravante CPA).

Nestes centros incluem-se não só o Estado, mas demais entidades administrativas. Entre as quais, as autarquias locais, as associações públicas e as regiões autónomas. Desta forma, pode-se dizer que a Administração Pública compreende não só o poder executivo da entidade estadual, mas também o exercício prosseguido pelas entidades públicas administrativas não estaduais que, no âmbito das suas competências, visam satisfazer as necessidades coletivas definidas no quadro legal.

Introdução às garantias dos particulares

No quadro desta Administração existem as garantias dos particulares, que serão o tema fulcral do meu comentário e que se encontram previstas no artigo 52º, n.º1 da Constituição da República portuguesa (doravante CRP) e no artigo 268º, n.º4 e n.º5 CRP. Utilizadas como instrumento de efetividade do Direito Administrativo, correspondem ao conjunto de poderes jurídicos proporcionados aos particulares, que permitem a sua proteção e segurança perante as ilegalidades e os abusos praticados pela Administração Pública. É, assim, viabilizado aos particulares um manejo de impugnação de defesa face aos atos praticados pela Administração que, como já foi referido, possam lesar ou colocar em causa os seus direitos ou interesses legalmente protegidos. São, segundo o Prof. Doutor Freitas do Amaral, “meios criados pela ordem jurídica com a finalidade de evitar ou sancionar as violações do direito objetivo, as ofensas dos direitos subjetivos ou dos interesses legítimos dos particulares, ou o demérito da ação administrativa, por parte da Administração Pública”1. Assim sendo, e independentemente da definição doutrinária adotada, todas estas garantias dos particulares têm na sua origem, inevitavelmente, uma iniciativa particular. Isto é, surgem em consequência da conduta adotada por um particular que pretende a modificação de uma determinada atuação administrativa.

Neste sentido, é possível identificar várias modalidades de garantias dos particulares, consoante os órgãos a quem é confiada a efetivação das garantias. Ainda que tenham características distintas, as garantias administrativas, contenciosas e políticas têm aspetos em comum. Dispõem de um conjunto de vantagens que as tornam, em certa medida, eficazes na “necessidade de assegurar uma proteção plena e efetiva dos particulares perante a Administração” 2, tal como referido pelo Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva, e por outro lado, um enunciado de insuficiências que nos fazem duvidar da sua eficácia.

Quero ressalvar que irei começar por analisar as garantias políticas e contenciosas, como forma de, posteriormente, conseguir fazer uma análise mais aprofundada das garantias administrativas e da sua subdivisão.

i)                Garantias políticas

Dentro do quadro das garantias dos particulares existem as de natureza política que, segundo o Prof. Doutor José Fontes, se definem como “aquelas em que os particulares não se dirigem diretamente a um órgão da Administração, mas sim, a órgãos que exercem ou participam no exercício de funções políticas, como sucede com o acesso ao direito de petição (artigo 268º, n.º4 da CRP) quando exercido junto de órgãos políticos” 3.

Tal como o nome indica, inserem-se no quadro político, daí serem, tendencialmente, mais discutíveis e criticadas. São vários os exemplos desta modalidade de garantias, nomeadamente, o direito de petição, previsto no artigo 52º CRP, através do qual os cidadãos têm a faculdade de apresentar aos órgãos de soberania ou a quaisquer autoridades, petições, representações ou queixas que reivindiquem direitos. Constituem também exemplos destas garantias, o direito de resistência que, ao abrigo do disposto no artigo 21º CRP, prevê a faculdade do particular resistir a uma ofensa de direitos, liberdades e garantias, bem como o direito de recorrer à força perante uma agressão e impossibilidade de recurso à autoridade pública.

As exigências relativas à aprovação anual do Orçamento de Estado, dispostas no artigo 106º CRP e na Lei n.º 151/2025, de 11 de setembro, Lei de Enquadramento Orçamental, bem como o controlo do Parlamento sobre o poder executivo (artigo 180º, n.º2 CRP) e a fiscalização da constitucionalidade dos atos legislativos são outras das garantias políticas que, como desenvolverei mais à frente, implicam vantagens e desvantagens.

ii)              Garantias contenciosas

Não constituindo as garantias políticas uma proteção suficiente dos particulares, existem as contenciosas ou jurisdicionais, que são efetivadas pelos tribunais previstos na CRP. Posições doutrinárias como a adotada pelo Prof. Doutor Freitas do Amaral, definem esta modalidade de garantias como “a forma mais elevada e mais eficaz de defesa dos direitos subjetivos ou dos interesses legítimos dos particulares”4.

Distinguem-se das restantes por serem efetivadas pelos tribunais, que exercem a sua função jurisdicional. Em concreto, pelos tribunais administrativos e, excecionalmente, pelos comuns. Ao contrário do que acontece em sistemas como o britânico, em que o contencioso administrativo é da competência dos tribunais comuns e as courts of law assumem um caráter processual civil, em Portugal, a regra geral são os tribunais de âmbito administrativo.

No quadro da matéria da competência dos tribunais administrativos, designado por contencioso administrativo, direito processual administrativo ou justiça administrativa, os tribunais têm de se revelar capazes de administrar a justiça em nome do povo, tal como consta no artigo 202º, n.º1 CRP. Têm, segundo o Prof. Doutor Paulo Otero, de resolver definitivamente um conflito, adotar as providências adequadas e necessárias, bem como executar a sentença5.

Importa, ainda, acrescentar que são várias as garantias contenciosas que existem na atualidade. Por exemplo, os particulares podem invocar o direito à condenação da Administração Pública com o pagamento de uma determinada quantia, podem exigir a entrega de coisa ou a adoção de conduta material. Garantias estas que se inserem no âmbito do reconhecimento de direitos, qualidades ou situações aos particulares. Existem exemplos aplicados aos contratos administrativos e públicos, como é o caso do direito à suspensão cautelar ou execução de contratos que se prevejam ser ilegais, a declaração de nulidade de contratos inexistentes ou ilegais, ou ainda, a exigência de decisão judicial através da interpretação, modificação ou extinção de um contrato válido.

iii)             Garantias administrativas

A par das garantias políticas e contenciosas, existem as administrativas. Estas efetivam-se através da atuação e decisão dos órgãos da Administração Pública já mencionados no presente comentário. Previstas no artigo 182º CPA, são garantias que constituem o meio através do qual os particulares contestam os atos administrativos que não prosseguem os princípios basilares do Direito Administrativo. Isto é, que revelam a inobservância do dever de boa administração que consta no artigo 5º CPA, ilegalidades, omissões e, ainda, desrespeito pelos direitos subjetivos e interesses legítimos dos particulares.

Antigamente denominadas garantias graciosas, estas garantias administrativas assentam na ideia, segundo o Prof. Doutor Paulo Otero, de que “a ordem jurídica confere ao particular meios de reação: tais meios controlando e sancionando a atuação administrativa, consubstanciam verdadeiros “trunfos” contra o agir administrativo e que funcionam como garantias do particular”6.

Dentro deste quadro de garantias da administração, existem diferentes tipos de avanços contra o agir administrativo previstos na CRP e no CPA. São possíveis de identificar várias modalidades, nomeadamente, as garantias de mérito, de legalidade, de tipo petitório e de tipo impugnatório.

Enquanto as garantias administrativas de mérito não apreciam a legalidade de um ato, mas o mérito de um ponto de vista não jurídico (por exemplo, a sua conveniência e adequação), as garantias administrativas de legalidade apreciam, precisamente, a legalidade do ato.

A par desta classificação, distinguem-se as garantias petitórias das impugnatórias. As petitórias têm por base um pedido feito junto da Administração Pública e não pressupõem a prévia prática de um ato administrativo, tal como consta no artigo 52º, n.º1 CPA. São exemplo desta modalidade de garantias, o direito de queixa, em que se dá a abertura de um procedimento administrativo com vista a sancionar o comportamento da Administração Pública; o direito de denúncia, que se reflete na legitimidade dos particulares em reportar uma situação; o direito de petição em que o particular faz um pedido. Por fim, o direito de representação, que consiste no direito de pedir à Administração Pública que reconsidere ou confirme uma decisão já tomada, é outra das garantias petitórias existentes, que visa não só uma reponderação ou confirmação da decisão, mas um alerta para as consequências da respetiva.

As garantias impugnatórias têm por base uma impugnação, de forma a reagir contra a omissão ilegal de atos administrativos. Implicam a existência de um ato praticado que se pretende modificar ou revogar. Esta competência para recorrer a estes meios administrativos será reconhecida, nos termos do artigo 160º CPA, aos que se considerem lesados pelo desrespeito ou ilegalidade do ato. A título de complemento, é de referir que não podem recorrer a estas garantias administrativas quem, sem reserva, tenha aceitado expressamente ou tacitamente o ato administrativo já praticado, tal como consta no artigo 186º, nº2 CPA. São vários os exemplos destas garantias, nomeadamente, a reclamação, o recurso hierárquico e os recursos administrativos especiais, nos quais se incluem o recurso tutelar e o recurso hierárquico próprio (artigos 184º e 185º CPA).

A reclamação prevista no artigo 191º CPA e seguintes, é, segundo o Prof. Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, “o direito do particular, titular de direito subjetivo ou interesse legalmente protegido, que se considere lesado por certo ato administrativo, solicitar, ao autor, a sua revogação ou modificação, para tanto invocarem a correspondente ilegalidade ou inconveniência” 7. Em suma, é a faculdade do autor do ato rever o ato praticado por si, à luz do princípio da boa administração, previsto no artigo 5º CPA.

Ainda que tenha em comum com o recurso hierárquico os mesmos fundamentos, ou seja, a ilegalidade e inconveniência previstas no artigo 185º, n.º3 CPA (não admitindo a lei situação contrária), o recurso previsto nos artigos 193º e 199º CPA, difere pelo facto de ser impugnado ao órgão que se encontra hierarquicamente superior ao lesado. Segundo o Prof. Doutor Diogo Freitas do Amaral assenta na ideia de que “o recurso hierárquico é meio de impugnação de um ato administrativo, que tenha sido praticado por um órgão subalterno, perante o respetivo superior hierárquico, a fim de obter deste a revogação, modificação ou substituição do ato recorrido”8. Exige-se, assim, ao abrigo do artigo 194º, n.º1 CPA, a obrigatoriedade de hierarquia entre o autor do ato e o órgão superior e uma condição pressuposta para interposição do recurso. O próprio procedimento administrativo é um exemplo de uma garantia administrativa prevista na CRP.

Por último, é de salientar o facto destas garantias administrativas constituírem um organismo de defesa diferente do meio judicial. Podem ser definidas como um meio alternativo ao âmbito contencioso, a desenvolver já de seguida, na medida que os particulares recorrem diretamente à Administração Pública.

Análise da eficácia das garantias particulares no quadro da Administração pública

Como já tive oportunidade de desenvolver, existem três categorias de garantias particulares, entre as quais, as administrativas, as contenciosas e as políticas. Importa, agora, fazer uma análise da sua eficácia e do funcionamento destas três modalidades no seu todo.

As garantias administrativas são tidas como eficazes a nível da proteção jurídica ou, pelo menos, quando comparadas às garantias políticas. Primeiro porque atuam, em regra, desprovidas de qualquer motivação ou influência política. Atuam segundo os princípios basilares da Administração Pública dispostos no CPA, entre os quais, o princípio da imparcialidade, previsto no artigo 9º CPA. Isto demonstra que a Administração Pública deve tratar as partes com quem entra em relação com imparcialidade, essencialidade, indispensabilidade e objetividade. O princípio da boa administração, previsto no artigo 5º CPA, é outro dos exemplos a mencionar. Tendo como base cinco vertentes nucleares, assenta na eficiência, economicidade, celeridade, aproximação dos serviços aos cidadãos e, ainda, numa menor burocratização.

Por força da sua natureza e das suas finalidades, sendo as garantias administrativas desprovidas de influências políticas, não provocam grandes repercussões nacionais. São, desta forma, mais fáceis de efetivar e aplicar ao caso concreto. As garantias políticas, por sua vez, são revestidas de influências da política. Daí se poder dizer que não constituem uma forma eficaz de proteção dos direitos dos particulares. São associadas a uma ideia de insegurança, por serem confiadas a órgãos políticos que atuam, tendencialmente, segundo critérios de conveniência política, ao contrário dos critérios de natureza jurídica pretendidos, a justiça e imparcialidade.

Relativamente às garantias políticas, é ainda, de ressalvar o facto de cobrirem poucos casos e dentro de cada caso não abrangeram todas as matérias essenciais, aspeto que se revela fundamental por uma questão de eficiência.

As garantias administrativas reúnem, para além das considerações já mencionadas, outras vantagens. Entre estas, revela-se vantajoso o seu caráter facultativo, o que significa que os particulares não perdem o direito de recorrer às garantias contenciosas quando recorrem aos meios administrativos. O caráter facultativo das reclamações e dos recursos, previsto no artigo 185º CPA, faz com que não se invalide o recurso a meios distintos.

O artigo 190º CPA admite, ainda, a suspensão dos prazos de interposição da ação junto dos tribunais administrativos. O dever de celebridade, que se encontra previsto no artigo 59º CPA, irá garantir a estas garantias administrativas uma vantajosa eficácia do procedimento administrativo, ao que acresce a regra geral de que estas garantias estão dispensadas da exigência de um patrono judicial e do pagamento de custas, ao abrigo do princípio da gratuitidade, disposto no artigo 15º CPA.

Relativamente a esta matéria, Jorge de Figueiredo Dias afirma que os órgãos da Administração Pública tendem a privilegiar os critérios de eficiência na prossecução do interesse público, em detrimento do rigoroso respeito pela proteção dos direitos subjetivos e interesses legítimos dos particulares. Da mesma forma que, não é comum a concessão do efeito suspensivo, nas hipóteses de reclamação, e o recurso facultativo, o que reforça a tendência da Administração em não reformar as suas decisões e acabar por obrigar os particulares a recorrerem às garantias contenciosas.

Por fim, é necessário fazer uma análise da eficácia destas garantias jurisdicionais, na medida que autores como Freitas do Amaral afirmam ser o modelo mais eficaz de defesa dos direitos subjetivos e dos interesses legítimos dos particulares. Estando estas associadas ao exercício dos tribunais previstos no artigo 202º, n.º1 CRP, as garantias jurisdicionais têm por base a existência de uma maior confiança na administração da justiça, em nome do povo, por parte deste órgão de soberania.

Serão estas garantias suficientes?

Analisado o conceito de “garantias particulares” e exploradas as suas várias vertentes, concluo que estas constituem um mecanismo efetivo de defesa dos direitos e interesses legítimos dos destinatários do exercício da Administração Pública. Permitem que os particulares desempenhem um papel mais ativo na efetiva limitação da Administração e diria o Prof. Doutor Paulo Otero “reforçam o protagonismo dos particulares no moderno ordenamento regulador” 9.

Parece-me que a existência destas três modalidades é vantajosa e contraria qualquer visão limitadora. Isto porque, perante a insuficiência de uma insuficiência política, o particular terá sempre a faculdade de recorrer às garantias administrativas e, em casos extremos, às garantias contenciosas ou judiciais.

Deste modo, a conjugação das três naturezas de garantias particulares será fundamental na prossecução, pelo particular, da sua proteção e segurança perante as ilegalidades e os abusos praticados pela Administração Pública.

 

1 AMARAL, Freitas do. Curso de Direito Administrativo Volume II. 2ª edição. Almedina, 2011. Página 747;

2  SILVA, Vasco Pereira da. Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo. Editora Almedina. Coimbra: 2005. Reimpressão;

3  FONTES, José. Curso sobre o Código do Procedimento Administrativo, 3ª edição, Coimbra Editora. Coimbra: janeiro/ 2007;

4 AMARAL, Freitas do; Curso de Direito Administrativo Volume II. 2ª edição. Almedina, 2011. Página 791;

5 OTERO, Paulo; Direito do Procedimento Administrativo Volume I. Almedina, 2013;

6 OTERO, Paulo; Direito do Procedimento Administrativo Volume I. Almedina, 2013;

7 OTERO, Paulo; Direito do Procedimento Administrativo Volume I. Almedina, 2013;

8  AMARAL, Freitas do. Curso de Direito Administrativo Volume II. 2ª edição. Almedina, 2011. Página 766;

9 OTERO, Paulo; Direito do Procedimento Administrativo Volume I. Almedina, 2013.

 

Bibliografia:

o   AMARAL, Freitas do; Curso de Direito Administrativo Volume II. 2ª edição. Almedina, 2011;

o   AMARAL, Freitas do: CAUPERS, João. Garantias dos particulares, Coletânea de Legislação, 1983;

o   FONTES, José. Curso sobre o Código do Procedimento Administrativo, 3ª edição, Coimbra Editora. Coimbra: janeiro/ 2007;

o   OTERO, Paulo; Direito do Procedimento Administrativo Volume I. Almedina, 2013;

o   REBOUÇAS, João Batista, As Garantias dos particulares perante a Administração Pública [Relatório de estágio de mestrado, Ciências Jurídico-Políticas (Direito Administrativo), 2009, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa];

o   SILVA, Vasco Pereira da. Ventos de Mudança no Contencioso Administrativo. Editora Almedina. Coimbra: 2005. Reimpressão.

 

Margarida Lopes, nº 67994, Turma B, Subturma 15

Sem comentários:

Enviar um comentário

Acontecimentos revolucionários no Direito Administrativo.

      Acontecimentos revolucionários no Direito administrativo:        Fazendo uma análise da evolução do direito Administrativo na sua vert...