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domingo, 28 de abril de 2024

ATO ADMINISTRATIVO E O FENÓMENO DA PATRIMONIALIDADE

 

ATO ADMINISTRATIVO E O FENÓMENO DA PATRIMONIALIDADE

INTRODUÇÃO

Neste trabalho pretendo abordar o tema da patrimonialidade do ato  administrativo, ou seja, estudar o fenómeno de apropriação e do comércio dos atos administrativos.

O ato administrativo era concebido como um ato cujos efeitos se produziam apenas em relação entre o Estado e o particular, pretendendo-se demonstrar, com base em estudos já feitos, que os atos administrativos são passiveis de apropriação e que criam um valor económico- produzindo uma vantagem para o seu titular. Tal  reflete a característica da  patrimonialidade, variando consoante a proporção direta da transmissibilidade do ato e na proporção inversa da sua escassez. 

O trabalho irá versar sobre as autorizações administrativas, já que é esta subcategoria de atos que cria direitos suscetíveis de apropriação e de transmissão. De atender que existem certos tipos de autorizações que, em função da sua complexidade ou especificidade, são objeto de tratamento autónomo, as quais não irei versar.

 

O ATO ADMINISTRATIVO

De acordo com o professor Vasco Pereira da Silva[1], sabemos que a teoria do ato administrativo  está em profunda crise, deixando de ser o pilar central da forma de atuação da administração. É neste sentido que importa entender, antes de mais, a sua evolução.

Para MARCELLO CAETANO[2] o ato administrativo era “uma conduta voluntária de um órgão da Administração que, no exercício de um poder público e para a prossecução de interesses postos por lei a seu cargo, produza feitos jurídicos num caso concreto”.

Não obstante as várias noções que vieram a ser desenvolvidas, o novo CPA, no seu artigo 148º, define os atos administrativos como “as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta”.

É desta noção que se retiram as principais características do ato administrativo: 

1)É um ato jurídico, enquanto conduta voluntária destinada à produção de efeitos jurídicos;

2)É um ato unilateral, no sentido de que não carece de qualquer declaração de vontade do seu destinatário para que produza efeitos jurídicos;

3)É um ato adotado no exercício de poderes jurídico-administrativo (aspeto discutido na doutrina);

4)É produtor de efeitos externos numa situação individual e concreta- é a partir desta característica que a doutrina retira o caráter individual e intransmissível dos atos administrativos.

5)Consubstancia uma decisão, tratando-se de um comando imperativo.

No entanto, como já referido, esta conceção atravessa atualmente uma profunda crise, bem mais vasta do que a dogmática jurídica, associada a conceções do próprio estado, opondo o Estado Liberal ao Estado Social.

 

O ATO ADMINISTRATIVO PERMISSIVO

Tradicionalmente, a doutrina tem delimitado os administrativos permissivos enquanto atos que possibilitam ao destinatário a adoção ou omissão de um comportamento que lhe é proibido, ou que possibilitam a ampliação de vantagens (estas vantagens que, a par da possibilidade de comercialização, construirão a patrimonialidade do ato administrativo).

Ao contrário da doutrina estrangeira, a doutrina nacional só muito recentemente revelou importância pelo tema dos atos permissivos, em concreto as autorizações administrativas.

 

A INDIVIDUALIDADE, INTRANSMISSIBILIDADE E PRECARIEDADE DO ATO ADMINISTRATIVO

A teoria do ato administrativo demonstra que a sua conceção tradicional impede o tratamento da patrimonialidade do ato administrativo. Aliás, esta conceção não é exclusiva da doutrina portuguesa, estendendo-se à generalidade das ordens jurídicas que seguem a matriz do contencioso administrativo francês.

Para a abordagem desta questão ressalve-se um excerto de MAXENCE CORMER[3], já mencionado por PAULO LINHARES DIAS[4],  que sintetiza a problemática dos obstáculos da doutrina tradicional ao comércio dos atos administrativos:

Assim, os autores do século XIX e do século XX, pelo menos até metade da década de 90, maioritariamente concebiam o ato administrativo como individual (autorizações, contratos, licenças, quotas, direitos de produção…) tendo as seguintes características: pessoal, precário e revogável, tendo como corolários a não cedência e a intransmissibilidade, obstáculos tradicionais à patrimonialidade. Os regimes jurídicos, e principalmente as práticas, que permitem o comércio dos atos administrativos, são denunciadas como sendo contrárias à moral administrativa. Portanto, durante este longo período, poucos autores se dedicaram à investigação dos fundamentos jurídicos deste fenómeno da patrimonialização. E, dos que o fizeram, foram mais os que se apressaram em demonstrar a ausência da patrimonialidade dos atos administrativos e poucos os que estudaram os fundamentos da sua patrimonilaidade.

Assim, a conceção tradicional do ato administrativo definia as suas características como sendo: a individualidade, intransmissibilidade e precariedade, aspetos que se constituem como obstáculos ao seu comércio e, consequentemente, à patrimonialidade.

 

A INDIVIDUALIDADE

O caráter individual do ato administrativo resulta da noção clássica adaptada em Portugal por MARCELLO CAETANO, que o considera um ato produtor de efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta. Desta noção ressalta uma distinção imediata do ato administrativo, individual e concreto, por oposição aos regulamentos administrativos, gerais e abstratos.

Como defende PAULO LINHARES DIAS[5], a conceção individualista do ato está bem patente na noção que veio a ser plasmada no art 148º CPA, sob epigrafe de “conceito de ato administrativo”: Para efeitos do disposto no presente código, consideram-se atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta.

Ainda no artigo 151º nº1 do CPA, o legislador consagrou como menção obrigatória do ato a identificação adequada do destinatário ou destinatários.

 

A INTRASMISSIBILIDADE

Relativamente à intransmissibilidade do ato, PEDRO GONÇALVES[6] reconhece que, relativamente à distinção entre atos administrativos (autorizativos) intuitu personae ou intuitu rei, os atos pessoais criam situações jurídicas de vantagem, mas não transmissíveis. O caráter pessoal impõe a intransmissibilidade, já os atos reais criam situações jurídicas de vantagem não transmissíveis autonomamente (transmissão das situações jurídicas de forma secundária ou acessória em relação à transmissão da coisa).

A doutrina tradicional não associa, expressamente, a individualidade à intransmissibilidade do ato administrativo ou vice-versa, mas tal varia consoante a concessão adotada. Esta partilha da mesma conceção de ato administrativo, em que este se caracteriza pela possibilidade do uso de poderes exorbitantes relativamente ao direito privado (conceção unilateral de ato).

No entanto, é de salientar, como refere VASCO PEREIRA DA SILVA, que esta é uma conceção que parte de uma conceção superficial de ato administrativo unilateral, ela própria cingindo essa unilateralidade a uma relação de poder. Neste sentido, a questão não se levanta em relação à intransmissibilidade, já que a unilateralidade do ato e a sua individualidade encerram em si a intransmissibilidade.

Não podemos ignorar que a transmissibilidade de atos administrativos ocorre há muito, integrada em negócios jurídicos de conteúdo mais amplo e no comercio direito, sem que a administração nem o direito administrativo se tenha questionado sobre tal.

A própria jurisprudência nacional considera determinados atos intransmissíveis (por exemplo, Proc.º2016/03, Ac. STA de 22.04.2004, relator Conselheiro João Cordeiro[7]) e outros transmissíveis (Proc.º46143, Ac.STA de 06.03.2022, relator Conselheiro Costa Reis[8]), não havendo uma aplicação da teoria do ato, mas sim a aplicação de uma decisão in caso, perante a situação que lhe é colocada ou do próprio efeito da lei que reconhece tal intransmissibilidade.

Outro fator que remonta à incapacidade da teoria tradicional do ato administrativo ser incapaz de dar resposta à evolução da realidade social, é o facto de, noutros países, se ter autonomizado o estudo da “autorização administrativa”, um ato administrativo permissivo,  que coloca a questão da transmissibilidade.

Conclui-se que, apesar de não estar consagrada numa das características do ato administrativo, pela unilateralidade do ato e pela sua individualidade, no quadro de uma conceção de ato administrativo autoritário, a intransmissibilidade estava já subjacente a este.

 

A PRECARIEDADE

A precariedade do ato administrativo advém da sua livre revogabilidade, ou seja, a precariedade é consequência da revogabilidade.

Os atos precários podem ser definidos, segundo MARCELLO CAETANO[9], como atos que criam situações jurídicas a todo o tempo modificáveis pela vontade da administração, porquanto o poder em que o particular foi investido só existe porque tolerado por esta. O professor equipara os atos precários aos atos não constitutivos de direitos, ou seja, aqueles de que não resulta alteração na esfera jurídica de outrem.

É passível que existam teorias contrárias à tradicional defendida por MARCELLO CAETANO, no sentido de pugnar pela justaposição dos interesses conflituantes entre a modificação dos atos, por razões de interesse público, e a proteção da confiança dos particulares.[10]

Contudo, a publicação do Decreto-Lei n.º4/2015, veio introduzir grandes alterações à disciplina da revogação dos atos administrativos, referida na Secção IV, do Capítulo II da Parte IV do CPA referindo a precarização do regime dos atos constitutivos de direitos como, aliás, já era defendido por PAULO OTERO[11].

 

A PATRIMONIALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO

A patrimonialidade do ato administrativo que tem sido desenvolvida ao longo do trabalho, resume-se ao facto das autorizações administrativas permitirem ao seu titular o acesso a uma atividade ou bem do domínio publico.

A titularidade que é conferida ao beneficiário coloca-o numa situação de vantagem face à concorrência, o que se traduz num valor económico do bem quanto mais elevado, em função da sua raridade. Esta situação de vantagem, no entanto, e como refere PEDRO GONÇALVES[12], não representa um valor económico que suscite um interesse específico para terceiros. Isto é, a autorização não cria um valor económico autónomo, já que qualquer pessoa que cumpra os requisitos a pode alcançar.

O problema que decorre destas autorizações não é, portanto, o próprio consentimento, mas sim a escassez que daí advém, a escassez de autorizações.

O raciocínio prende-se com o facto de existirem atos que permitem o acesso a determinada atividade mediante a simples verificação das condições previstas na lei, sem que essa esteja vedada ou sujeita a contingentação (autorização), mas também atos que permitem o acesso a atividades relativamente proibidas, por razões tanto sociais como económicas, e que, portanto, se tornam bens raros e dotados de valor patrimonial (licença).

Assim, a patrimonialidade do ato administrativo assenta no binómio titularidade/transmissibilidade (elemento jurídico) e raridade/escassez (elemento económico). Segundo a doutrina francesa, a patrimonialidade é entendida como o valor económico da vantagem criada, que decorre diretamente do ato autorizativo. Ou seja, quanto maior for a possibilidade de transmissão da autorização administrativa, maior será o seu valor patrimonial.

Já PEDRO GONÇALVES aborda a questão do valor económico criado pelos atos autorizativos de forma distinta, designadamente quanto aos fundamentos da patrimonialidade do ato administrativo. Este refere que o que está em causa é, também, o valor económico resultante da atribuição  de autorizações em número limitado, mas esse valor decorre daquilo a que o autor designa por “coisificação dos direitos constituídos pelo ato administrativo” (e não diretamente do ato autorizativo).

O autor considera então que «o resultado do processo traduz-se em esses direitos se converterem em “objetos de domínio do seu titular”, e, assim, em bens ou coisas que podem ser deslocados, transferidos, para o domínio de outra pessoa».[13]

PEDRO GONÇALVES, critica, ainda, à semelhança de alguma doutrina francesa, a teoria da patrimonialização do ato administrativo, por ignorar a distinção entre o tempo decisório e a situação jurídica criada por aquela (geradora de um valor económico). Considera, assim, que estaríamos a “coisificar” o ato administrativo, que é uma decisão administrativa e não um bem móvel ou coisa.

No entanto, como refere PAULO LINHARES DIAS[14], esta discussão não terá qualquer influência do ponto de vista jurídico, sendo, na verdade, os atos a influenciar a patrimonialidade e não o contrário. Apesar deste autor concordar com PEDRO GONÇALVES quanto à questão da discussão poder ser de detalhe jurídico, apenas o admite na perspetiva da teoria do ato administrativo, ou seja, a questão da “patrimonialização” ou “coisificação” não se coloca no “momento da marcha do procedimento administrativo, nem no momento decisório”.

Tal é explicado pois, em alguns casos, o valor económico criado é transmitido enquanto um direito associado a um bem, e noutros é a própria autorização administrativa que será comercializada e transmitida autonomamente.

Conclui-se que a patrimonialidade do ato administrativo não é, por si só, uma coisificação do ato administrativo, mas sim um valor económico, resultante da vantagem criada pelo ato administrativo e das suas características.

 

FUNDAMENTOS JURÍDICOS

O fundamento jurídico da patrimonialidade do ato administrativo reside, principalmente, nos atos administrativos autorizativos. Assim, impõe-se uma análise das autorizações administrativas, com destaque para os elementos que lhes conferem a possibilidade de criarem um valor económico- a escassez e a transmissibilidade.

Referir, ainda, que o presente trabalho é realizado perante uma conceção única de autorização administrativa, não relevando a distinção entre atos autorizativos intuite personae e intuite rei.

Um ponto fundamental a estudar é a questão terminológica da autorização administrativa.

Quanto ao tema do trabalho, a questão coloca-se na distinção entre autorização e licença. PAULO DIAS LINHARES distingue-as da seguinte forma:

(…)através da primeira, a administração permitiria ao particular o gozo ou exercício de um direito ou poder que já existia na sua esfera jurídica (v.g, as autorizações urbanísticas, licenças de abertura de estabelecimentos comerciais de livre acesso), enquanto que no segundo caso a licença seria o ato administrativo permissivo, mediante o qual a administração permitiria o acesso a atividades relativamente proibidas, por razões de ordem pública, que poderão ser de vária ordem, como a prevenção sanitária, ambiental ou até de regulação de mercado. [15]

Continua por resolver, no entanto, a questão terminológica que, como refere LAGUNA DA PAZ, se circunscreve a saber se todos os conceitos correspondem a uma única categoria unitária ou a diferentes referências dogmáticas.

A doutrina mais recente, entre ela A. DIAS GARCIA[16], defende que não existe critério distintivo eficaz e que não há sequer interesse em distinguir autorizações de licenças. No entanto, pode, ainda, assumir-se que, embora se faça a distinção entre licenças e autorizações, acaba por se concluir ser possível adotar um conceito de “autorização em sentido amplo”. Noutra perspetiva, PEDRO GONÇALVES[17] adota uma definição de autorização em sentido lato.

Pode concluir-se que a questão terminológica não é essencial e, apoiando a tese de J.E. FIGUEIREDO DIAS[18], que define a autorização administrativa em sentido amplo, como qualquer ato administrativo destinado a possibilitar o exercício de atividades ou direitos que correspondam ao exercício da liberdade de iniciativa económica privada.

Um outro ponto fundamental a ser estudado é a questão da natureza jurídica das autorizações administrativas. Esta surgiu ligada a uma conceção do direito administrativo de polícia, em que cabia à administração o controlo prévio do exercício das atividades, como forma de acautelar os interesses públicos. Aliás, apenas com o final do século XX é que a autorização administrativa começou a ganhar alguma relevância.

É à doutrina italiana que devemos os primeiros estudos, e, atualmente, grande parte da doutrina sobre o assunto.

RANNELLETI veio definir a autorização como o ato que permite a remoção de um limite ao exercício de um direito pré-existente do particular, com a  finalidade de controlar a sua compatibilidade com a ordem pública.

Já na Alemanha, OTTO MAYER concebia a autorização administrativa como “proibição policial com reserva de autorização. O autor concebia a autorização administrativa associada à necessidade de controlo de prévio pela administração, dando enfâse ao ato administrativo como remoção da proibição do exercício.  

A verdade é que a autorização era concebida como um ato de policia, um ato de controlo preventivo de direitos(concretamente conforme o interesse público). O aumento do papel da administração cria a dificuldade em explicar certos tipos de autorizações administrativas, passando, estas, a ser vistas como atos declarativos, vinculados e revogáveis.

No entanto, perante a  “crise da autorização”, existem doutrinas mais críticas e defensoras do efeitos constitutivos da autorização. Ou seja, baseando-se num direito subjetivo público, que não existia na esfera do particular, apenas passando para este pelo efeito constitutivo do ato autorizativo. LAGUNA DA PAZ[19] identifica esta corrente como sendo uma posição que vai sendo assumida em função do direito positivado, principalmente relativo a legislação ambiental.

Aliás, foi a propósito do direito do ambiente que se desenvolveram pela primeira vez, na doutrina nacional, estudos mais aprofundados sobre a teoria da autorização administrativa, ambos no sentido do abandono da doutrina clássica da autorização declarativa, vinculada e irrevogável, para uma nova conceção de autorização constitutiva, discricionária e precária.[20]

 

A NATUREZA JURÍDICA DAS AUTORIZAÇÕES ADMINISTRATIVAS

A problemática da natureza jurídica das autorizações administrativas centra-se na relação entre os direitos subjetivos dos particulares e a função da administração de prossecução do interesse público.

Procura-se saber se o Estado deve respeitar a liberdade dos cidadãos, ou se pode – e deve – introduzir limites a esta liberdade e em que medida (limites impostos pela Constituição).

A doutrina clássica tende a defender que o direito existe na esfera do particular, estando, desde logo, constitucionalmente consagrado.

Poderá entender-se que bastaria o principio da igualdade presente no artigo 13º CRP para que, aos cidadãos, devesse ser garantido o acesso a qualquer atividade ou bem público, quer na vertente positiva da sua igualdade perante a lei, quer na vertente negativa da proibição de qualquer discriminação.

Destacam-se os  direitos ao livre exercício de profissão, iniciativa privada e à propriedade privada (artigo 59º, 61º e 62º CRP), que, não sendo direitos fundamentais, por via do disposto no artigo 17º da CRP, têm natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.

Concluímos, portanto, pela sua aplicabilidade direta, pela vinculação dos Estados e dos particulares (artigo 18º nº1 CRP) e que a sua limitação só pode ocorrer nos casos previstos na CRP (sujeição de reserva de lei e ao princípio da proporcionalidade). No entanto, fora da análise dos direitos a cima mencionados, não podemos ignorar que existem outros tantos direitos económicos, sociais e culturais que legitimam o controlo prévio do Estado, quer na sua função organizadora e de polícia.

Estamos perante um conflito de direitos, onde é aplicada uma justa ponderação de interesses, que só pode ser feita por lei enquanto limitação de um direito fundamental (artigo18º nº2 CRP). Assim, é reconhecido na doutrina nacional que o direito pré-existe na esfera do particular, cabendo ao Estado garantir a compatibilidade dos direitos com o interesse público.

Outra questão que se discute, a propósito da natureza jurídica das autorizações administrativas, é o seu grau de vinculação, pretendendo apurar-se se estas serão atos vinculados ou discricionários.

Regra geral, a doutrina tem concebido as autorizações administrativas como declarativas constitutivas, vinculada discricionária ou irrevogável precária.

Segundo PAULO LINHARES DIAS[21], as autorizações administrativas têm natureza declarativa, ou seja, que os direitos que gozem de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, só podem ser restringidos por via da lei. Assim, o controlo prévio da administração será delimitado pela lei, pelo que o poder de conformação da administração é reduzido.

Quer isto dizer que as autorizações administrativas serão vinculadas exceto nas situações: i)casos de utilização de conceitos vagos e imprecisos; ii)autorizações sujeitas a contingentação; iii)poder de conformação da administração na emissão da autorização.

 

A COMERCIALIZAÇÃO DAS AUTORIZAÇÕES ADMINISTARTIVAS

A questão da comercialização das autorizações administrativas constitui um dos elementos fundamentais da sua patrimonialidade. Esta supõe a transferibilidade da autorização administrativa.

MAXENCE CORMIER defende:

A patrimonialidade corresponde à possibilidade de determinação de um valor pecuniário e implica a transferibilidade e transmissibilidade. Estudar a patrimonialidade dos atos administrativos, implica necessariamente examinar estes dois elementos, a transferibilidade e o valor pecuniário dos atos administrativos individuais, que por comodidade linguística designaremos por autorizações administrativas.

Assim, apesar da transmissibilidade não ser o único elemento da determinação da patrimonialidade do ato administrativo (importância dada à escassez), é, sem duvida, determinante do mesmo.

A apropriação é o meio de transmissibilidade das autorizações administrativas, seja ela no sentido direto de conceder direitos e/ou criar vantagens, seja ela no sentido de “coisificação”.

De salientar que esta comercialização pode ser feita entre particulares, mesmo perante uma intervenção da entidade administrativa na transmissão, no entanto centremo-nos, apenas, na comercialização feita pelas entidades administrativas.

A atribuição de autorizações administrativas em número limitado representam uma nova realidade na atuação administrativa , que admite vários tipos de reflexões:

i)fundamento da contingentação dessas autorizações  

A “administração da escassez”, quer decorra de uma escassez natural, quer decorra de razões de defesa de outros direitos, traduz-se numa restrição de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados. O acesso limitado a um bem ou atividade económica que é de iniciativa privada, torna as autorizações administrativas escassas, aumentando o seu valor e colocando o seu beneficiário numa situação de vantagem.

Quer isto dizer que, ao contrário das autorizações administrativas livres (onde se limita a verificação dos requisitos legais, podendo qualquer um ser beneficiário), nas autorizações limitadas são vários os interessados num recurso escasso, o que provoca a exclusão dos restantes, traduzindo-se numa violação do princípio da igualdade.

Impõe-se, assim, que essa seleção ocorra através de um procedimento concorrencial, que na impossibilidade de garantir o acesso material de todos ao recurso, possa garantir que todos poderão participar no procedimento, em igualdade de circunstâncias.

ii)garantia do respeito pelo princípio constitucional da igualdade por via dos procedimentos concorrenciais

À semelhança do exposto em cima, a garantia do principio constitucional da igualdade, previsto no artigo 13º CRP, no acesso aos recursos públicos, só pode ser alcançado perante uma situação concorrencial autêntica, ou seja, um acesso igual ao procedimento.

Impõe-se, por isso, que a possibilidade de contingentação das autorizações se faça através de um procedimento concorrencial, mesmo que remetendo a sua concretização para a via regulamentar.

iii)mercantilização da atividade administrativa

Este fenómeno novo da atuação administrativa em matéria de autorizações comporta uma dupla vertente: por um lado que a administração crie um mercado de “autorizações”; por outro que o valor cobrado por essas autorizações escassas, não integre o conceito tradicional de taxa, ou viole o princípio da gratuitidade dos atos administrativos, sendo os valores das taxas correspondentes a essa escassez.

Assim, as taxas de emissão da autorização refletem, elas próprias, a patrimonialidade do ato, ou seja, a sua escassez e o ganho económico do beneficiário de uma autorização escassa.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ato administrativo, tal como é definido, é passível de apropriação e cria um valor económico que se traduz numa vantagem para o seu titular.

A conceção tradicional do ato administrativo, caracterizado pela sua individualidade, intransmissibilidade e precariedade, constitui um obstáculo ao seu comércio e, consequentemente, à patrimonialidade.

No entanto, perante os fundamentos jurídicos apresentados[22], a própria natureza jurídica da autorização administrativa, bem como a sua comercialização, entende-se que a patrimonialidade decorre diretamente do ato. Assim, quanto maior for a possibilidade de transmissão da autorização administrativa, maior será o seu valor patrimonial, o que assenta na ideia de patrimonialidade do ato.

 

 

BIBLIOGRAFIA

CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol I.

CAUPRES, João, Introdução ao Direito Administrativo, 10ªedição.

DIAS, Paulo Linhares, A patrimonialidade do ato administrativo, 2016. Disponível em: <Estudo Geral- A PATRIMONIALIADE DO ATO ADMINISTARTIVO- UC>.

DIAS, José Eduardo de Figueiredo, A estabilidade jurídica da autorização administrativa no direito do ambiente alemão in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, 2009. 

GARCIA António Dias, A autorização administrativa, 1995.

GONÇALVES, Pedro, “Revogação (de atos administrativos)”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, 1996.

GONÇALVES Pedro, Reflexões sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante, 2013.

OTERO, Paulo, Problemas Constitucionais do Novo Código de Procedimento Administrativo- uma introdução in Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo.

PAZ José Carlos Laguna, La autorización Administrativa, 2006.

PEREIRA, da Silva Vasco, Em busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina.

 



[1] PEREIRA da Silva Vasco, Em busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina.

[2] CAETANO Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol I.

[3] Jornadas de estudo sobre a patrimonialidade dos Atos Administrativos organizadas pelo Centro de Investigação de Direito Administrativo da Universidade de Panthéon.

[4]DIAS Paulo Linhares, A Patrimonialidade do Ato Administrativo, página 16.

[5]DIAS Paulo Linhares, A Patrimonialidade do Ato Administrativo, página 19.

[6]GONÇALVES Pedro, “Revogação (de atos administrativos)”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, 1996.

[7]DIAS Paulo Linhares, A Patrimonialidade do Ato Administrativo, página 37 em nota de rodapé.

[8]DIAS Paulo Linhares, A Patrimonialidade do Ato Administrativo, página 38 em nota de rodapé. 

[9] CAETANO Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol I.

[10] Citado por DIAS PAULO LINHARES em “A Patrimonialidade do Ato Administrativo” como sua inicial posição.

[11] OTERO Paulo, Problemas Constitucionais do Novo Código de Procedimento Administrativo- uma introdução in Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo.

[12] GONÇALVES Pedro, Reflexões sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante, 2013.

[13]GONÇALVES Pedro, O contrato administrativo, página 56

[14]DIAS Paulo Linhares, A Patrimonialidade do Ato Administrativo, página 35.

[15] DIAS Paulo Linhares, A Patrimonialidade do Ato Administrativo, página 39.

[16] GARCIA António Dias, A autorização administrativa, 1995.

[17] in Reflexões sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante, CEDIPRE, 2013, P.149.

[18]DIAS José Eduardo de Figueiredo, A estabilidade jurídica da autorização administrativa no direito do ambiente alemão in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, 2009.

[19] PAZ José Carlos Laguna, La autorización Administrativa, 2006.

[20]Doutrina de CARLA AMADO GOMES e J.E. FIGUEIREDODIAS

[21] DIAS Paulo Linhares, A Patrimonialidade do Ato Administrativo, página 47.

 [22] questão terminológica da autorização administrativa e questão da natureza jurídica das autorizações administrativas


Patrícia Falé, sub 15 

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