ATO
ADMINISTRATIVO E O FENÓMENO DA PATRIMONIALIDADE
INTRODUÇÃO
Neste
trabalho pretendo abordar o tema da patrimonialidade do ato administrativo, ou seja, estudar o fenómeno
de apropriação e do comércio dos atos administrativos.
O
ato administrativo era concebido como um ato cujos efeitos se produziam apenas
em relação entre o Estado e o particular, pretendendo-se demonstrar, com base
em estudos já feitos, que os atos administrativos são passiveis de apropriação
e que criam um valor económico- produzindo uma vantagem para o seu titular.
Tal reflete a característica da patrimonialidade, variando consoante a
proporção direta da transmissibilidade do ato e na proporção inversa da sua
escassez.
O
trabalho irá versar sobre as autorizações administrativas, já que é esta
subcategoria de atos que cria direitos suscetíveis de apropriação e de
transmissão. De atender que existem certos tipos de autorizações que, em função
da sua complexidade ou especificidade, são objeto de tratamento autónomo, as
quais não irei versar.
O
ATO ADMINISTRATIVO
De
acordo com o professor Vasco Pereira da Silva[1], sabemos que a teoria do
ato administrativo está em profunda
crise, deixando de ser o pilar central da forma de atuação da administração. É
neste sentido que importa entender, antes de mais, a sua evolução.
Para
MARCELLO CAETANO[2]
o ato administrativo era “uma conduta voluntária de um órgão da Administração
que, no exercício de um poder público e para a prossecução de interesses postos
por lei a seu cargo, produza feitos jurídicos num caso concreto”.
Não
obstante as várias noções que vieram a ser desenvolvidas, o novo CPA, no seu
artigo 148º, define os atos administrativos como “as decisões que, no exercício
de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos
numa situação individual e concreta”.
É desta noção que se retiram as principais características do ato administrativo:
1)É um ato jurídico, enquanto conduta voluntária destinada à produção de efeitos jurídicos;
2)É um ato unilateral, no sentido de que não carece de qualquer declaração de vontade do seu destinatário para que produza efeitos jurídicos;
3)É um ato adotado no exercício de poderes jurídico-administrativo (aspeto discutido na doutrina);
4)É produtor de efeitos externos numa situação individual e concreta- é a partir desta característica que a doutrina retira o caráter individual e intransmissível dos atos administrativos.
5)Consubstancia uma decisão, tratando-se de um comando imperativo.
No
entanto, como já referido, esta conceção atravessa atualmente uma profunda
crise, bem mais vasta do que a dogmática jurídica, associada a conceções do
próprio estado, opondo o Estado Liberal ao Estado Social.
O
ATO ADMINISTRATIVO PERMISSIVO
Tradicionalmente,
a doutrina tem delimitado os administrativos permissivos enquanto atos que
possibilitam ao destinatário a adoção ou omissão de um comportamento que lhe é
proibido, ou que possibilitam a ampliação de vantagens (estas vantagens que, a
par da possibilidade de comercialização, construirão a patrimonialidade do ato
administrativo).
Ao
contrário da doutrina estrangeira, a doutrina nacional só muito recentemente
revelou importância pelo tema dos atos permissivos, em concreto as autorizações
administrativas.
A
INDIVIDUALIDADE, INTRANSMISSIBILIDADE E PRECARIEDADE DO ATO ADMINISTRATIVO
A
teoria do ato administrativo demonstra que a sua conceção tradicional impede o
tratamento da patrimonialidade do ato administrativo. Aliás, esta conceção não
é exclusiva da doutrina portuguesa, estendendo-se à generalidade das ordens
jurídicas que seguem a matriz do contencioso administrativo francês.
Para a abordagem desta questão ressalve-se um excerto de MAXENCE CORMER[3], já mencionado por PAULO LINHARES DIAS[4], que sintetiza a problemática dos obstáculos da doutrina tradicional ao comércio dos atos administrativos:
Assim, os autores do século XIX e do século XX, pelo menos até metade da década de 90, maioritariamente concebiam o ato administrativo como individual (autorizações, contratos, licenças, quotas, direitos de produção…) tendo as seguintes características: pessoal, precário e revogável, tendo como corolários a não cedência e a intransmissibilidade, obstáculos tradicionais à patrimonialidade. Os regimes jurídicos, e principalmente as práticas, que permitem o comércio dos atos administrativos, são denunciadas como sendo contrárias à moral administrativa. Portanto, durante este longo período, poucos autores se dedicaram à investigação dos fundamentos jurídicos deste fenómeno da patrimonialização. E, dos que o fizeram, foram mais os que se apressaram em demonstrar a ausência da patrimonialidade dos atos administrativos e poucos os que estudaram os fundamentos da sua patrimonilaidade.
Assim,
a conceção tradicional do ato administrativo definia as suas características como
sendo: a individualidade, intransmissibilidade e precariedade, aspetos
que se constituem como obstáculos ao seu comércio e, consequentemente, à
patrimonialidade.
A
INDIVIDUALIDADE
O
caráter individual do ato administrativo resulta da noção clássica adaptada em
Portugal por MARCELLO CAETANO, que o considera um ato produtor de efeitos
jurídicos externos numa situação individual e concreta. Desta noção ressalta
uma distinção imediata do ato administrativo, individual e concreto, por
oposição aos regulamentos administrativos, gerais e abstratos.
Como
defende PAULO LINHARES DIAS[5], a conceção individualista
do ato está bem patente na noção que veio a ser plasmada no art 148º CPA, sob
epigrafe de “conceito de ato administrativo”: Para efeitos do disposto no
presente código, consideram-se atos administrativos as decisões que, no
exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos
externos numa situação individual e concreta.
Ainda
no artigo 151º nº1 do CPA, o legislador consagrou como menção obrigatória do
ato a identificação adequada do destinatário ou destinatários.
A
INTRASMISSIBILIDADE
Relativamente
à intransmissibilidade do ato, PEDRO GONÇALVES[6] reconhece que,
relativamente à distinção entre atos administrativos (autorizativos) intuitu
personae ou intuitu rei, os atos pessoais criam situações jurídicas
de vantagem, mas não transmissíveis. O caráter pessoal impõe a
intransmissibilidade, já os atos reais criam situações jurídicas de vantagem
não transmissíveis autonomamente (transmissão das situações jurídicas de forma
secundária ou acessória em relação à transmissão da coisa).
A
doutrina tradicional não associa, expressamente, a individualidade à
intransmissibilidade do ato administrativo ou vice-versa, mas tal varia
consoante a concessão adotada. Esta partilha da mesma conceção de ato
administrativo, em que este se caracteriza pela possibilidade do uso de poderes
exorbitantes relativamente ao direito privado (conceção unilateral de ato).
No
entanto, é de salientar, como refere VASCO PEREIRA DA SILVA, que esta é uma
conceção que parte de uma conceção superficial de ato administrativo unilateral,
ela própria cingindo essa unilateralidade a uma relação de poder. Neste sentido,
a questão não se levanta em relação à intransmissibilidade, já que a
unilateralidade do ato e a sua individualidade encerram em si a
intransmissibilidade.
Não
podemos ignorar que a transmissibilidade de atos administrativos ocorre há
muito, integrada em negócios jurídicos de conteúdo mais amplo e no comercio
direito, sem que a administração nem o direito administrativo se tenha
questionado sobre tal.
A
própria jurisprudência nacional considera determinados atos intransmissíveis
(por exemplo, Proc.º2016/03, Ac. STA de 22.04.2004, relator Conselheiro João
Cordeiro[7]) e outros transmissíveis (Proc.º46143,
Ac.STA de 06.03.2022, relator Conselheiro Costa Reis[8]), não havendo uma
aplicação da teoria do ato, mas sim a aplicação de uma decisão in caso, perante
a situação que lhe é colocada ou do próprio efeito da lei que reconhece tal
intransmissibilidade.
Outro
fator que remonta à incapacidade da teoria tradicional do ato administrativo ser
incapaz de dar resposta à evolução da realidade social, é o facto de, noutros
países, se ter autonomizado o estudo da “autorização administrativa”, um ato administrativo
permissivo, que coloca a questão da
transmissibilidade.
Conclui-se
que, apesar de não estar consagrada numa das características do ato
administrativo, pela unilateralidade do ato e pela sua individualidade, no
quadro de uma conceção de ato administrativo autoritário, a
intransmissibilidade estava já subjacente a este.
A
PRECARIEDADE
A
precariedade do ato administrativo advém da sua livre revogabilidade, ou seja,
a precariedade é consequência da revogabilidade.
Os
atos precários podem ser definidos, segundo MARCELLO CAETANO[9], como atos que criam
situações jurídicas a todo o tempo modificáveis pela vontade da administração,
porquanto o poder em que o particular foi investido só existe porque tolerado por
esta. O professor equipara os atos precários aos atos não constitutivos de
direitos, ou seja, aqueles de que não resulta alteração na esfera jurídica de
outrem.
É
passível que existam teorias contrárias à tradicional defendida por MARCELLO
CAETANO, no sentido de pugnar pela justaposição dos interesses conflituantes
entre a modificação dos atos, por razões de interesse público, e a proteção da
confiança dos particulares.[10]
Contudo,
a publicação do Decreto-Lei n.º4/2015, veio introduzir grandes alterações à
disciplina da revogação dos atos administrativos, referida na Secção IV, do
Capítulo II da Parte IV do CPA referindo a precarização do regime dos atos
constitutivos de direitos como, aliás, já era defendido por PAULO OTERO[11].
A
PATRIMONIALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO
A
patrimonialidade do ato administrativo que tem sido desenvolvida ao longo do
trabalho, resume-se ao facto das autorizações administrativas permitirem ao seu
titular o acesso a uma atividade ou bem do domínio publico.
A
titularidade que é conferida ao beneficiário coloca-o numa situação de vantagem
face à concorrência, o que se traduz num valor económico do bem quanto mais elevado,
em função da sua raridade. Esta situação de vantagem, no entanto, e como refere
PEDRO GONÇALVES[12],
não representa um valor económico que suscite um interesse específico para
terceiros. Isto é, a autorização não cria um valor económico autónomo, já que
qualquer pessoa que cumpra os requisitos a pode alcançar.
O
problema que decorre destas autorizações não é, portanto, o próprio
consentimento, mas sim a escassez que daí advém, a escassez de autorizações.
O
raciocínio prende-se com o facto de existirem atos que permitem o acesso a
determinada atividade mediante a simples verificação das condições previstas na
lei, sem que essa esteja vedada ou sujeita a contingentação (autorização), mas
também atos que permitem o acesso a atividades relativamente proibidas, por
razões tanto sociais como económicas, e que, portanto, se tornam bens raros e
dotados de valor patrimonial (licença).
Assim,
a patrimonialidade do ato administrativo assenta no binómio titularidade/transmissibilidade
(elemento jurídico) e raridade/escassez (elemento económico). Segundo a doutrina
francesa, a patrimonialidade é entendida como o valor económico da vantagem
criada, que decorre diretamente do ato autorizativo. Ou seja, quanto maior for
a possibilidade de transmissão da autorização administrativa, maior será o seu valor
patrimonial.
Já
PEDRO GONÇALVES aborda a questão do valor económico criado pelos atos
autorizativos de forma distinta, designadamente quanto aos fundamentos da
patrimonialidade do ato administrativo. Este refere que o que está em causa é,
também, o valor económico resultante da atribuição de autorizações em número limitado, mas esse
valor decorre daquilo a que o autor designa por “coisificação dos direitos
constituídos pelo ato administrativo” (e não diretamente do ato autorizativo).
O
autor considera então que «o resultado do processo traduz-se em esses direitos
se converterem em “objetos de domínio do seu titular”, e, assim, em bens ou
coisas que podem ser deslocados, transferidos, para o domínio de outra pessoa».[13]
PEDRO
GONÇALVES, critica, ainda, à semelhança de alguma doutrina francesa, a teoria
da patrimonialização do ato administrativo, por ignorar a distinção entre o tempo
decisório e a situação jurídica criada por aquela (geradora de um valor
económico). Considera, assim, que estaríamos a “coisificar” o ato
administrativo, que é uma decisão administrativa e não um bem móvel ou coisa.
No
entanto, como refere PAULO LINHARES DIAS[14], esta discussão não terá
qualquer influência do ponto de vista jurídico, sendo, na verdade, os atos a
influenciar a patrimonialidade e não o contrário. Apesar deste autor concordar
com PEDRO GONÇALVES quanto à questão da discussão poder ser de detalhe
jurídico, apenas o admite na perspetiva da teoria do ato administrativo, ou
seja, a questão da “patrimonialização” ou “coisificação” não se coloca no “momento
da marcha do procedimento administrativo, nem no momento decisório”.
Tal
é explicado pois, em alguns casos, o valor económico criado é transmitido
enquanto um direito associado a um bem, e noutros é a própria autorização
administrativa que será comercializada e transmitida autonomamente.
Conclui-se
que a patrimonialidade do ato administrativo não é, por si só, uma coisificação
do ato administrativo, mas sim um valor económico, resultante da vantagem
criada pelo ato administrativo e das suas características.
FUNDAMENTOS
JURÍDICOS
O
fundamento jurídico da patrimonialidade do ato administrativo reside, principalmente,
nos atos administrativos autorizativos. Assim, impõe-se uma análise das
autorizações administrativas, com destaque para os elementos que lhes conferem
a possibilidade de criarem um valor económico- a escassez e a
transmissibilidade.
Referir,
ainda, que o presente trabalho é realizado perante uma conceção única de
autorização administrativa, não relevando a distinção entre atos autorizativos intuite
personae e intuite rei.
Um
ponto fundamental a estudar é a questão terminológica da autorização
administrativa.
Quanto
ao tema do trabalho, a questão coloca-se na distinção entre autorização e
licença. PAULO DIAS LINHARES distingue-as da seguinte forma:
(…)através
da primeira, a administração permitiria ao particular o gozo ou exercício de um
direito ou poder que já existia na sua esfera jurídica (v.g, as autorizações
urbanísticas, licenças de abertura de estabelecimentos comerciais de livre acesso),
enquanto que no segundo caso a licença seria o ato administrativo permissivo, mediante
o qual a administração permitiria o acesso a atividades relativamente
proibidas, por razões de ordem pública, que poderão ser de vária ordem, como a
prevenção sanitária, ambiental ou até de regulação de mercado. [15]
Continua
por resolver, no entanto, a questão terminológica que, como refere LAGUNA DA
PAZ, se circunscreve a saber se todos os conceitos correspondem a uma única
categoria unitária ou a diferentes referências dogmáticas.
A
doutrina mais recente, entre ela A. DIAS GARCIA[16], defende que não existe
critério distintivo eficaz e que não há sequer interesse em distinguir
autorizações de licenças. No entanto, pode, ainda, assumir-se que, embora se
faça a distinção entre licenças e autorizações, acaba por se concluir ser
possível adotar um conceito de “autorização em sentido amplo”. Noutra
perspetiva, PEDRO GONÇALVES[17] adota uma definição de
autorização em sentido lato.
Pode
concluir-se que a questão terminológica não é essencial e, apoiando a tese de
J.E. FIGUEIREDO DIAS[18], que define a autorização
administrativa em sentido amplo, como qualquer ato administrativo destinado a
possibilitar o exercício de atividades ou direitos que correspondam ao
exercício da liberdade de iniciativa económica privada.
Um
outro ponto fundamental a ser estudado é a questão da natureza jurídica das
autorizações administrativas. Esta surgiu ligada a uma conceção do direito
administrativo de polícia, em que cabia à administração o controlo prévio do
exercício das atividades, como forma de acautelar os interesses públicos.
Aliás, apenas com o final do século XX é que a autorização administrativa
começou a ganhar alguma relevância.
É
à doutrina italiana que devemos os primeiros estudos, e, atualmente, grande
parte da doutrina sobre o assunto.
RANNELLETI
veio definir a autorização como o ato que permite a remoção de um limite ao
exercício de um direito pré-existente do particular, com a finalidade de controlar a sua compatibilidade
com a ordem pública.
Já
na Alemanha, OTTO MAYER concebia a autorização administrativa como “proibição
policial com reserva de autorização. O autor concebia a autorização
administrativa associada à necessidade de controlo de prévio pela
administração, dando enfâse ao ato administrativo como remoção da proibição do
exercício.
A
verdade é que a autorização era concebida como um ato de policia, um ato de
controlo preventivo de direitos(concretamente conforme o interesse público). O
aumento do papel da administração cria a dificuldade em explicar certos tipos
de autorizações administrativas, passando, estas, a ser vistas como atos declarativos,
vinculados e revogáveis.
No
entanto, perante a “crise da
autorização”, existem doutrinas mais críticas e defensoras do efeitos
constitutivos da autorização. Ou seja, baseando-se num direito subjetivo
público, que não existia na esfera do particular, apenas passando para este
pelo efeito constitutivo do ato autorizativo. LAGUNA DA PAZ[19] identifica esta corrente
como sendo uma posição que vai sendo assumida em função do direito positivado,
principalmente relativo a legislação ambiental.
Aliás,
foi a propósito do direito do ambiente que se desenvolveram pela primeira vez,
na doutrina nacional, estudos mais aprofundados sobre a teoria da autorização
administrativa, ambos no sentido do abandono da doutrina clássica da
autorização declarativa, vinculada e irrevogável, para uma nova conceção de
autorização constitutiva, discricionária e precária.[20]
A
NATUREZA JURÍDICA DAS AUTORIZAÇÕES ADMINISTRATIVAS
A
problemática da natureza jurídica das autorizações administrativas centra-se na
relação entre os direitos subjetivos dos particulares e a função da administração
de prossecução do interesse público.
Procura-se
saber se o Estado deve respeitar a liberdade dos cidadãos, ou se pode – e deve
– introduzir limites a esta liberdade e em que medida (limites impostos pela
Constituição).
A
doutrina clássica tende a defender que o direito existe na esfera do
particular, estando, desde logo, constitucionalmente consagrado.
Poderá
entender-se que bastaria o principio da igualdade presente no artigo 13º CRP para
que, aos cidadãos, devesse ser garantido o acesso a qualquer atividade ou bem
público, quer na vertente positiva da sua igualdade perante a lei, quer na
vertente negativa da proibição de qualquer discriminação.
Destacam-se
os direitos ao livre exercício de
profissão, iniciativa privada e à propriedade privada (artigo 59º, 61º e 62º
CRP), que, não sendo direitos fundamentais, por via do disposto no artigo 17º
da CRP, têm natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
Concluímos,
portanto, pela sua aplicabilidade direta, pela vinculação dos Estados e dos
particulares (artigo 18º nº1 CRP) e que a sua limitação só pode ocorrer nos
casos previstos na CRP (sujeição de reserva de lei e ao princípio da
proporcionalidade). No entanto, fora da análise dos direitos a cima
mencionados, não podemos ignorar que existem outros tantos direitos económicos,
sociais e culturais que legitimam o controlo prévio do Estado, quer na sua
função organizadora e de polícia.
Estamos
perante um conflito de direitos, onde é aplicada uma justa ponderação de
interesses, que só pode ser feita por lei enquanto limitação de um direito
fundamental (artigo18º nº2 CRP). Assim, é reconhecido na doutrina nacional que
o direito pré-existe na esfera do particular, cabendo ao Estado garantir a
compatibilidade dos direitos com o interesse público.
Outra
questão que se discute, a propósito da natureza jurídica das autorizações
administrativas, é o seu grau de vinculação, pretendendo apurar-se se estas
serão atos vinculados ou discricionários.
Regra
geral, a doutrina tem concebido as autorizações administrativas como
declarativas constitutivas, vinculada discricionária ou irrevogável precária.
Segundo
PAULO LINHARES DIAS[21], as autorizações
administrativas têm natureza declarativa, ou seja, que os direitos que gozem de
natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, só podem ser
restringidos por via da lei. Assim, o controlo prévio da administração será
delimitado pela lei, pelo que o poder de conformação da administração é
reduzido.
Quer
isto dizer que as autorizações administrativas serão vinculadas exceto nas
situações: i)casos de utilização de conceitos vagos e imprecisos;
ii)autorizações sujeitas a contingentação; iii)poder de conformação da
administração na emissão da autorização.
A
COMERCIALIZAÇÃO DAS AUTORIZAÇÕES ADMINISTARTIVAS
A
questão da comercialização das autorizações administrativas constitui um dos
elementos fundamentais da sua patrimonialidade. Esta supõe a transferibilidade
da autorização administrativa.
MAXENCE
CORMIER defende:
A
patrimonialidade corresponde à possibilidade de determinação de um valor
pecuniário e implica a transferibilidade e transmissibilidade. Estudar a patrimonialidade
dos atos administrativos, implica necessariamente examinar estes dois
elementos, a transferibilidade e o valor pecuniário dos atos administrativos
individuais, que por comodidade linguística designaremos por autorizações
administrativas.
Assim,
apesar da transmissibilidade não ser o único elemento da determinação da
patrimonialidade do ato administrativo (importância dada à escassez), é, sem
duvida, determinante do mesmo.
A
apropriação é o meio de transmissibilidade das autorizações administrativas,
seja ela no sentido direto de conceder direitos e/ou criar vantagens, seja ela
no sentido de “coisificação”.
De
salientar que esta comercialização pode ser feita entre particulares, mesmo
perante uma intervenção da entidade administrativa na transmissão, no entanto
centremo-nos, apenas, na comercialização feita pelas entidades administrativas.
A
atribuição de autorizações administrativas em número limitado representam uma
nova realidade na atuação administrativa , que admite vários tipos de
reflexões:
i)fundamento da contingentação
dessas autorizações
A
“administração da escassez”, quer decorra de uma escassez natural, quer decorra
de razões de defesa de outros direitos, traduz-se numa restrição de direitos
fundamentais constitucionalmente consagrados. O acesso limitado a um bem ou
atividade económica que é de iniciativa privada, torna as autorizações
administrativas escassas, aumentando o seu valor e colocando o seu beneficiário
numa situação de vantagem.
Quer
isto dizer que, ao contrário das autorizações administrativas livres (onde se
limita a verificação dos requisitos legais, podendo qualquer um ser
beneficiário), nas autorizações limitadas são vários os interessados num
recurso escasso, o que provoca a exclusão dos restantes, traduzindo-se numa violação do
princípio da igualdade.
Impõe-se, assim, que essa seleção ocorra através de um procedimento concorrencial, que na impossibilidade de garantir o acesso material de todos ao recurso, possa garantir que todos poderão participar no procedimento, em igualdade de circunstâncias.
ii)garantia do respeito pelo
princípio constitucional da igualdade por via dos procedimentos concorrenciais
À
semelhança do exposto em cima, a garantia do principio constitucional da
igualdade, previsto no artigo 13º CRP, no acesso aos recursos públicos, só pode
ser alcançado perante uma situação concorrencial autêntica, ou seja, um acesso
igual ao procedimento.
Impõe-se,
por isso, que a possibilidade de contingentação das autorizações se faça
através de um procedimento concorrencial, mesmo que remetendo a sua
concretização para a via regulamentar.
iii)mercantilização da atividade
administrativa
Este
fenómeno novo da atuação administrativa em matéria de autorizações comporta uma
dupla vertente: por um lado que a administração crie um mercado de
“autorizações”; por outro que o valor cobrado por essas autorizações escassas,
não integre o conceito tradicional de taxa, ou viole o princípio da
gratuitidade dos atos administrativos, sendo os valores das taxas
correspondentes a essa escassez.
Assim,
as taxas de emissão da autorização refletem, elas próprias, a patrimonialidade
do ato, ou seja, a sua escassez e o ganho económico do beneficiário de uma
autorização escassa.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
O
ato administrativo, tal como é definido, é passível de apropriação e cria um
valor económico que se traduz numa vantagem para o seu titular.
A
conceção tradicional do ato administrativo, caracterizado pela sua individualidade,
intransmissibilidade e precariedade, constitui um obstáculo ao seu comércio e,
consequentemente, à patrimonialidade.
No
entanto, perante os fundamentos jurídicos apresentados[22], a própria natureza
jurídica da autorização administrativa, bem como a sua comercialização, entende-se
que a patrimonialidade decorre diretamente do ato. Assim, quanto maior for a
possibilidade de transmissão da autorização administrativa, maior será o seu valor
patrimonial, o que assenta na ideia de patrimonialidade do ato.
BIBLIOGRAFIA
CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, vol I.
CAUPRES, João, Introdução ao Direito Administrativo, 10ªedição.
DIAS,
Paulo Linhares, A patrimonialidade do ato administrativo, 2016.
Disponível em: <Estudo Geral- A PATRIMONIALIADE DO ATO ADMINISTARTIVO- UC>.
DIAS, José Eduardo de Figueiredo, A estabilidade jurídica da autorização administrativa no direito do ambiente alemão in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, 2009.
GARCIA António Dias, A autorização administrativa, 1995.
GONÇALVES, Pedro, “Revogação (de atos administrativos)”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, 1996.
GONÇALVES Pedro, Reflexões sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante, 2013.
OTERO, Paulo, Problemas Constitucionais do Novo Código de Procedimento Administrativo- uma introdução in Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo.
PAZ José Carlos Laguna, La autorización Administrativa, 2006.
PEREIRA, da Silva Vasco, Em
busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina.
[1]
PEREIRA da Silva Vasco, Em
busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina.
[2] CAETANO Marcello, Manual de
Direito Administrativo, vol I.
[3]
Jornadas de estudo sobre a
patrimonialidade dos Atos Administrativos organizadas pelo Centro de
Investigação de Direito Administrativo da Universidade de Panthéon.
[4]DIAS Paulo Linhares, A Patrimonialidade
do Ato Administrativo, página 16.
[5]DIAS Paulo Linhares, A
Patrimonialidade do Ato Administrativo, página 19.
[6]GONÇALVES Pedro, “Revogação (de
atos administrativos)”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública,
1996.
[7]DIAS Paulo Linhares, A Patrimonialidade
do Ato Administrativo, página 37 em nota de rodapé.
[8]DIAS Paulo Linhares, A Patrimonialidade do Ato Administrativo, página 38 em nota de rodapé.
[9]
CAETANO Marcello, Manual
de Direito Administrativo, vol I.
[10] Citado por DIAS PAULO LINHARES em
“A Patrimonialidade do Ato Administrativo” como sua inicial posição.
[11]
OTERO Paulo, Problemas
Constitucionais do Novo Código de Procedimento Administrativo- uma introdução
in Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo.
[12] GONÇALVES Pedro, Reflexões
sobre o Estado Regulador e o Estado Contratante, 2013.
[13]GONÇALVES Pedro, O contrato
administrativo, página 56
[14]DIAS Paulo Linhares, A Patrimonialidade do Ato Administrativo, página 35.
[15] DIAS Paulo Linhares, A
Patrimonialidade do Ato Administrativo, página 39.
[16] GARCIA António Dias, A
autorização administrativa, 1995.
[17]
in Reflexões sobre o
Estado Regulador e o Estado Contratante, CEDIPRE, 2013, P.149.
[18]DIAS José Eduardo de Figueiredo, A
estabilidade jurídica da autorização administrativa no direito do ambiente
alemão in Estudos em Homenagem do Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, 2009.
[19] PAZ José Carlos Laguna, La
autorización Administrativa, 2006.
[20]Doutrina de CARLA AMADO GOMES e
J.E. FIGUEIREDODIAS
[21]
DIAS Paulo Linhares, A
Patrimonialidade do Ato Administrativo, página 47.
Patrícia Falé, sub 15
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