Introdução
O controlo do exercício do poder discricionário é essencial para assegurar a prossecução do interesse público, porquanto, o legislador constituinte submeteu o exercício dos poderes administrativos a determinados princípios fundamentais, previstos no artigo 266º, nº2 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Com base nesse artigo, o legislador ordinário consagrou no Código do Procedimento Administrativo (CPA), os princípios gerais de Direito Administrativo, impondo limites imanentes à margem de livre decisão, podendo os tribunais administrativos impugnar os atos que violem os princípios por vício de ilegalidade.
O princípio da imparcialidade, consagrado no artigo 266º, nº2 da CRP e no artigo 9º da CPA impõe aos órgãos e agentes da Administração Pública, que nas relações que a mesma estabelece com os particulares, encontra-se sujeita a um dever de tratamento equânime, neutro e isento, privando-se de beneficiar injustamente ou afetar negativamente os administrados, fundamentando-se em decisões arbitrárias ou valorações subjetivas.
De acordo com o artigo 9º do Código do Procedimento Administrativo, os órgãos e agentes administrativos devem avaliar de forma objetiva todos e apenas os interesses relevantes no quadro decisório, procurando alcançar as solucionar mais acertadas que assegurem a imparcialidade da Administração Pública, gerando confiança nos particulares que os administradores procedem de forma justa, ou seja, na tomada de decisão, os órgãos e agentes administrativos devem ponderar os interesses em causa com neutralidade, a partir de critérios objetivos, tal como é exigido pela Constituição e por lei, que impõe a igualdade de oportunidades entre os interessados no processo decisório. Sendo assim, é inadmissível que a Administração, no exercício de suas funções, baseie-se em critérios desvirtuosos, atendendo a interesses pessoais e não ao interesse público.
De acordo com Freitas do Amaral (2018, p. 123), o princípio da imparcialidade possui duas dimensões: a dimensão negativa e a dimensão positiva. Com o objetivo de cristalizar a vertente do princípio em comento enquanto limitador da atuação administrativa, é importante definir a dimensão positiva. De forma sucinta, a vertente positiva impõe que, antes da adoção definitiva da decisão, o órgão ou agente administrativo deve considerar todos os interesses legítimos em apreço, sejam eles público ou privado, que de acordo com o fim imposto por lei, sejam pertinentes para a decisão em causa. De acordo com Freitas do Amaral (2018, p.127), a dimensão positiva do princípio em comento implica uma “obrigação de ponderação comparativa” que limita o espaço de apreciação do poder discricionário, não só porque impõe o afastamento de interesses alheios à previsão da norma, “mas principalmente porque o real poder de escolha da autoridade pública só subsiste onde a proteção legislativa dos vários interesses seja de igual natureza e medida”. Sendo assim, quando a Administração pública deixa de considerar alguns dos interesses legítimos impostos pela previsão da norma, o ato é, em princípio, anulável nos termos do artigo 163º, nº1 do CPA.
Vertente negativa do princípio da imparcialidade administrativa
A dimensão negativa traduz-se em uma proibição imposta ao decisor administrativo de participar em procedimentos das atividades administrativas que envolvam interesses de natureza pessoal, familiar, econômico, bem como outros fatores que impliquem o afastamento da isenção decisória.
De acordo com Mário Esteves de Oliveira, seguindo a posição de Sérvulo Correia, a vertente negativa do princípio da imparcialidade é quase que supérflua, dado que nada acrescenta ao controlo da atividade administrativa. Esse argumento baseia-se no facto de já existir um princípio que impõe a invalidade de decisões da Administração Pública que levam em consideração interesses estranhos ao caso concreto, o princípio da legalidade. Essa crítica ao princípio é desmedida, na medida em que, os princípios gerais de Direito Administrativo, foram pensados pelo legislador numa lógica de complementaridade, e por isso, articulam-se entre si, impondo limites a atividade administrativa. A violação do princípio da imparcialidade resulta na invalidade, no sentido de violação da lei, dado que, este princípio tem previsão legal, tanto no CPA, como também na CRP, e, portanto, está subjacente a violação do princípio da legalidade.
A vertente negativa veda aquele que é o decisor prima facie de participar no processo decisório onde o mesmo tenha algum interesse direto ou indireto, tendo o legislador, visando garantir a imparcialidade, previsto no Código do Procedimento Administrativo, entre os artigos 69º ao 76º, um conjunto de casos típico-abstratos em que esse problema se levanta, o desvalor jurídico e as sanções aplicáveis caso o princípio da imparcialidade na sua vertente negativa seja violado.
O CPA prevê dois tipos de situações em que a imparcialidade é afetada: as situações de impedimento e as situações de suspeição. A legislação em apreço estabeleceu um regime específico para cada uma das situações, sendo que a principal diferença entre as duas é a determinação do nível da gravidade em que a imparcialidade foi atingida. Por conseguinte, no impedimento, situação mais gravosa, a lei, no artigo 69º do CPA, impõe que o órgão ou agente administrativo, detentor prima facie da competência, deve ser substituído por outro que não se encontra em uma situação de impedimento, passando este último a ser o decisor competente no caso em concreto. Já na suspeição, em que verifica-se a suspeita de não retidão por parte do órgão ou agente decisor, a substituição não se opera da mesma forma, uma vez que, apenas se verifica a substituição, caso uma das seguintes causas estiverem preenchidas, tal como prevê o artigo 73º, nº1 e nº 2 do CPA: (i) Requerimento de escusa por suspeição requerida pelo próprio órgão ou agente normalmente competente; (i) Dedução de suspeição por parte de qualquer interessado na relação jurídica procedimental.
Os casos de impedimento encontram-se enumerados no nº1 do artigo 69º do CPA, tendo como principais fundamentos: (i) o interesse pessoal no caso em questão; (ii) interesse de familiares como o cônjuge e parentes ou afins em linha reta, parentes na linha colateral até o segundo grau, pessoa com quem viva em condições análogas à dos cônjuges (união de facto) ou qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil; (iii) interesse pessoal ou familiar direto em algum caso semelhante ao que está a ser decidido; (iv) Tenha participado no mesmo procedimento na qualidade de perito, mandatário, ou na emissão de um parecer jurídico, técnico, etc…
O órgão ou agente administrativo deve-se considerar impedido quando preencha algum dos casos previstos no artigo acima mencionado, sendo obrigado, nos termos do artigo 70º do CPA, a comunicar ao seu superior hierárquico ou ao presidente do colegiado, se esse for o caso. Cabe então ao superior hierárquico ou ao presidente do órgão colegial declarar se há ou não impedimento, ouvindo o suspeito de impedimento se tal for considerado necessário. Com a declaração do impedimento, tal como prevê o artigo 72º do CPA, o órgão ou agente impedido é substituído, e tratando de um colegiado, o mesmo prossegue sem o membro impedido, se não houver suplente ou se tal não for possível.
Relativamente aos casos de suspeição, estes encontram enumerados no nº1 do artigo 73º do CPA, tendo como principais fundamentos: (i) interesse familiar em que estejam em causa parentes ou afins em linha reta ou até o terceiro grau da linha colateral ou outras relações para-familiares como a tutela, união de facto ou economia em comum; (ii) existência de uma relação de crédito entre o decisor e o particular; (iii) recebimento de dádivas por parte de um interessado; (iv) existência de uma relação de inimizade ou de forte intimidade entre o particular e o decisor; (v) pendência em juízo ação em que sejam parte o decisor ou pessoa com quem haja uma relação familiar ou para-familiar.
No caso de suspeição, o artigo 74º e seguintes estabelece um procedimento diferente, dado que envolve um pedido de escusa por parte do próprio decisor ou por qualquer interessado no caso, sendo que este último pode pedir que se proceda a uma substituição por suspeição. A averiguação da suspeição cabe nos termos do artigo 75º do CPA, ao superior hierárquico ou, tratando-se de um colegiado, ao presidente do mesmo. Verificado a suspeição, o decisor normalmente competente é substituído por um decisor que não esteja impedido ou não se encontre em uma situação de suspeição.
Conclusão
Por fim, o artigo 76º da CPA estabelece o regime de sanções, sendo que, se um órgão ou agente administrativo que se encontrava impedido ou em alguma situação de escusa e suspeição no momento em que proferiu a decisão, esta pode ser impugnada pelo tribunal, aplicando o desvalor jurídico previsto no nº1 do mesmo artigo, a anulabilidade da atuação administrativa em causa, como atos e contratos públicos. Já de acordo com o nº2 do artigo em comento, o órgão ou agente que omitiu no seu dever de comunicação de impedimento incorre em falta disciplinar grave, no entanto, só se verifica se estiver em causa um relação de subordinação, ou seja, uma relação entre um órgão ou agente administrativo que assume a qualidade de superior hierárquico face a um órgão ou agente administrativo subalterno. A lei nº 27/96, de 1 de agosto também prevê no artigo 8º, nº2, que a violação do princípio da imparcialidade por parte de um membro de um órgão autárquico gera a perda de mandato, sendo que cabe ao Ministério Público propor a ação. O Professor Freitas do Amaral (2018, p.127) denuncia a inexistência de uma legislação análoga a estabelecida na lei nº27/96, de 1 de agosto, aplicável aos demais órgãos e agentes administrativos não-autárquicos, nomeadamente para o Governo, dado que, como não existe hierarquia entre seus membros, não é possível responsabilizar disciplinarmente eventuais violadores do princípio em comento. Sendo assim, de acordo com o Professor há “uma necessidade de atualização do atual regime de garantia da imparcialidade previsto no CPA”, visando essencialmente a luta contra a corrupção, pois nesse caso, a responsabilidade política não é suficiente para tutelar os direitos e interesses dos particulares contra eventuais violações dos princípios gerais de Direito Administrativo como o princípio da imparcialidade.
Guilherme Arthur Soares Silva, nº68178, subturma 15B
Referências:
AMARAL, Diogo Freitas, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 4ª Edição, Editora Almedina, 2018, págs.122-129.
SOUZA, Marcelo Rebelo de, MATOS, André Salgado de, Direito Administrativo Geral, Tomo I, 3ª Edição, Editora Dom Quixote, 2008, págs. 209-212.
Silva, Vasco Pereira, Aulas teóricas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2024.
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