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terça-feira, 28 de novembro de 2023

A conjuntura política atual e a subordinação da Administração Pública ao Direito

 


 A conjuntura política atual e a subordinação da Administração Pública ao Direito

 

 

I.                    Introdução

 

Alegadas irregularidades na concessão de licenças para a exploração de minas de lítio e produção de hidrogénio verde, na ótica do Ministério Público suscetíveis de constituir crimes de prevaricação, de corrupção ativa e passiva de titular de cargo político e de tráfico de influência, levaram à queda de um Governo de maioria absoluta, apenas dois anos após as eleições legislativas.

Às alegadas irregularidades chamou, por seu lado, o primeiro-ministro demissionário atividade política normal do decisor no sentido do desbloqueio de situações para não correr o risco de paralisação da Administração Pública. 

Proponho-me, neste trabalho, equacionar esta perspetiva com a necessidade do cumprimento escrupuloso por parte dos decisores políticos dos princípios do Direito Administrativo no exercício da Administração Pública. Para tal, impõe-se refletir, desde logo, sobre o conceito/s de Administração Pública e aflorar os princípios que balizam esta atividade.

 

 

II.                  Desenvolvimento

 

A)      Os projetos estratégicos que levaram à queda do Governo

 

António Costa apresentou a sua demissão do cargo de primeiro-ministro no passado dia 7 de novembro de 2023, após saber que iria ser alvo de uma investigação por parte do Supremo Tribunal de Justiça para determinar se cometeu algum crime na promoção de vários projetos no setor da energia, nomeadamente relativos à exploração de lítio e hidrogénio.

Em resposta à grave crise institucional provocada pela demissão do primeiro-ministro, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, anunciou a dissolução da Assembleia da República e convocou novas eleições para o dia 10 de março de 2024.

Esta conjuntura culminou assim na queda de um Governo de maioria absoluta no Parlamento, dois anos após as eleições legislativas, de janeiro de 2022, que deram ao Partido Socialista uma maioria absoluta histórica.

Na origem da investigação dirigida pelo Ministério Público estão alegadas irregularidades na concessão de licenças para a exploração de minas de lítio e produção de hidrogénio verde, suscetíveis de constituir crime.

Relativamente às concessões de exploração de lítio, um dos projetos em causa é da autoria da empresa Lusorecursos, que se propõe explorar a mina do Romano, em Montalegre, da qual pretende extrair lítio. “O projeto mais alargado – segundo o jornal ECO(1) –, prevê a construção de uma refinaria de lítio no local e de uma fábrica de reciclagem de baterias, a qual poderia extrair lítio usado e voltar a refiná-lo. Além disso, sendo que a extração de lítio implica também a extrações de outros materiais usados na indústria cerâmica, a Lusorecursos vê espaço para a criação de uma fábrica de cerâmica.

(…) o projeto da empresa deverá atingir os 510 milhões de dólares de volume de negócio ao longo dos 10 anos previstos para a exploração, o que se traduz em cerca de 200 milhões de dólares de lucro (o equivalente a 182 milhões de euros)”, refere o ECO, citando fontes da empresa.

Em 2019, esta empresa celebrou um contrato de concessão de exploração com o Estado, com João Matos Fernandes e João Galamba, respetivamente, Ministro do Ambiente e Secretário de Estado da Energia, a defenderem que, apesar da contestação popular e de polémica na estrutura acionista da empresa (que foi criada três dias antes da assinatura deste contrato), a decisão do Governo limitou-se a cumprir a lei.

A população tem vindo a contestar o projeto, alegando que não só põe em causa o bem-estar, tendo em conta o ruído e a possível contaminação das águas, como também a paisagem e, consequentemente, o turismo na região. Ambientalmente, a maior preocupação tem sido o lobo ibérico, uma espécie protegida que tem o espaço da mina como habitat.

Um outro projeto, que também está a ser investigado, promovido pela Savannah Resources, que se propõe explorar a mina em Boticas, baseia-se num contrato de concessão mineiro de 30 anos, e pretende extrair lítio suficiente para suportar a produção de meio milhão de baterias para veículos elétricos por ano. Ainda de acordo com o Eco, esta empresa refere que o projeto prevê um investimento de 110 milhões na construção de infraestruturas e a criação de 215 empregos diretos e 2000 indiretos. Além disso, revelou que a empresa abriu um processo para avaliar possíveis parcerias (para a compra e exploração do lítio) que já conta com 60 candidaturas.

Quanto ao hidrogénio verde, em 2020 foi anunciado um grande investimento de 1,5 mil milhões de euros nesta área, com o objetivo de implementar um cluster industrial de produção de hidrogénio verde, com base em Sines e vocação exportadora.

Também em Sines, está em construção desde o ano passado, e deverá começar a funcionar em 2024, o Data Center, centro de dados Start Campus, igualmente contemplado nas investigações lideradas pelo Ministério Público. Um complexo de nove edifícios, apoiado em 495 megawatts (MW) de potência, num investimento global de cerca de 5,7 mil milhões de euros.

Estes projetos, que têm em comum o facto de serem apresentados pelo Governo como projetos âncora para a transição energética, estão também no centro do furacão judicial que, tendo como alvo o ministro João Galamba, chegou até ao primeiro-ministro, na medida em que implicou o seu amigo e advogado Diogo Lacerda Machado e o seu chefe de gabinete, Vítor Escária.

 

 

B)                 Os limites do decisor político na Administração Pública

 

O atual tsunami político, que teve na sua origem estes negócios estratégicos em termos ambientais e financeiramente muito relevantes para um país como Portugal, remete-nos  como defendeu Alexandra Leitão, Professora da Faculdade de Direito de Lisboa e deputada do PS(2) – para a questão que passa por saber quem tem legitimidade democrática para tomar decisões politicas que implicam fazer ponderação de interesses e qual a amplitude dessa mesma legitimidade.

A deputada do PS considerou que António Costa na sua declaração ao país, aquando da demissão do cargo de primeiro-ministro, defendeu “Que certas situações, de investimento estrangeiro, mas não só, implicam uma ponderação de interesses públicos que cabe ao decisor político fazer.” Porque – justificou – em democracia quem tem legitimidade para tomar decisões políticas que implicam, em cada momento, fazer ponderação de interesses, entre, por exemplo, urbanismo, ambiente, investimento, todos eles interesses públicos e não privados, e que estão muitas vezes em oposição, naquele momento específico, é o poder político legitimado. Continuou, defendendo, que caso assim não seja, corre-se o risco de que a administração pública fique paralisada, até porque “a burocracia gera opacidade”.  Apesar de subscrever esta defesa de António Costa, Alexandra Leitão advertiu, no entanto, para o facto de que “esta decisão política tem que ser estribada tecnicamente e tem que ser feita nos limites da legislação, nos limites do direito, no limite das regras jurídicas gerais e abstratas.”

 

A defesa desta posição alicerça-se na tomada de decisões políticas, que, na suposta defesa do interesse público, “desbloqueiam” situações que poderão no limite ferir ou violar normas de direito administrativo, nomeadamente os seus princípios. Ora ainda que assim se não entenda, certo é que a atividade política, nomeadamente na perspetiva do processo decisório da Administração Pública, tem que obedecer a princípios estruturantes do Direito Administrativo.

 

 

C)                 A Administração Pública

 

Antes de mais, importa definir Administração Pública, no sentido da função administrativa, que é uma função do Estado, do poder público, que regula e desempenha a tarefa de administrar, tarefa esta que, na perspetiva do Professor Vasco Pereira da Silva(3), corresponde à realidade do Direito Administrativo. Assim, a Administração Pública consiste em satisfazer, de forma continuada, permanente e regular, as necessidades coletivas. O Direito Administrativo corresponde, então, a tudo aquilo que diz respeito à tarefa da Administração Pública. O Professor refere ainda que a Administração Pública pode ser identificada como tarefa, tratando-se de “administração” em letra minúscula ou enquanto entidade orgânica, conjunto de órgãos que desempenham a função administrativa, “Administração” em letra maiúscula. 

 

Do ponto de vista formal, a Administração Pública tem várias formas de atuar. Começou por praticar apenas atos, depois regulamentos e planos, e, só posteriormente, contratos e formas de Direito Privado. Existe um procedimento administrativo que regula o modo como as decisões administrativas são tomadas e que, entre outras regras, prevê que os particulares têm o direito a serem ouvidos (direito de audiência antes de uma decisão), pois são os principais interessados nas decisões administrativas e devem participar nelas, mesmo que sejam decisões unilaterais.

No sentido material, a Administração toma todas as decisões relacionadas com a tarefa de administrar, que consiste em satisfazer de forma regular e consistente as necessidades coletivas, sendo que, ao administrar o Direito, está também, nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, “a criá-lo”.

A Administração no sentido orgânico corresponde aos órgãos, às pessoas coletivas, aos particulares, ou seja, a todas as entidades que participam na função administrativa, que desempenham esta tarefa. Corresponde à Administração Pública em letra maiúscula. 

“Num Estado democrático e de Direito como o nosso, tudo o que se passa no seio da administração é juridicamente relevante.”, salientou o Professor Vasco Pereira da Silva nas suas aulas.

 

A conjuntura política nacional atual que serviu de mote para este trabalho, remete-nos para a temática do Estado Administração, do ponto de vista do Direito Administrativo. O Estado “Administração” é uma pessoa coletiva que exerce a função administrativa. Neste sentido, há que realçar que o Governo é o órgão principal do Estado e da Administração Pública. Portanto, o seu papel não é apenas em relação à administração direta, à administração estadual, mas o Governo também tem um papel de superintendência em relação à administração indireta e um papel de tutela sobre a administração autónoma. A competência Administrativa do Governo é regulada pela Constituição da República Portuguesa (CRP), no seu artigo 199º, enquanto órgão superior da administração estadual, definindo as suas formas de atuação.

 

 

D)                Subordinação da Administração Pública ao Direito

 

A Administração Pública é regida, em todo o mundo atual democrático, por normas jurídicas. “É assim em todo o mundo democrático: a Administração aparece vinculada pelo Direito, sujeita a normas jurídicas obrigatórias e públicas, que têm como destinatários tanto os próprios órgãos e agentes da Administração como os particulares, os cidadãos em geral. É o regime da legalidade democrática.”, salienta o Professor Freitas do Amaral(4) .

De tal forma, que a CRP dedica o título IX da sua parte III à Administração Pública, e consagra, no artigo 266º, que: “1. A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos2. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.”

 

“Encontrando-se o órgão administrativo perante um cenário de alternativas conferido pelo direito que implica a realização de uma escolha, limitando e condicionando essa escolha encontram-se designadamente os princípios gerais relativos ao exercício da função administrativa, como os princípios da prossecução do interesse público, da igualdade, da proporcionalidade, da imparcialidade e da boa fé (artigos 266.º, n.º 2 da Constituição e artigos 4.º, 5.º, 6.º e 6.ºA do CPA).”, reitera igualmente em Acórdão(5) do Tribunal Central Administrativo Sul.

 

Assim fica, desta forma, globalmente consagrado o princípio da submissão da Administração Pública à lei. Toda a atividade administrativa deve subordinar-se ao Direito. Resulta, ainda, deste mesmo princípio, que a própria atividade administrativa em si mesma, assume uma natureza jurídica e que a ordem jurídica atribui aos cidadãos garantias que lhes assegurem o cumprimento da lei pela Administração Pública, na medida em que a atuação da Administração está sujeita ao controlo dos tribunais. 

 

O Professor Vasco Pereira da Silva refere que a Administração é balizada por princípios constitucionais e que existem três momentos na atuação administrativa. Um primeiro de interpretação da norma, um segundo relativo à margem de apreciação da Administração e, por fim, a discricionariedade quanto à decisão, no sentido de existirem diversas soluções. Cada um destes princípios exigiria uma análise individual mais aprofundada, no entanto, limitei-me à definição breve de cada um, na ótica deste trabalho, isto é, dos limites do Direito no exercício da atividade Administrativa por parte do decisor político.

 

 

Princípio de prossecução do interesse público:

 

O primeiro princípio elencado no artigo 266º da CRP é o princípio de prossecução do interesse público, o “princípio motor da Administração Pública”, segundo o Professor Freitas do Amaral(6). O interesse publico é o fim que a Administração Pública deve sempre ter em vista prosseguir. No entanto, deve fazê-lo delimitada por certos valores. Assim, surgem mais dois princípios: o princípio da legalidade e o princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Do nº2 do artigo 266º da CRP decorrem os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé. A Administração Pública é, nestes moldes, fortemente caracterizada por ser detentora de um poder discricionário. Não se trata de um poder arbitrário, mas de um poder legal, jurídico, regulado pelo Direito. O princípio de prossecução do interesse público está previsto no artigo 266º, nº 1, da CRP, na sua primeira parte, que consagra que “A Administração Pública visa a prossecução do interesse público” e ainda no artigo 4º do Código do Procedimento Administrativo (CPA). Este princípio constitui um dos mais importantes limites à livre decisão administrativa e tem vários corolários a ele associados.  A Administração só pode prosseguir o interesse público, tem que fazê-lo obrigatoriamente, e apenas os interesses públicos especificamente definidos por lei para cada atuação administrativa concreta. É, portanto, em regra, a lei que define os interesses públicos a cargo da Administração. Nas palavras do Professor Freitas do Amaral, “Só o interesse público definido por lei pode constituir motivo principalmente determinante de qualquer ato da Administração. Assim, se um órgão da Administração praticar um ato que não tenha por motivo principalmente determinante o interesse público posto por lei a seu cargo, esse ato estará viciado por desvio de poder, e por isso será um ato ilegal, como tal anulável contenciosamente.” Não deixa de ser relevante referir que a obrigação de prosseguir o interesse público exige da Administração Pública que atue de acordo com um dever de boa administração. O princípio da prossecução do interesse público implica a existência deste dever.

 

Princípio da legalidade:

 

O princípio da legalidade surge lado a lado com o propósito da Administração em prosseguir o interesse público, uma vez que esta não o pode fazer de forma arbitrária, mas tem de o fazer de acordo com certos princípios e regras. Este princípio encontra-se consagrado no artigo 266º, nº 2, da CRP: “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei (…).”  O princípio da legalidade abrange, não apenas o respeito pela lei, mas também a subordinação da Administração Pública ao Direito e comporta duas modalidades, que passam pela preferência de lei ou legalidade-limite (nenhum ato de categoria inferior à lei pode contrariar o bloco de legalidade, sob pena de ilegalidade) e a reserva de lei ou legalidade-fundamento (nenhum ato de categoria inferior à lei pode ser praticado sem fundamento no bloco de legalidade). Em síntese, a Administração Pública tem de prosseguir o interesse público em obediência à lei. Um modo especial de configuração do princípio da legalidade administrativa, que para aqui releva, é o poder discricionário da Administração. Importa salientar que não há nenhuma exceção ao princípio da legalidade no poder discricionário da Administração Pública, na medida em que os poderes discricionários surgem normativamente condicionados por regras jurídicas.

 

Princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares:

 

Na sua segunda parte, o artigo 266º, nº 1, da CRP, consagra o princípio do “respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.“ O Professor Freitas do Amaral adota a expressão “dos particulares” em vez de cidadãos, justificando, que estão em causa os direitos e interesses legalmente protegidos de todos os sujeitos de direito, abrangendo a expressão adotada também as pessoas coletivas. A ideia deste princípio, também previsto no artigo 4º, segunda parte, do CPA, passa pela prossecução do interesse público, respeitando os direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Daqui se retira a essência do Direito Administrativo, que se caracteriza, segundo o Professor Freitas do Amaral, pela necessidade permanente de conciliar as exigências do interesse publico com as garantias dos particulares. Os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos(7) referem que “O que o princípio do respeito das posições jurídicas subjetivas dos particulares proíbe é a sua violação, ou seja, a sua afetação com desrespeito pelos parâmetros de juridicidade da atuação administrativa. Assim, não são admissíveis as afetações que não sejam legalmente habilitadas (…)”. Estes autores salientam ainda que “O princípio do respeito pelas posições jurídicas subjetivas dos particulares não tem, assim, autonomia em relação ao princípio da legalidade: trata-se apenas da sua dimensão subjetiva, naturalmente sublinhada pelo papel que os direitos fundamentais desempenham no núcleo duro da Constituição material num Estado de direito democrático.” Pelo que se conclui que, a par do princípio da legalidade, também este constitui um limite à ação da Administração Pública, no sentido em que consubstancia outra forma de assegurar o respeito e de conferir proteção aos direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos dos particulares.

 

 

Princípio da justiça:


Nos termos do disposto no nº 2, do artigo 266º, da CRP, “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.”

Relativamente ao princípio da justiça, consagrado constitucionalmente neste preceito e, ainda, no artigo 8º do CPA, importa referir não o conceito de justiça propriamente dito, mas o dever da Administração Pública em agir em conformidade com a justiça. Este princípio abrangia as ideias de proporcionalidade, igualdade, boa fé e legalidade, que, posteriormente, se autonomizaram. A justiça, atualmente, e na perspetiva do Professor Freitas do Amaral, pode ser definida como “o conjunto de valores que impõem ao Estado e a todos os cidadãos a obrigação de dar a cada um o que lhe é devido em função da dignidade da pessoa humana.” Esta definição pode ser subdivida, sucintamente, em vários elementos: a justiça como sendo um conjunto de valores; os valores que integram o conceito de justiça imporem uma obrigação; a obrigação que decorre da justiça ser a obrigação de dar a cada um o que lhe é devido, em função da dignidade da pessoa humana. A CRP, ao dispor, no artigo 266º, nº2, que a Administração deve respeitar estes quatro princípios, desdobra a ideia de justiça. Todas estas noções estão, assim, fortemente ligadas à de justiça, fazendo parte essencial do seu conceito. Tal é principalmente notório nas ideias de igualdade e de proporcionalidade, uma vez que ser justo é tratar de modo igual o que é igual e não agir excessivamente, no sentido de para além da medida adequada.

 

Princípio da igualdade:


Atualmente, é ponto assente que o princípio da igualdade não se circunscreve à obrigação dos órgãos administrativos e jurisdicionais de aplicarem a lei de modo igual, mas implica essencialmente uma ideia de igualdade na própria lei ou através da lei. Neste sentido, e por ser tão relevante, verificamos a sua inclusão no artigo 266º, nº2, da CRP e também no artigo 6º do CPA: “Nas suas relações com os particulares, a Administração Pública deve reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever ninguém em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.” Assim, a igualdade impõe, de acordo com o Professor Freitas do Amaral, “(…) que se trate de modo igual o que é juridicamente igual e de modo diferente o que é juridicamente diferente, na medida da diferença”, projetando-se, portanto, este princípio nestas duas facetas, de proibir a discriminação e de obrigar à diferenciação.

 

Princípio da proporcionalidade:


Este princípio tão mencionado em toda a nossa Lei Fundamental, é especificamente enunciado para toda a atividade administrativa no artigo 266º, nº 2, da CRP e ainda no artigo 7º do CPA. A proporcionalidade é o princípio segundo o qual a limitação de bens ou interesses privados por atos dos poderes públicos deve ser adequada e necessária aos fins concretos que tais atos prosseguem, bem como tolerável quando confrontada com aqueles fins. Assim, podemos considerar três dimensões deste princípio: a adequação, a necessidade e o equilíbrio. No princípio da proporcionalidade define-se, primeiramente, o fim pretendido com aquela medida e, de seguida, apura-se a relação entre a medida que se idealiza tomar e o fim pretendido. Deste raciocínio são várias as questões que surgem, nomeadamente, saber se se trata da medida adequada para chegar àquele fim ou se o fim a prosseguir justificará de alguma forma os possíveis sacrifícios de interesses particulares que surjam em conflito com o interesse público. Devemos, ainda, procurar distinguir a ideia de proporcionalidade da ideia de igualdade. Como sintetiza o Professor Vitalino Canas, citado por Freitas do Amaral, o princípio da igualdade baseia-se na apreciação de dois tipos legais na sua relação, a sua comparação, já o princípio da proporcionalidade preocupa-se com a verificação de saber se o sacrifício de certos bens ou interesses é adequado, necessário, tolerável, na relação com os bens e interesses que se pretende promover. Se uma medida concreta não for simultaneamente adequada, necessária e equilibrada ao fim tido em vista, ela desrespeita o princípio da proporcionalidade.

 

Princípio da imparcialidade:


O princípio da imparcialidade, previsto nos artigos 266º, nº 2, da CRP e 9º do CPA, foi, segundo Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, durante muito tempo entendido apenas como uma imposição de tratamento isento dos particulares pela administração, no sentido de esta não os poder favorecer ou desfavorecer por razões ligadas aos titulares dos órgãos ou agentes administrativos que estão em concreto na posição de decidir ou atuar. Dispõe hoje o artigo 9º do CPA que “A Administração Pública deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entrem em relação, designadamente, considerando com objetividade todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório e adotando as soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção.” O princípio da imparcialidade tem, ainda,  duas vertentes, uma negativa, na medida em que a imparcialidade traduz a ideia de que os titulares de órgãos e os agentes da Administração Pública estão impedidos de intervir quando o procedimento, ou ato, ou contrato, diga respeito a questões ou pessoas do seu interesse pessoal ( por exemplo familiar) e positiva, uma vez que significa o dever da Administração Pública de ponderar todos os interesses públicos e os interesses privados para o efeito de cada decisão antes da sua adoção, considerando-se, desta forma, parciais os atos ou comportamentos que não tenham sido objeto de uma exaustiva ponderação dos interesses juridicamente protegidos.

 

Princípio da boa fé:


O principio da boa fé, que está também consagrado no artigo 266º, nº 2, da CRP e no artigo 10º do CPA, nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, “alargou o seu âmbito subjetivo de aplicação, de modo a vincular não apenas a administração mas também os particulares que com ela se relacionem”. Este último princípio é especialmente detentor de um elevado grau de abstração, o que não invalida a possibilidade de o concretizar. O Professor Menezes Cordeiro(8) identifica dois subprincípios caracterizadores da boa fé, e que tanto Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, como Freitas do Amaral adotam. Estes autores optam, então, por concretizar o princípio da boa fé tendo por base dois princípios básicos, o princípio da tutela da confiança legítima e o princípio da materialidade subjacente. Sucintamente, e segundo Professor Freitas do Amaral, isto significa que “a boa fé determina a tutela das situações de confiança e procura assegurar a conformidade material - e não apenas formal - das condutas aos objetivos do ordenamento jurídico”.

 

 

III.               CONCLUSÃO

 

Passados 50 anos de democracia em Portugal, está assente que é o poder político resultante de eleições quem tem legitimidade para tomar decisões e que estas implicam ponderação de interesses públicos, que, em determinados momentos, estão muitas vezes em oposição. Mas, a decisão política tem que ser balizada tecnicamente e nos limites da lei e do Direito.

Pelo que se conclui que a Administração Pública deve atuar de acordo com um dever de boa administração, prosseguindo o interesse público especificamente definido por lei para cada atuação administrativa concreta e ainda no cumprimento dos restantes princípios acima referidos.


 

 

IV.               BIBLIOGRAFIA:

 

(1)www.eco.sapo.pt/2023/11/07/litio-hidrogenio-e-dados-os-negocios-na-mira-da-justica/ (Ana Batalha Oliveira, jornal eco de 07/11/2023);

(2) ALEXANDRA LEITÃO, Professora da Faculdade de Direito de Lisboa e deputada do PS, “O Princípio da Incerteza”, CNN, 11 de novembro de 2023;

(3) VASCO PEREIRA DA SILVA, transcrição das Aulas Teóricas, ano letivo 2023/24, FDUL;

(4) DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. I, 3ª edição, Almedina;

(5) www.dgsi.ptAcórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Proc. 572/10.1BELSB, de 01/10/2020, Relatora Ana Celeste Carvalho;

(6) DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. II, 2008, Almedina;

(7) MARCELO REBELO DE SOUSA E ANDRÉ SALGADO DE MATOS, “Direito Administrativo Geral”, Tomo I, 2ª Ed., Dom Quixote, pág. 208;

(8) ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Da boa fé no direito civil”, Almedina.

 

 

 

Maria Ana Gaspar, nº 66164, subturma 15, 2º B

Direito Administrativo: O Segundo Trauma

 

  • Introdução

O Acórdão Blanco, proferido no dia 18 de Fevereiro de 1873, pelo Tribunal de Conflitos francês, foi a primeira tentativa de esclarecer a obrigação de indemnizar, por prejuízos causados a particulares, por parte do Estado, bem como a competência dos tribunais administrativos para julgar conflitos quando se verificar o envolvimento por parte do Estado. 


  • Caso

Consistia no atropelamento de Agnés Blanco, uma criança de 5 anos, por um vagão da Companhia Nacional da Manufatura do Tabaco (CNMT) em Bordéus. Em consequência do atropelamento, a perna da criança teve de ser amputada. Os pais dirigiram-se ao Tribunal de Bordéus, de modo a interpor uma ação de indemnização contra o Estado alegando responsabilidade civil pela conduta dos funcionários. O Tribunal de 1ª Instância determina que não tem competência para a resolução do conflito. Para além disso, esclarece que mesmo que fosse competente, não tinha norma a aplicar ao caso, uma vez que o Código de Napoleão só podia ser aplicado entre iguais, o que claramente não acontecia uma vez que a CNMT era uma empresa pública, pelo que envolvia Administração Pública e, portanto, não havia norma especial a aplicar. Insatisfeitos, os pais dirigem-se à jurisdição administrativa. Importa salientar que, quem os recebeu foi o Presidente da Câmara que se considera, também, incompetente pois está em causa uma operação e não um ato administrativo. Isto evidencia desde logo uma problemática que vai colmatar na tese defendida pelo Senhor Professor Doutor Vasco Pereira da Silva relativamente à existência de dois traumas no Direito Administrativo que, até aos dias de hoje, se têm refletido. O Senhor Professor, esclarece este Acórdão como o segundo trauma do Direito Administrativo, correspondendo ao limite imposto à justiça por parte da Administração, durante o Estado Liberal. Na prática, o primeiro trauma enunciado, esclarece a impossibilidade dos tribunais julgarem a Administração, pelo que esta, exercia autocontrole. Ora isto põe em causa o princípio da separação de poderes que serve de alicerce aos ideais liberais e Estado Democrático, que se opunha ao Estado de Polícia, autoritário. Na verdade, apesar dos ideais liberais defendidos, o princípio da separação de poderes não produzia integralmente os efeitos devidos, como verificado. Desta forma, a administração durante o Estado Liberal, caracterizava-se também por ser autoritária e assemelhar-se em grande parte ao Estado de Polícia cujo objetivo seria afastar. O segundo trauma, caracterizado pelo Acórdão em questão, demonstra que a Administração atua para pôr em causa os direitos dos particulares (administração agressiva). 

Dado que ambas as jurisdições se consideram incompetentes, o Tribunal de Conflitos intervém para decidir qual a jurisdição competente, como mencionado. O Acórdão Blanco determina que a competência é da jurisdição administrativa, ainda que esclareça que não há norma aplicável e a necessidade de criação de uma norma especial neste tipo de conflitos. 

Por fim, o Conselho de Estado determina conceder uma pensão vitalícia a Agnés Blanco. 


  • Conclusão

O presente caso tem extrema importância para o Direito Administrativo, uma vez que se estabelece a existência de direitos por parte dos particulares perante a Administração. Mais importante que isso: reconhece-se a ideia de sujeito de direito, fundamental para o Estado de Direito Democrático e para o caminho que o Direito Administrativo veio a percorrer, mais tarde no Estado Social e no Estado Pós-Social. 

Apesar da distinção do Senhor Professor Doutor Vasco da Silva Pereira referente aos traumas, à primeira vista, o segundo trauma poderá considerar-se um seguimento do primeiro, e não isoladamente um trauma, uma vez que parece apresentar melhorias, já que a Administração foi de facto condenada pela conduta dos quatro funcionários da Companhia Nacional de Manufatura de Tabaco. Ainda assim, a gravidade de todo o processo, permite a distinção clara entre os dois traumas. Por outras palavras, este trauma poderá ser considerado como tal, uma vez que os pais de Agnés, em busca da justiça, tiveram incessantemente de a procurar, o que não deveria acontecer. Desta forma, o segundo trauma é, verdadeiramente um trauma, não só por evidenciar a despreocupação, ainda evidente, por parte da Administração com os direitos dos particulares, mas pela própria situação de, mediante um Estado fundado em princípios liberais que deveria, sobretudo atender às liberdades individuais, pôr em causa essas mesmas liberdades, quando o Estado comparece no conflito.


  • Bibliografia

Pereira da Silva, V. (2016). O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo (2ª edição, 2009 ed.)


Comentário à Resolução do Conselho de Ministros – n.º132/2023 de 25 de outubro

             Ao abrigo do artigo 66º da Constituição, todos temos direito a um ambiente de vida ecologicamente equilibrado e é dever do Estado, com a devida colaboração dos cidadãos, assegurar o direito ao ambiente com um desenvolvimento sustentável; ainda mais concretamente, de acordo com a alínea g) do artigo 199º, cabe ao Governo praticar todos os atos e tomar todas as providências necessárias à promoção do desenvolvimento económico-social e à satisfação das necessidades coletivas.

No passado dia 25 de outubro, foi aprovada a Resolução do Conselho de Ministros n.º132/2023, que teve como objetivo definir os critérios ecológicos aplicáveis aos contratos celebrados pelas entidades da Administração Direta e Indireta do Estado. O presente post, na esperança de conseguir transmitir alguns conhecimentos de Direito Administrativo e Direito do Ambiente, servirá de humilde comentário a esta Resolução, que produzirá os seus efeitos a partir do segundo trimestre de 2024, sendo assim aplicável aos procedimentos que forem iniciados a partir dessa mesma data.

 

A ECO360 e a necessidade deste diploma

 

Inicialmente, é feita uma alusão à ECO360 - a Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas para o período 2030 – que fora aprovada anteriormente pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 13/2023, de 10 de fevereiro. Parece ser interessante falarmos brevemente sobre esta figura: a Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas (ENCPE).

Importa-nos falar do seu nascimento e progresso. Foi criada em 2007 a primeira ENCPE através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 65/2007, de 7 de maio, com fins definidos para o período compreendido entre 2008 e 2010. Este instrumento teve um peso bastante relevante no Sistema Nacional de Compras Públicas (SNCP), tendo-o modelado com a incorporação inovadora de alguns critérios ambientais em acordos-quadro para categorias de bens e serviços e, à luz disso, influenciou positivamente os processos de contratação realizados pelas entidades públicas nesse período de tempo. Assim, em 2016, foi aprovada uma nova ENCPE pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 38/2016, de 29 de julho: a ENCPE 2020. Esta nova versão foi mais inclusiva, teve uma área de aplicação mais alargada e por isso evidenciou-se mais a sua eficácia em comparação com a anterior.

Após esta breve e modesta explicação, parece claro: a ECO360 é, à semelhança das versões anteriores, nada mais, nada menos, que uma ferramenta que fora criada para disciplinar as entidades integradoras da Administração Direta e Indireta do Estado, o setor empresarial do Estado e a oferta de produtos, serviços e obras, com vista a reduzir os seus impactos ambientais. Com a mesma, o Governo pretende que a contratação pública sustentável seja um ponto fulcral da decisão de produção e consumo sustentável e que se fortaleça a Contratação Pública Ecológica – o que ajudará fazer cumprir os objetivos das políticas ambientais, a promover um modelo de desenvolvimento económico sustentável que permita riqueza e emprego e, ainda, alimentar uma conduta sustentável de excelência da Administração Pública que influencie as atitudes das empresas e dos cidadãos.

A Resolução do Conselho de Ministros n.º 132/2023 nasceu da necessidade de serem criadas condições que efetivassem um caráter obrigatório da adoção dos critérios ecológicos esboçados pela ECO360; critérios estes que, adicionalmente, também são acolhidos por outros diplomas que se alinham com este, conforme mencionado na Resolução, como o Plano de Recuperação e Resiliência – que prevê a modernização do Sistema Nacional de Compras Públicas, a introdução de critérios ecológicos obrigatórios a ter em conta na aquisição de bens e serviços e a integração de materiais biológicos e sustentáveis –, o Código dos Contratos Públicos – que trata como princípios específicos da contratação pública a sustentabilidade e o cumprimento das normas aplicáveis em matéria ambiental, juntamente com outras normas de Direito Internacional – e a Lei de Bases do Clima – que consolida objetivos, princípios e obrigações para os diferentes níveis de governação para a ação climática através de políticas públicas e instaura novas disposições em termos de política climática.

A presente Resolução visa conseguir assim, manifestamente, a concretização da ECO360, a prossecução da sustentabilidade, o cumprimento dos objetivos das políticas ambientais, e contribuir para a eliminação de constrangimentos e obstáculos à valorização dos recursos biológicos para o desenvolvimento da bioindústria sustentável e circular.

 

Aspetos iniciais

 

Já terei mencionado, até aqui, que estes critérios serão aplicáveis a todos os contratos celebrados pela Administração Pública (Direta e Indireta) do Estado - resta falarmos das entidades que fazem parte dela.

Como já tivemos oportunidade de aprender nas aulas, a Administração Direta do Estado -regulada pela Lei n.º 4/2004, de 15 de janeiro, que define os princípios e normas a que obedece a sua organização - engloba toda a atividade administrativa prosseguida diretamente pelos próprios serviços administrativos do Estado, que estabelecem entre si uma relação hierárquica. Distinguem-se, dentro dela, os órgãos centrais – que têm competência em todo o território nacional – e os órgãos periféricos – cuja competência se limita a uma área circunscrita (sendo que estes últimos podem, ainda, ser classificados como internos ou externos). Os principais órgãos centrais são os Ministérios, as Direções-Gerais, as Direções Regionais, os Gabinetes e as Secretarias-Gerais.

A Administração Indireta é aquela que continua a prosseguir os fins do Estado mas é realizada por outras entidades que não fazem parte do Estado. O Professor Doutor Paulo Otero chamava a estas entidades, nas suas aulas teóricas, de “pessoas coletivas instrumentalizadas”:  têm personalidade jurídica própria e autonomia (administrativa e financeira), sendo responsáveis pelos seus atos. A Administração Indireta do Estado tem uma parte Pública e uma parte Privada; integram a Administração Indireta Pública do Estado, manifestamente, os Institutos Públicos e as Entidades Públicas Empresariais. Os Institutos Públicos (regulados pela Lei n.º 3/2004, de 15 de janeiro, que configura a Lei Quadro dos Institutos Públicos) são pessoas coletivas sem fins lucrativos que se repartem entre serviços personalizados e fundações públicas; as Entidades Públicas Empresariais (regidas pelo Decreto-Lei n.º 133/2013, de 03 de outubro), por sua vez, consistem em empresas públicas concretizadas sob forma jurídico-pública. 

Será igualmente importante entender o que é um critério de adjudicação. Um critério de adjudicação é o método que uma entidade adjudicante – que será a parte contratante – define e utiliza para avaliar as várias propostas apresentadas pelos concorrentes num procedimento de contratação pública e optar por aquela que for economicamente mais vantajosa num dado contrato público. O Código dos Contratos Públicos, no seu artigo 74º, prevê que o critério de adjudicação pode ter uma de duas modalidades: multifator – sendo o critério de adjudicação densificado por um conjunto de fatores, e eventuais subfatores, correspondentes a diversos aspetos da execução do contrato a celebrar – ou monofator – sendo o critério de adjudicação densificado por um fator correspondente a um único aspeto da execução do contrato a celebrar, designadamente o preço.

Nos princípios gerais, alerta-se para a preferência, no ato da contratação pública, pela modalidade multifator e pela inclusão de fatores de sustentabilidade ambiental, pela criação de standards mínimos a nível de sustentabilidade ambiental nas prestações e pelas prestações certificadas por sistemas mais reconhecidos e confiáveis.

 

O conteúdo da Resolução e os princípios que o fundamentam  

 

          Partindo para os critérios ecológicos em específico, em vários pontos, a modalidade multifator do critério de adjudicação é apresentada como obrigatória: a entidade tem de utilizá-la, a não ser que isso implique a existência de uma restrição notória da concorrência. Logo na primeira tipologia de contratos (os contratos de aquisição de peças de vestuário), surgem critérios ecológicos eventuais, relativos a aspetos na execução do contrato e nas especificações técnicas – sendo que este tipo de critérios não é minimamente obrigatório –, mas antes disso, por exemplo, vemos cinco fatores do critério de adjudicação e, enquanto os critérios relativos à Produção Biológica são de natureza voluntária – isto é, a entidade só está obrigada à adoção do critério caso opte pela adoção de critérios ecológicos  –, todos os outros são recomendáveis – o que significa que a aplicação só pode ser dispensada mediante fundamentação.  

A maioria – senão a totalidade – dos critérios presentes nesta Resolução tem como base, como se poderá concluir, um princípio fundamental de Direito do Ambiente: o princípio da prevenção, que encontra o seu fundamento legal na alínea a) do artigo 66º/2 da Constituição. Este princípio reside na necessidade de o Estado agir de forma preventiva de modo a controlar a poluição, evitando o seu aumento e o alastramento dos seus efeitos negativos no meio ambiente. Torna-se mais identificável e evidente, por exemplo, nos critérios ecológicos que foram criados relativamente aos contratos de aquisição de veículos e contratos de aluguer operacional de veículos: a ponderação do custo da exploração do consumo de energia gerado pelo veículo durante o seu tempo estimado de vida, do custo relativo ao consumo de combustíveis fósseis, do custo da exploração das emissões poluentes e do custo do nível de emissões poluentes, bem como a fixação de um nível máximo de emissões poluentes para veículos com motorização a combustão, em especial para emissões de CO2. Com estas regras – todas elas obrigatórias – o Governo ambiciona reduzir substancialmente a queima de combustíveis fósseis, que representa nos dias de hoje 87% das emissões globais de CO2 e, precisamente, a evitar que a atividade administrativa acabe por gerar lesões ambientais ainda mais sérias do que aquelas que já temos e são por nós conhecidas. Nesta linha de pensamento, foram também criadas regras acerca da produção de eletricidade através de fontes de energia renováveis para os contratos de aquisição de eletricidade (que incluem a aquisição para postos públicos de eletricidade para mobilidade elétrica) e da capacidade para a produção de sistemas solares fotovoltaicos (para os contratos de aquisição de serviços de certificação energética, auditoria energética e projeto e de aquisição e instalação de sistema fotovoltaico de autoconsumo).

Mas a ratio do princípio da prevenção, como elucida o Professor Doutor Vasco Pereira da Silva na obra de sua autoria Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente, será evitar a produção de efeitos danosos para o ambiente, não servindo o mesmo para confrontar lesões já ocorridas. Para reagir face a estas últimas, entra em ação o princípio do poluidor-pagador, explicitado no artigo 174º/2 do Tratado da União Europeia e protegido pela Constituição, uma vez que é um resultado essencial e direto da norma da alínea h) do seu artigo 66º/2. A referida alínea consagra a obrigação do Estado de garantir que a política fiscal compatibiliza o desenvolvimento com a proteção do ambiente e da qualidade de vida – e a forma de concretizar isto passará, fundamentalmente, pela responsabilização a nível fiscal dos das entidades que lucram com uma dada atividade por elas exercida que traz consequências ambientais e prejudica, desta forma, a sociedade no seu todo. Não me alongarei acerca deste princípio, uma vez que não tem tanta incidência na Resolução que é protagonista deste post. Direi apenas que são diretrizes como as dispostas no âmbito da execução dos contratos de aquisição de serviços de certificação energética, auditoria energética e projeto e de aquisição e instalação de sistema fotovoltaico de autoconsumo que abrem portas à sua concretização, mantendo o proponente ciente de que tem de cumprir toda a legislação ambiental aplicável, de que será responsável por garantir o cumprimento integral das medidas de prevenção e mitigação ambiental  (alíneas a) e b)) e de que será ele a entidade vista como produtora e ficará responsável pelos resíduos que criar – deixando em aberto a eventualidade de estes resíduos virem a causar danos ambientais, no caso de não serem tomadas as diligências acertadas, e o proponente vir a ser responsabilizado por esses danos. A atribuição financeira que este preceito retrata deverá abrigar não só os danos causados, mas também as medidas preventivas que auxiliem ao entrave ou minimização de condutas semelhantes de risco para o ambiente, e os custos da reconstituição da situação, na medida em que esta for possível – considerando que, embora seja concebível agir de forma a combater e tentar reduzir os prejuízos que a dita atividade terá provocado no campo ambiental, não será possível neutraliza-los na sua totalidade em muitos casos, diria que estas medidas têm, a meu ver, um caráter maioritariamente compensatório; é também percetível um sentido sancionatório, na medida em que as entidades tentarão reduzir os seus impactos ambientais para não terem de pagar estas compensações financeiras.

Um outro princípio fundamental com preceito constitucional em matéria do ambiente é o princípio do aproveitamento racional dos recursos disponíveis, que reside na alínea d) do artigo 66º/2 da CRP. Concretiza-se em critérios como o da obtenção de madeira através de florestas com certificado de gestão sustentável (que é um critério ecológico obrigatório relativo a contratos de aquisição de madeira e cortiça e contratos de empreitada de obras públicas que envolvam a utilização de madeira e cortiça) –  este é essencial na medida em que esta matéria-prima é um recurso limitado e não renovável. As práticas nestas florestas diferenciam-se, para lá de se alinharem com a legislação aplicável, pela conservação da biodiversidade e pelo maior controlo e uso mínimo de químicos, obtendo uma produção mais sustentável. Ao obrigar à adoção de critérios ambientais, como este, na tomada de decisões por parte das entidades públicas, há a intenção de alertar para a escassez dos bens e interditar atividades que levem ao esbanjamento ou ao desgaste sério dos recursos naturais de que ainda dispomos (pretende-se, para além disso, alguma seriedade e transparência dos proponentes, no critério seguinte, tendo estes de comprovar a origem das matérias). O mesmo sucede em vários outros pontos da Resolução, como na menção da utilização de um teor mínimo de fibras recicladas na execução de contratos de aquisição de peças vestuário (sem prejuízo de este critério não ser absolutamente obrigatório, sendo recomendável) e nas medidas acerca do papel impostas para os contratos de aquisição de papel para fotocópia e impressão.

Falemos agora do quarto (e último) princípio fundamental ambiental que tem sede na nossa Constituição: o princípio do desenvolvimento sustentável, presente também no artigo 66º/2. Este preceito faz exigir que as decisões jurídicas de desenvolvimento económico sejam bem fundamentadas a nível ecológico; é crucial que sejam tomados em linha de consideração os danos ecológicos que uma determinada medida possa trazer e que não sejam apenas vistas as vantagens económicas que dela pudessem advir. Esta ideia está presente logo desde o início, com o estabelecimento da natureza recomendável dos critérios ecológicos: exigir a uma entidade pública que fundamente a não adoção de determinado critério é, exatamente, obrigá-la a refletir, a ponderar os custos ecológicos da sua atividade e fazer com que esta não os possa sacrificar de forma arbitrária.

É notória, por fim, a preocupação com a consciencialização dos cidadãos, presente em diretrizes como a realização de um mínimo de uma ação de formação de trabalhadores por ano e a sensibilização de clientes com vista à prevenção do desperdício alimentar – no âmbito dos contratos de aquisição de produtos alimentares, serviço de catering e serviços de venda automática –, e a exigência de realização de uma ação de formação e sensibilização dos seus trabalhadores, por ano, sobre boas práticas ambientais – no contexto dos contratos de aquisição de serviços de higiene e limpeza.

 

Considerações finais

 

É de referir que o acatamento de todos os critérios ecológicos aqui desenvolvidos será acautelado pelo conjunto de sujeitos que já fiscalizam e garantem, por norma, o cumprimento das normas aplicáveis à contratação pública: serão estes, com fundamento legal nos artigos 454º-A e 454º-B do Código dos Contratos Públicos, o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, o Tribunal de Contas, a Inspeção-Geral de Finanças e todas as outras entidades que forem dotadas de competências de inspeção e de controlo interno.

Como já dei a entender anteriormente, a utilização dos critérios ecológicos aqui presentes nos contratos públicos da Administração Pública apenas se aplicará aos procedimentos pré-contratuais e contratos que forem iniciados a partir do dia 1 de abril do próximo ano (o 1º dia útil do 2º trimestre de 2024).

Não obstante de tudo o que foi aqui abordado, a aplicação dos critérios ecológicos aos contratos públicos da Administração Pública do Estado não tem um peso absoluto. A aplicação dos critérios não poderá pôr em causa a aplicabilidade das normas técnicas vigentes em matéria de ambiente, saúde e segurança.

Para finalizar: sem esta última deixa, ficaria por reforçar a marca importantíssima que nos deixam os princípios constitucionais trabalhados ao longo deste post. Com eles, torna-se possível a visão, nada menos que justa, de que os atos que implicarem danos sérios no meio ambiente possam estar feridos de inconstitucionalidade.

 

Marta Cordeiro, n.º 65994


Bibliografia e Webgrafia


DA SILVA, Vasco Pereira (2002). Verde Cor de Direito – Lições de Direito do Ambiente. Coimbra, Livraria Almedina, 1ª Edição.

DIAS, José Eduardo Figueiredo, OLIVEIRA, Fernanda Paula (2010). Noções Fundamentais de Direito Administrativo. Coimbra, Livraria Almedina, 2ª Edição.

RAIMUNDO, Miguel Assis (2013). A Formação dos Contratos Públicos – uma Concorrência Ajustada ao Interesse Público

https://dre.tretas.org/dre/5528632/resolucao-do-conselho-de-ministros-132-2023-de-25-de-outubro

Legal_Update_Definicao_dos_Criterios_Ecologicos_na_Contratacao_Publica.pdf (cnmf.pt)

https://files.dre.pt/1s/2023/02/03000/0019300224.pdf

florestas com certificação de gestão sustentável - Procurar (bing.com)

Queima de combustíveis fósseis representa 87% das emissões globais de CO2, diz relatório | Energia e Ciência | Um só Planeta (globo.com)

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