A conjuntura política atual e a subordinação da Administração Pública ao Direito
I. Introdução
Alegadas irregularidades na concessão de licenças para a exploração de minas de lítio e produção de hidrogénio verde, na ótica do Ministério Público suscetíveis de constituir crimes de prevaricação, de corrupção ativa e passiva de titular de cargo político e de tráfico de influência, levaram à queda de um Governo de maioria absoluta, apenas dois anos após as eleições legislativas.
Às alegadas irregularidades chamou, por seu lado, o primeiro-ministro demissionário atividade política normal do decisor no sentido do desbloqueio de situações para não correr o risco de paralisação da Administração Pública.
Proponho-me, neste trabalho, equacionar esta perspetiva com a necessidade do cumprimento escrupuloso por parte dos decisores políticos dos princípios do Direito Administrativo no exercício da Administração Pública. Para tal, impõe-se refletir, desde logo, sobre o conceito/s de Administração Pública e aflorar os princípios que balizam esta atividade.
II. Desenvolvimento
A) Os projetos estratégicos que levaram à queda do Governo
António Costa apresentou a sua demissão do cargo de primeiro-ministro no passado dia 7 de novembro de 2023, após saber que iria ser alvo de uma investigação por parte do Supremo Tribunal de Justiça para determinar se cometeu algum crime na promoção de vários projetos no setor da energia, nomeadamente relativos à exploração de lítio e hidrogénio.
Em resposta à grave crise institucional provocada pela demissão do primeiro-ministro, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, anunciou a dissolução da Assembleia da República e convocou novas eleições para o dia 10 de março de 2024.
Esta conjuntura culminou assim na queda de um Governo de maioria absoluta no Parlamento, dois anos após as eleições legislativas, de janeiro de 2022, que deram ao Partido Socialista uma maioria absoluta histórica.
Na origem da investigação dirigida pelo Ministério Público estão alegadas irregularidades na concessão de licenças para a exploração de minas de lítio e produção de hidrogénio verde, suscetíveis de constituir crime.
Relativamente às concessões de exploração de lítio, um dos projetos em causa é da autoria da empresa Lusorecursos, que se propõe explorar a mina do Romano, em Montalegre, da qual pretende extrair lítio. “O projeto mais alargado – segundo o jornal ECO(1) –, prevê a construção de uma refinaria de lítio no local e de uma fábrica de reciclagem de baterias, a qual poderia extrair lítio usado e voltar a refiná-lo. Além disso, sendo que a extração de lítio implica também a extrações de outros materiais usados na indústria cerâmica, a Lusorecursos vê espaço para a criação de uma fábrica de cerâmica.
(…) o projeto da empresa deverá atingir os 510 milhões de dólares de volume de negócio ao longo dos 10 anos previstos para a exploração, o que se traduz em cerca de 200 milhões de dólares de lucro (o equivalente a 182 milhões de euros)”, refere o ECO, citando fontes da empresa.
Em 2019, esta empresa celebrou um contrato de concessão de exploração com o Estado, com João Matos Fernandes e João Galamba, respetivamente, Ministro do Ambiente e Secretário de Estado da Energia, a defenderem que, apesar da contestação popular e de polémica na estrutura acionista da empresa (que foi criada três dias antes da assinatura deste contrato), a decisão do Governo limitou-se a cumprir a lei.
A população tem vindo a contestar o projeto, alegando que não só põe em causa o bem-estar, tendo em conta o ruído e a possível contaminação das águas, como também a paisagem e, consequentemente, o turismo na região. Ambientalmente, a maior preocupação tem sido o lobo ibérico, uma espécie protegida que tem o espaço da mina como habitat.
Um outro projeto, que também está a ser investigado, promovido pela Savannah Resources, que se propõe explorar a mina em Boticas, baseia-se num contrato de concessão mineiro de 30 anos, e pretende extrair lítio suficiente para suportar a produção de meio milhão de baterias para veículos elétricos por ano. Ainda de acordo com o Eco, esta empresa refere que o projeto prevê um investimento de 110 milhões na construção de infraestruturas e a criação de 215 empregos diretos e 2000 indiretos. Além disso, revelou que a empresa abriu um processo para avaliar possíveis parcerias (para a compra e exploração do lítio) que já conta com 60 candidaturas.
Quanto ao hidrogénio verde, em 2020 foi anunciado um grande investimento de 1,5 mil milhões de euros nesta área, com o objetivo de implementar um cluster industrial de produção de hidrogénio verde, com base em Sines e vocação exportadora.
Também em Sines, está em construção desde o ano passado, e deverá começar a funcionar em 2024, o Data Center, centro de dados Start Campus, igualmente contemplado nas investigações lideradas pelo Ministério Público. Um complexo de nove edifícios, apoiado em 495 megawatts (MW) de potência, num investimento global de cerca de 5,7 mil milhões de euros.
Estes projetos, que têm em comum o facto de serem apresentados pelo Governo como projetos âncora para a transição energética, estão também no centro do furacão judicial que, tendo como alvo o ministro João Galamba, chegou até ao primeiro-ministro, na medida em que implicou o seu amigo e advogado Diogo Lacerda Machado e o seu chefe de gabinete, Vítor Escária.
B) Os limites do decisor político na Administração Pública
O atual tsunami político, que teve na sua origem estes negócios estratégicos em termos ambientais e financeiramente muito relevantes para um país como Portugal, remete-nos – como defendeu Alexandra Leitão, Professora da Faculdade de Direito de Lisboa e deputada do PS(2) – para a questão que passa por saber quem tem legitimidade democrática para tomar decisões politicas que implicam fazer ponderação de interesses e qual a amplitude dessa mesma legitimidade.
A deputada do PS considerou que António Costa na sua declaração ao país, aquando da demissão do cargo de primeiro-ministro, defendeu “Que certas situações, de investimento estrangeiro, mas não só, implicam uma ponderação de interesses públicos que cabe ao decisor político fazer.” Porque – justificou – em democracia quem tem legitimidade para tomar decisões políticas que implicam, em cada momento, fazer ponderação de interesses, entre, por exemplo, urbanismo, ambiente, investimento, todos eles interesses públicos e não privados, e que estão muitas vezes em oposição, naquele momento específico, é o poder político legitimado. Continuou, defendendo, que caso assim não seja, corre-se o risco de que a administração pública fique paralisada, até porque “a burocracia gera opacidade”. Apesar de subscrever esta defesa de António Costa, Alexandra Leitão advertiu, no entanto, para o facto de que “esta decisão política tem que ser estribada tecnicamente e tem que ser feita nos limites da legislação, nos limites do direito, no limite das regras jurídicas gerais e abstratas.”
A defesa desta posição alicerça-se na tomada de decisões políticas, que, na suposta defesa do interesse público, “desbloqueiam” situações que poderão no limite ferir ou violar normas de direito administrativo, nomeadamente os seus princípios. Ora ainda que assim se não entenda, certo é que a atividade política, nomeadamente na perspetiva do processo decisório da Administração Pública, tem que obedecer a princípios estruturantes do Direito Administrativo.
C) A Administração Pública
Antes de mais, importa definir Administração Pública, no sentido da função administrativa, que é uma função do Estado, do poder público, que regula e desempenha a tarefa de administrar, tarefa esta que, na perspetiva do Professor Vasco Pereira da Silva(3), corresponde à realidade do Direito Administrativo. Assim, a Administração Pública consiste em satisfazer, de forma continuada, permanente e regular, as necessidades coletivas. O Direito Administrativo corresponde, então, a tudo aquilo que diz respeito à tarefa da Administração Pública. O Professor refere ainda que a Administração Pública pode ser identificada como tarefa, tratando-se de “administração” em letra minúscula ou enquanto entidade orgânica, conjunto de órgãos que desempenham a função administrativa, “Administração” em letra maiúscula.
Do ponto de vista formal, a Administração Pública tem várias formas de atuar. Começou por praticar apenas atos, depois regulamentos e planos, e, só posteriormente, contratos e formas de Direito Privado. Existe um procedimento administrativo que regula o modo como as decisões administrativas são tomadas e que, entre outras regras, prevê que os particulares têm o direito a serem ouvidos (direito de audiência antes de uma decisão), pois são os principais interessados nas decisões administrativas e devem participar nelas, mesmo que sejam decisões unilaterais.
No sentido material, a Administração toma todas as decisões relacionadas com a tarefa de administrar, que consiste em satisfazer de forma regular e consistente as necessidades coletivas, sendo que, ao administrar o Direito, está também, nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, “a criá-lo”.
A Administração no sentido orgânico corresponde aos órgãos, às pessoas coletivas, aos particulares, ou seja, a todas as entidades que participam na função administrativa, que desempenham esta tarefa. Corresponde à Administração Pública em letra maiúscula.
“Num Estado democrático e de Direito como o nosso, tudo o que se passa no seio da administração é juridicamente relevante.”, salientou o Professor Vasco Pereira da Silva nas suas aulas.
A conjuntura política nacional atual que serviu de mote para este trabalho, remete-nos para a temática do Estado Administração, do ponto de vista do Direito Administrativo. O Estado “Administração” é uma pessoa coletiva que exerce a função administrativa. Neste sentido, há que realçar que o Governo é o órgão principal do Estado e da Administração Pública. Portanto, o seu papel não é apenas em relação à administração direta, à administração estadual, mas o Governo também tem um papel de superintendência em relação à administração indireta e um papel de tutela sobre a administração autónoma. A competência Administrativa do Governo é regulada pela Constituição da República Portuguesa (CRP), no seu artigo 199º, enquanto órgão superior da administração estadual, definindo as suas formas de atuação.
D) Subordinação da Administração Pública ao Direito
A Administração Pública é regida, em todo o mundo atual democrático, por normas jurídicas. “É assim em todo o mundo democrático: a Administração aparece vinculada pelo Direito, sujeita a normas jurídicas obrigatórias e públicas, que têm como destinatários tanto os próprios órgãos e agentes da Administração como os particulares, os cidadãos em geral. É o regime da legalidade democrática.”, salienta o Professor Freitas do Amaral(4) .
De tal forma, que a CRP dedica o título IX da sua parte III à Administração Pública, e consagra, no artigo 266º, que: “1. A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. 2. Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.”
“Encontrando-se o órgão administrativo perante um cenário de alternativas conferido pelo direito que implica a realização de uma escolha, limitando e condicionando essa escolha encontram-se designadamente os princípios gerais relativos ao exercício da função administrativa, como os princípios da prossecução do interesse público, da igualdade, da proporcionalidade, da imparcialidade e da boa fé (artigos 266.º, n.º 2 da Constituição e artigos 4.º, 5.º, 6.º e 6.ºA do CPA).”, reitera igualmente em Acórdão(5) do Tribunal Central Administrativo Sul.
Assim fica, desta forma, globalmente consagrado o princípio da submissão da Administração Pública à lei. Toda a atividade administrativa deve subordinar-se ao Direito. Resulta, ainda, deste mesmo princípio, que a própria atividade administrativa em si mesma, assume uma natureza jurídica e que a ordem jurídica atribui aos cidadãos garantias que lhes assegurem o cumprimento da lei pela Administração Pública, na medida em que a atuação da Administração está sujeita ao controlo dos tribunais.
O Professor Vasco Pereira da Silva refere que a Administração é balizada por princípios constitucionais e que existem três momentos na atuação administrativa. Um primeiro de interpretação da norma, um segundo relativo à margem de apreciação da Administração e, por fim, a discricionariedade quanto à decisão, no sentido de existirem diversas soluções. Cada um destes princípios exigiria uma análise individual mais aprofundada, no entanto, limitei-me à definição breve de cada um, na ótica deste trabalho, isto é, dos limites do Direito no exercício da atividade Administrativa por parte do decisor político.
Princípio de prossecução do interesse público:
O primeiro princípio elencado no artigo 266º da CRP é o princípio de prossecução do interesse público, o “princípio motor da Administração Pública”, segundo o Professor Freitas do Amaral(6). O interesse publico é o fim que a Administração Pública deve sempre ter em vista prosseguir. No entanto, deve fazê-lo delimitada por certos valores. Assim, surgem mais dois princípios: o princípio da legalidade e o princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Do nº2 do artigo 266º da CRP decorrem os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé. A Administração Pública é, nestes moldes, fortemente caracterizada por ser detentora de um poder discricionário. Não se trata de um poder arbitrário, mas de um poder legal, jurídico, regulado pelo Direito. O princípio de prossecução do interesse público está previsto no artigo 266º, nº 1, da CRP, na sua primeira parte, que consagra que “A Administração Pública visa a prossecução do interesse público” e ainda no artigo 4º do Código do Procedimento Administrativo (CPA). Este princípio constitui um dos mais importantes limites à livre decisão administrativa e tem vários corolários a ele associados. A Administração só pode prosseguir o interesse público, tem que fazê-lo obrigatoriamente, e apenas os interesses públicos especificamente definidos por lei para cada atuação administrativa concreta. É, portanto, em regra, a lei que define os interesses públicos a cargo da Administração. Nas palavras do Professor Freitas do Amaral, “Só o interesse público definido por lei pode constituir motivo principalmente determinante de qualquer ato da Administração. Assim, se um órgão da Administração praticar um ato que não tenha por motivo principalmente determinante o interesse público posto por lei a seu cargo, esse ato estará viciado por desvio de poder, e por isso será um ato ilegal, como tal anulável contenciosamente.” Não deixa de ser relevante referir que a obrigação de prosseguir o interesse público exige da Administração Pública que atue de acordo com um dever de boa administração. O princípio da prossecução do interesse público implica a existência deste dever.
Princípio da legalidade:
O princípio da legalidade surge lado a lado com o propósito da Administração em prosseguir o interesse público, uma vez que esta não o pode fazer de forma arbitrária, mas tem de o fazer de acordo com certos princípios e regras. Este princípio encontra-se consagrado no artigo 266º, nº 2, da CRP: “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei (…).” O princípio da legalidade abrange, não apenas o respeito pela lei, mas também a subordinação da Administração Pública ao Direito e comporta duas modalidades, que passam pela preferência de lei ou legalidade-limite (nenhum ato de categoria inferior à lei pode contrariar o bloco de legalidade, sob pena de ilegalidade) e a reserva de lei ou legalidade-fundamento (nenhum ato de categoria inferior à lei pode ser praticado sem fundamento no bloco de legalidade). Em síntese, a Administração Pública tem de prosseguir o interesse público em obediência à lei. Um modo especial de configuração do princípio da legalidade administrativa, que para aqui releva, é o poder discricionário da Administração. Importa salientar que não há nenhuma exceção ao princípio da legalidade no poder discricionário da Administração Pública, na medida em que os poderes discricionários surgem normativamente condicionados por regras jurídicas.
Princípio do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares:
Na sua segunda parte, o artigo 266º, nº 1, da CRP, consagra o princípio do “respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.“ O Professor Freitas do Amaral adota a expressão “dos particulares” em vez de cidadãos, justificando, que estão em causa os direitos e interesses legalmente protegidos de todos os sujeitos de direito, abrangendo a expressão adotada também as pessoas coletivas. A ideia deste princípio, também previsto no artigo 4º, segunda parte, do CPA, passa pela prossecução do interesse público, respeitando os direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Daqui se retira a essência do Direito Administrativo, que se caracteriza, segundo o Professor Freitas do Amaral, pela necessidade permanente de conciliar as exigências do interesse publico com as garantias dos particulares. Os Professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos(7) referem que “O que o princípio do respeito das posições jurídicas subjetivas dos particulares proíbe é a sua violação, ou seja, a sua afetação com desrespeito pelos parâmetros de juridicidade da atuação administrativa. Assim, não são admissíveis as afetações que não sejam legalmente habilitadas (…)”. Estes autores salientam ainda que “O princípio do respeito pelas posições jurídicas subjetivas dos particulares não tem, assim, autonomia em relação ao princípio da legalidade: trata-se apenas da sua dimensão subjetiva, naturalmente sublinhada pelo papel que os direitos fundamentais desempenham no núcleo duro da Constituição material num Estado de direito democrático.” Pelo que se conclui que, a par do princípio da legalidade, também este constitui um limite à ação da Administração Pública, no sentido em que consubstancia outra forma de assegurar o respeito e de conferir proteção aos direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos dos particulares.
Princípio da justiça:
Nos termos do disposto no nº 2, do artigo 266º, da CRP, “Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.”
Relativamente ao princípio da justiça, consagrado constitucionalmente neste preceito e, ainda, no artigo 8º do CPA, importa referir não o conceito de justiça propriamente dito, mas o dever da Administração Pública em agir em conformidade com a justiça. Este princípio abrangia as ideias de proporcionalidade, igualdade, boa fé e legalidade, que, posteriormente, se autonomizaram. A justiça, atualmente, e na perspetiva do Professor Freitas do Amaral, pode ser definida como “o conjunto de valores que impõem ao Estado e a todos os cidadãos a obrigação de dar a cada um o que lhe é devido em função da dignidade da pessoa humana.” Esta definição pode ser subdivida, sucintamente, em vários elementos: a justiça como sendo um conjunto de valores; os valores que integram o conceito de justiça imporem uma obrigação; a obrigação que decorre da justiça ser a obrigação de dar a cada um o que lhe é devido, em função da dignidade da pessoa humana. A CRP, ao dispor, no artigo 266º, nº2, que a Administração deve respeitar estes quatro princípios, desdobra a ideia de justiça. Todas estas noções estão, assim, fortemente ligadas à de justiça, fazendo parte essencial do seu conceito. Tal é principalmente notório nas ideias de igualdade e de proporcionalidade, uma vez que ser justo é tratar de modo igual o que é igual e não agir excessivamente, no sentido de para além da medida adequada.
Princípio da igualdade:
Atualmente, é ponto assente que o princípio da igualdade não se circunscreve à obrigação dos órgãos administrativos e jurisdicionais de aplicarem a lei de modo igual, mas implica essencialmente uma ideia de igualdade na própria lei ou através da lei. Neste sentido, e por ser tão relevante, verificamos a sua inclusão no artigo 266º, nº2, da CRP e também no artigo 6º do CPA: “Nas suas relações com os particulares, a Administração Pública deve reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever ninguém em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.” Assim, a igualdade impõe, de acordo com o Professor Freitas do Amaral, “(…) que se trate de modo igual o que é juridicamente igual e de modo diferente o que é juridicamente diferente, na medida da diferença”, projetando-se, portanto, este princípio nestas duas facetas, de proibir a discriminação e de obrigar à diferenciação.
Princípio da proporcionalidade:
Este princípio tão mencionado em toda a nossa Lei Fundamental, é especificamente enunciado para toda a atividade administrativa no artigo 266º, nº 2, da CRP e ainda no artigo 7º do CPA. A proporcionalidade é o princípio segundo o qual a limitação de bens ou interesses privados por atos dos poderes públicos deve ser adequada e necessária aos fins concretos que tais atos prosseguem, bem como tolerável quando confrontada com aqueles fins. Assim, podemos considerar três dimensões deste princípio: a adequação, a necessidade e o equilíbrio. No princípio da proporcionalidade define-se, primeiramente, o fim pretendido com aquela medida e, de seguida, apura-se a relação entre a medida que se idealiza tomar e o fim pretendido. Deste raciocínio são várias as questões que surgem, nomeadamente, saber se se trata da medida adequada para chegar àquele fim ou se o fim a prosseguir justificará de alguma forma os possíveis sacrifícios de interesses particulares que surjam em conflito com o interesse público. Devemos, ainda, procurar distinguir a ideia de proporcionalidade da ideia de igualdade. Como sintetiza o Professor Vitalino Canas, citado por Freitas do Amaral, o princípio da igualdade baseia-se na apreciação de dois tipos legais na sua relação, a sua comparação, já o princípio da proporcionalidade preocupa-se com a verificação de saber se o sacrifício de certos bens ou interesses é adequado, necessário, tolerável, na relação com os bens e interesses que se pretende promover. Se uma medida concreta não for simultaneamente adequada, necessária e equilibrada ao fim tido em vista, ela desrespeita o princípio da proporcionalidade.
Princípio da imparcialidade:
O princípio da imparcialidade, previsto nos artigos 266º, nº 2, da CRP e 9º do CPA, foi, segundo Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, durante muito tempo entendido apenas como uma imposição de tratamento isento dos particulares pela administração, no sentido de esta não os poder favorecer ou desfavorecer por razões ligadas aos titulares dos órgãos ou agentes administrativos que estão em concreto na posição de decidir ou atuar. Dispõe hoje o artigo 9º do CPA que “A Administração Pública deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entrem em relação, designadamente, considerando com objetividade todos e apenas os interesses relevantes no contexto decisório e adotando as soluções organizatórias e procedimentais indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção.” O princípio da imparcialidade tem, ainda, duas vertentes, uma negativa, na medida em que a imparcialidade traduz a ideia de que os titulares de órgãos e os agentes da Administração Pública estão impedidos de intervir quando o procedimento, ou ato, ou contrato, diga respeito a questões ou pessoas do seu interesse pessoal ( por exemplo familiar) e positiva, uma vez que significa o dever da Administração Pública de ponderar todos os interesses públicos e os interesses privados para o efeito de cada decisão antes da sua adoção, considerando-se, desta forma, parciais os atos ou comportamentos que não tenham sido objeto de uma exaustiva ponderação dos interesses juridicamente protegidos.
Princípio da boa fé:
O principio da boa fé, que está também consagrado no artigo 266º, nº 2, da CRP e no artigo 10º do CPA, nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, “alargou o seu âmbito subjetivo de aplicação, de modo a vincular não apenas a administração mas também os particulares que com ela se relacionem”. Este último princípio é especialmente detentor de um elevado grau de abstração, o que não invalida a possibilidade de o concretizar. O Professor Menezes Cordeiro(8) identifica dois subprincípios caracterizadores da boa fé, e que tanto Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, como Freitas do Amaral adotam. Estes autores optam, então, por concretizar o princípio da boa fé tendo por base dois princípios básicos, o princípio da tutela da confiança legítima e o princípio da materialidade subjacente. Sucintamente, e segundo Professor Freitas do Amaral, isto significa que “a boa fé determina a tutela das situações de confiança e procura assegurar a conformidade material - e não apenas formal - das condutas aos objetivos do ordenamento jurídico”.
III. CONCLUSÃO
Passados 50 anos de democracia em Portugal, está assente que é o poder político resultante de eleições quem tem legitimidade para tomar decisões e que estas implicam ponderação de interesses públicos, que, em determinados momentos, estão muitas vezes em oposição. Mas, a decisão política tem que ser balizada tecnicamente e nos limites da lei e do Direito.
Pelo que se conclui que a Administração Pública deve atuar de acordo com um dever de boa administração, prosseguindo o interesse público especificamente definido por lei para cada atuação administrativa concreta e ainda no cumprimento dos restantes princípios acima referidos.
IV. BIBLIOGRAFIA:
(1)www.eco.sapo.pt/2023/11/07/litio-hidrogenio-e-dados-os-negocios-na-mira-da-justica/ (Ana Batalha Oliveira, jornal eco de 07/11/2023);
(2) ALEXANDRA LEITÃO, Professora da Faculdade de Direito de Lisboa e deputada do PS, “O Princípio da Incerteza”, CNN, 11 de novembro de 2023;
(3) VASCO PEREIRA DA SILVA, transcrição das Aulas Teóricas, ano letivo 2023/24, FDUL;
(4) DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. I, 3ª edição, Almedina;
(5) www.dgsi.pt: Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Proc. 572/10.1BELSB, de 01/10/2020, Relatora Ana Celeste Carvalho;
(6) DIOGO FREITAS DO AMARAL, “Curso de Direito Administrativo”, Vol. II, 2008, Almedina;
(7) MARCELO REBELO DE SOUSA E ANDRÉ SALGADO DE MATOS, “Direito Administrativo Geral”, Tomo I, 2ª Ed., Dom Quixote, pág. 208;
(8) ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Da boa fé no direito civil”, Almedina.
Maria Ana Gaspar, nº 66164, subturma 15, 2º B