Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de
27-02-2025 (Proc. 01686/24.6BELSB)
Introdução
O Direito é um rio que corre entre normas e justiça, e o
acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 27 de fevereiro de 2025,
processo n.º 01686/24.6BELSB, relatora Ana Celeste Carvalho, revela a tensão
entre formalismo processual e tutela do mérito.
O caso aborda a ilegitimidade passiva singular, tema
técnico mas com grande relevância prática: para contestar um ato
administrativo, é essencial que a ação seja dirigida à entidade correta.
O presente trabalho tem por objetivo comentar e analisar o
referido acórdão, explorando o seu enquadramento jurídico, as soluções adotadas
pelo STA e os princípios que dele irradiam. Mais do que uma dissecação fria,
pretende-se aqui compreender o espírito da decisão — o modo como ela equilibra
o dever de sanação dos vícios processuais com a inevitável rigidez dos
pressupostos processuais.
Como se verá, o Tribunal reafirmou que a ilegitimidade
passiva singular não é sanável: quando o autor dirige a ação contra uma
entidade que não tem qualquer relação jurídica com o ato impugnado, o erro é
fatal. O processo, nesse ponto, não é um campo de correção, mas um espelho que
devolve ao autor o reflexo do seu próprio lapso.
II. Enquadramento Jurídico
1. Pressupostos processuais
Pressupostos processuais são condições essenciais para que o
tribunal possa apreciar o mérito. Entre eles, destaca-se a legitimidade das
partes: a correspondência entre o sujeito processual e a relação jurídica
controvertida. No contencioso administrativo, o artigo 10.º do CPTA define a
entidade que deve ser demandada, assegurando que o processo reflita a
verdadeira relação jurídica.
2. Ilegitimidade passiva singular
A ilegitimidade singular passiva ocorre quando o autor dirige
a ação contra uma entidade estranha ao litígio, sem vínculo jurídico com
o ato. A doutrina e a jurisprudência distinguem entre:
- erro
de órgão ou departamento (sanável);
- erro
de representação do Estado (sanável);
- erro
quanto à pessoa coletiva distinta (insanável).
A reforma do CPTA de 2015 reforçou o papel do juiz como
gestor do processo, permitindo corrigir lapsos formais, mas sem alterar a
essência da relação jurídica.
3. Tensão entre formalismo e justiça
Há um equilíbrio delicado: o formalismo protege a segurança
jurídica, enquanto a efetividade processual exige acesso real ao direito. O
acórdão posiciona-se firmemente em favor da coerência normativa, preservando a
legitimidade como pilar do processo.
III. Análise do Acórdão
1. Contexto factual
O autor demandou o Ministério da Administração Interna
(MAI) para impugnar ato praticado pela Agência para a Integração,
Migrações e Asilo, I.P. (AIMA, I.P.). O tribunal de primeira instância
considerou o MAI parte ilegítima e absolveu-o. O recurso procurava a correção
do erro, invocando o dever de gestão processual.
2. Fundamentação do STA
O STA reafirma o dever do juiz de promover a saneação de
vícios processuais, mas distingue:
- Erro
de órgão ou representação do Estado: sanável;
- Erro
quanto à pessoa coletiva distinta: insanável.
No caso, a MAI não tinha relação com o ato impugnado. Assim,
a ilegitimidade singular passiva não podia ser corrigida, e o processo contra o
MAI foi extinto.
O Tribunal equilibra o dever de gestão processual com o
princípio da legalidade, evitando que o processo se transforme em instrumento
de improviso administrativo. O formalismo aqui atua como um farol,
garantindo estabilidade e previsibilidade.
IV. Apreciação Crítica
Entre formalismo e efetividade
O acórdão evidencia a tensão entre formalismo e tutela do
mérito. A opção do STA em favor da legitimidade rigorosa garante a segurança
jurídica, mas pode sacrificar o acesso à justiça em casos de erro formal.
Pode argumentar-se que, ao declarar a ilegitimidade
insuprível, o STA afasta o princípio da decisão de mérito consagrado no artigo
278.º, n.º 3 do CPC, e, em certa medida, o princípio constitucional do acesso
ao direito (art. 20.º da Constituição).
Porém, há também quem sustente que permitir a substituição da
entidade demandada seria subverter o próprio conceito de legitimidade
processual. Afinal, não se trata de um erro material na designação, mas da
escolha de uma entidade diferente — e, nesse caso, corrigir o erro seria abrir
a porta à reconfiguração da instância por via judicial.
2. Dimensão simbólica e literária
A ilegitimidade passiva funciona como uma ausência de
vínculo: o autor fala para uma entidade que não é interlocutora do litígio.
O processo, personificado, tropeça à entrada, impedido de avançar por uma porta
que só a entidade correta detém a chave.
3. Crítica construtiva
Embora juridicamente coerente, a decisão evidencia a rigidez
do sistema. Eventualmente, uma maior flexibilidade legislativa permitiria
corrigir erros claros de identificação sem perda de instância, conciliando
formalismo e justiça material.
4. Expressões idiomáticas e o
pulsar da língua
É curioso como, mesmo em contexto
jurídico, o acórdão parece sugerir que “cada qual deve responder pelo que faz”.
O velho ditado popular — “cada macaco no seu galho” — ganha aqui uma
ressonância jurídica: cada entidade responde pelos seus próprios atos, e não
pelos de outra.
Esta fusão entre linguagem
técnica e senso comum é um dos méritos do direito administrativo português: a
forma e o fundo dialogam, ainda que em registos diferentes.
Em termos dogmáticos, o acórdão é
coerente, sólido e bem fundamentado. A linha de separação entre erro sanável e
ilegitimidade insuprível é clara e consistente com a jurisprudência anterior.
Contudo, a decisão também mostra os limites do sistema: a rigidez que, em nome
da forma, pode sacrificar a justiça concreta.
O acórdão de 27-02-2025 é, portanto, uma lição de prudência e de rigor. Mas é também um lembrete de que o direito processual, por mais perfeito que seja, nunca poderá eliminar o drama humano do erro.
O acórdão de 27 de fevereiro de
2025 é, no fundo, um retrato fiel do Direito Administrativo português
contemporâneo: técnico, denso, coerente mas também humano nas suas limitações.
Entre a razão e a emoção, o Tribunal escolheu a razão, ciente de que é ela que
garante a estabilidade do sistema.
O acórdão 01686/24.6BELSB reafirma a insupribilidade da
ilegitimidade singular passiva, destacando a importância da legitimidade
processual. Ao escolher o rigor normativo sobre a flexibilidade do mérito, o
STA protege a coerência do sistema administrativo.
Simbolicamente, o processo é como um rio que só flui quando o
leito é correto: sem legitimidade, a corrente estagna. O acórdão é um lembrete
de que o Direito, embora técnico e rígido, continua a pulsar sob a forma,
preservando ordem, previsibilidade e justiça potencial.
Auria Carvalho
Nº aluna: 38425.
4º ano , SUB 1
- Código
de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 2025.
- Código
de Processo Civil (CPC).
- Constituição
da República Portuguesa, art. 20.º.
- Acórdão
do STA, 27-02-2025, Proc. 01686/24.6BELSB.
- Vieira
de Andrade, A Justiça Administrativa, Almedina, 2022.
- Antunes
Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra, 2012.