A transferência de competências para os órgãos municipais:
A
Lei n. º50/2018, de 16 de agosto, a Lei-Quadro da Transferência de Competências
para as Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais constituiu-se, em termos
genéricos, como um pequeno pesadelo para as autarquias um pouco por todo o
país.
Esta
lei pretende, a grosso modo, positivar o princípio da descentralização,
famigerado, apregoado e ciclicamente adiado, quase para as calendas, por
sucessivos governos ao longo dos tempos da decorrência da instituição do regime
democrático no país, e que, em abono da verdade ainda hoje não se encontra
verdadeira e completamente concretizado, estando mesmo longe de o poder vir a
ser. Poder-se-á, com alguma propriedade sustentar que há falta de “coragem ou
vontade” entenda-se política, para a real levada à prática da concretização
plena da descentralização. Deste modo, esta transferência de competências
constitui-se como um pequeníssimo primeiro passo, direi mesmo, um mal menor na
visão centralista do poder egocentricamente centrado na esfera da capital, no
desiderato que se sonhava concretizar com uma real descentralização, quiçá, uma
verdadeira e plena regionalização.
Por
conseguinte, a descentralização, neste contexto específico, pretende-se
idilicamente projetar/antever como podendo ser a aproximação dos cidadãos aos
serviços prestados e/ou disponibilizados pelo Estado.
Parte-se
do princípio, comprovadamente factual assuma-se, pelo que dever-se-ia ter a
ousadia, talvez antes a sensatez, de que, sempre que são entregues competências
ao poder local, este executa com mais eficácia e eficiência o perspetivado, por
um cem número de razões que facilmente podem ser aduzidas, destacando-se me
particular, a indesmentível evidência de estarmos perante um poder
substancialmente mais escrutinado e/ou fiscalizado, quanto mais não
seja pela ínfima proximidade com quem tem o poder decisório de escrutínio,
vangloriando ou penalizando o desempenho tido. Naturalmente que ao escrito,
acresce a fiscalização periódica de um órgão institucionalmente consagrado, que
são as Assembleias Municipais. No âmago a grande substância vantajosa da descentralização
é a insofismável evidência de poder servir melhor as pessoas, os seus direitos,
face à proximidade decisória e escrutinadora, cáustica e atenta dos munícipes
de cada um dos 308 municípios portugueses.
A
real efetivação do processo toma os desígnios práticos com a publicação no dia
27 de fevereiro do corrente ano, o decreto-lei n.º 16/2023, que “Concretiza o
processo de descentralização de competências para os municípios e para as
entidades intermunicipais no domínio da educação”, um dos quatro pilares das
transferências de competências. As distintas áreas alvo deste procedimento são
vastas e diversificadas, nomeadamente ensino, saúde, ação social e património.
Serão nestes distintos domínios que estão adstritas algumas das competências
que as autarquias vão passar a ter após a aprovação da lei.
Na
área da educação será exclusivamente a contratação do pessoal não docente,
vulgo trabalhadores assistentes operacionais, bem como a possibilidade de gerir
a construção e a manutenção dos estabelecimentos de ensino.
Na
área da saúde, reafirma-se a competência da contratação e gestão dos
assistentes operacionais, a acresce a demanda de se ter a veleidade de poder
construir e gerir centros de saúde.
Na
ação social, passa-se a ter mais competências de ação social, especial e
particularmente no combate à pobreza.
Na
área do património, é dada a primazia de proceder à avaliação e reavaliação de
imóveis, a gestão das áreas portuárias, para as câmaras que as possuem nos seus
territórios e, além disso, passam inclusive a fiscalizar as infrações nas
praias e na orla costeira.
De
igual modo a legislação prevê o alargamento de competências, quer para as
comunidades intermunicipais, quer para as juntas de freguesia.
Numa
primeira análise crítica assumo, no meu modesto entendimento que, esta
transferência enferma de uma pena capital, passível de ser traduzida num
aforismo popular, poder-se-á dizer “uma cabeça, duas sentenças”. Ou seja, a
probabilidade da existência de conflitos perante um organismo gerido a par, com
distintas autonomias e poderes instituídos, muito dificilmente poderá trazer
proventos. Eis um exemplo concreto, na educação, que pode atestar esta luta
bicéfala. Uma diretora(o) prevê a realização de uma determinada tarefa para um
determinado assistente operacional. Por seu turno o presidente de câmara,
idealiza um outro tipo de tarefa distinta num lugar distinto para esse mesmo
assistente operacional. Quem tem a primazia decisória, se o bom senso institucional
não imperar? Quem superintende localmente? Ou quem processa o
salário?
Independentemente
da resposta à questiúncula formulada, importa ter a noção clara de que, a mais
competências acresce e implica a assunção de mais responsabilidades. Terão as
autarquias capacidade, meios humanos, engenho e arte para, assegurar todo este acréscimo,
feito a destempo e por imposição? Seguramente haverá autarquias que terão
capacidade para uma descentralização até maior do que a que é proposta, outras
(provavelmente uma maioria), seguramente, com os meios financeiros e materiais
que lhe serão atribuídos, não terão qualquer facilidade em cumprir essa missão.
As que possivelmente terão maiores dificuldades, terão a transferência de
competências apoiada na “muleta” das comunidades intermunicipais, ganhando por
isso efeito escala, com uma maior estrutura e “arcaboiço” para acarretar o
elevado peso desses novos encargos. Um exemplo muito prático é o caso de vários
centros de saúde que servem mais do que um concelho. Essa competência deverá
ser entregue à comunidade intermunicipal, em detrimento de ser apenas
responsabilidade de um concelho.
Propositadamente,
não abordei até outro ponto do vértice problemático que está diretamente
associado com os respetivos envelopes financeiros, adstritos a cada um dos
municípios e à capacidade negocial, ou não, de cada um dos presidentes dos
mesmos. Este outro aspeto é uma verdadeira caixa de pandora, passível de ser
perscrutada e entendida ao longo do lapso temporal do seu decurso e
implementação.
Parece-me
poder haver uma elação óbvia a poder ser retirada desta análise: há maior
probabilidade da obtenção de melhores resultados quanto maior for a real
descentralização perspetivada para o país. Não se pode governar, solucionando
problemas que têm uma escala superior a uma freguesia através do universo de
uma freguesia, mas por outro lado não se pode governar/solucionar um problema
de proximidade, se o olharmos através de uma escala nacional. É uma ideia
obtusa, sem o mínimo de exequibilidade.
Seguramente
há serviços que podem ser melhor prestados ao nível das freguesias do que ao
nível de municípios (exemplos: uma limpeza de estradas, cuidado geral estético
da freguesia, entre tantos outros), há outros que ao nível municipal farão todo
o sentido, portanto caso seja possível, deveria ter o arrojo de defender
desejável, transferir essas competências e, cuja única oposição seja o poder
central, essas mesmas deveriam ser real e efetivamente efetuadas/transferidas.
A 8 de novembro de 1998 o país “foi
a votos” num referendo que faz uma questão simples, porventura demasiado
rebuscada, logo pouco clara: Regionalizar, sim ou não? A ala esquerda do nosso
país maioritariamente defendeu o sim, a ala direita um grande e redondo não,
comprovadamente o claro vencedor por larga maioria.
Acreditava-se,
provavelmente com amplo discernimento, que Portugal não teria a maturidade para
assumir a regionalização, porventura ainda hoje ainda não existem condições
para o mesmo. Não se quer e não se sabe se a maioria de igual forma quererá.
Quando mais não seja, pelo simples facto de sermos por natureza avessos a
processos de mudança do status quo reinante.
Municipalização
e regionalização são dois conceitos amplamente diferentes (ainda que possam ser
convergentes e complementares entre si) que, não devem ser confundidos, aliás,
acredito que para se atingir um grau de maturação e consolidação sólida da hipotética
regionalização, o pequeno/grande passo da municipalização tem de ser bem
consolidado em primeira instância, de modo a poder-se retirar o poder excessivo
do Governo, arquitetando-se a descentralização do estado, como expôs
o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, atual Presidente da República e ex-líder
do PSD, em declarações sobre os resultados do referendo de então.
Mais
e maior proximidade, maior eficácia dos serviços públicos e aumento da
participação das autarquias locais na receita pública, esta é, assumidamente a
promessa do Governo. A questão que se coloca deverá ser, como pode a mesma ser
cumprida se muitas vezes não é dado o devido apoio às pequenas autarquias que
tentam fazer tanto com tão pouco. Como é que um pequeno município do interior
se vê de repente obrigado a lidar com 3/4 áreas importantíssimas de
estruturação da nossa sociedade, com fundos limitados, tentando agradar a uma
população que, inúmeras vezes (de forma “leviana”, só porque sim, nas
politiquices locais) manifesta discordância com qualquer tipo de decisão
tomada, seja de acordo com os gostos dos mesmos ou contrário, depende das suas
ações e ajuda para o dia a dia.
Observemos,
a título de exemplo da Câmara Municipal do Seixal que, para cumprir com a
transferência de competências e garantir o normal funcionamento dos
estabelecimentos de ensino necessitaria de uma verba de 17 Milhões de euros/ano
(segundo um estudo realizado) tendo em conta as necessidades reais dos
estabelecimentos de ensino e que foi de forma clara transmitido ao Governo.
Como, de forma transparente, expõe Paulo Silva, Presidente da Câmara do
Seixal, “Os valores transferidos pelo Governo Central são claramente
insuficientes. O Governo reforça o apoio com 148 000€, 1.857€/ano. No 1º
semestre do ano o município do Seixal empregou mais 1 milhão de euros do que
recebeu”.
Este
município é apenas um, de um cem número de vários no país que, passam por estas
dificuldades, e se observamos que o Seixal passa por isto o que será de
Municípios como Carregal do Sal, Aguiar da Beira, Sernancelhe, perdidos no
interior profundo de Portugal, nos erradamente e causticamente apelidados
territórios de baixa densidade?
É,
gritante e por demais evidente, a necessidade de apoio concreto (revendo por
exemplo as diretrizes pré-históricas de distribuição do FEF) a estes
municípios, de modo a poder dar de uma vez por todas o grande passo para a
descentralização concreta e por sua vez ao patamar subsequente da
Regionalização.
Bibliografia:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=2932&tabela=leis&ficha=1
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto-lei/16-2023-207881789
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto-lei/21-2019-118748848?_ts=1700095100671
https://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/sheet/7/o-principio-da-subsidiariedade
Alexandrino, José Melo (2016), “Os Processos de
Reforma do Poder Local em Portugal: Desenvolvimentos Recentes”, in II Jornadas
de Direito Municipal Comparado Lusófono, Lisboa/Praia, AAFDL – Associação
Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 49-63 [Alexandrino, J. M. (2016)];
Amaral, Diogo Freitas do (2014), Curso de Direito
Administrativo, vol. I, 3.ª ed., Coimbra, Almedina [Amaral, D. F. (2014)]
Pedro Figueiredo
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