Semestres

quarta-feira, 15 de maio de 2024

A transferência de competências para os órgãos municipais- Pedro Figueiredo 68034

 A transferência de competências para os órgãos municipais:

A Lei n. º50/2018, de 16 de agosto, a Lei-Quadro da Transferência de Competências para as Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais constituiu-se, em termos genéricos, como um pequeno pesadelo para as autarquias um pouco por todo o país.

Esta lei pretende, a grosso modo, positivar o princípio da descentralização, famigerado, apregoado e ciclicamente adiado, quase para as calendas, por sucessivos governos ao longo dos tempos da decorrência da instituição do regime democrático no país, e que, em abono da verdade ainda hoje não se encontra verdadeira e completamente concretizado, estando mesmo longe de o poder vir a ser. Poder-se-á, com alguma propriedade sustentar que há falta de “coragem ou vontade” entenda-se política, para a real levada à prática da concretização plena da descentralização. Deste modo, esta transferência de competências constitui-se como um pequeníssimo primeiro passo, direi mesmo, um mal menor na visão centralista do poder egocentricamente centrado na esfera da capital, no desiderato que se sonhava concretizar com uma real descentralização, quiçá, uma verdadeira e plena regionalização.

   Por conseguinte, a descentralização, neste contexto específico, pretende-se idilicamente projetar/antever como podendo ser a aproximação dos cidadãos aos serviços prestados e/ou disponibilizados pelo Estado.

Parte-se do princípio, comprovadamente factual assuma-se, pelo que dever-se-ia ter a ousadia, talvez antes a sensatez, de que, sempre que são entregues competências ao poder local, este executa com mais eficácia e eficiência o perspetivado, por um cem número de razões que facilmente podem ser aduzidas, destacando-se me particular, a indesmentível evidência de estarmos perante um poder substancialmente mais escrutinado e/ou fiscalizado, quanto  mais não seja pela ínfima proximidade com quem tem o poder decisório de escrutínio, vangloriando ou penalizando o desempenho tido. Naturalmente que ao escrito, acresce a fiscalização periódica de um órgão institucionalmente consagrado, que são as Assembleias Municipais. No âmago a grande substância vantajosa da descentralização é a insofismável evidência de poder servir melhor as pessoas, os seus direitos, face à proximidade decisória e escrutinadora, cáustica e atenta dos munícipes de cada um dos 308 municípios portugueses.

A real efetivação do processo toma os desígnios práticos com a publicação no dia 27 de fevereiro do corrente ano, o decreto-lei n.º 16/2023, que “Concretiza o processo de descentralização de competências para os municípios e para as entidades intermunicipais no domínio da educação”, um dos quatro pilares das transferências de competências. As distintas áreas alvo deste procedimento são vastas e diversificadas, nomeadamente ensino, saúde, ação social e património. Serão nestes distintos domínios que estão adstritas algumas das competências que as autarquias vão passar a ter após a aprovação da lei.

Na área da educação será exclusivamente a contratação do pessoal não docente, vulgo trabalhadores assistentes operacionais, bem como a possibilidade de gerir a construção e a manutenção dos estabelecimentos de ensino.

Na área da saúde, reafirma-se a competência da contratação e gestão dos assistentes operacionais, a acresce a demanda de se ter a veleidade de poder construir e gerir centros de saúde.

Na ação social, passa-se a ter mais competências de ação social, especial e particularmente no combate à pobreza.

Na área do património, é dada a primazia de proceder à avaliação e reavaliação de imóveis, a gestão das áreas portuárias, para as câmaras que as possuem nos seus territórios e, além disso, passam inclusive a fiscalizar as infrações nas praias e na orla costeira.

De igual modo a legislação prevê o alargamento de competências, quer para as comunidades intermunicipais, quer para as juntas de freguesia.

Numa primeira análise crítica assumo, no meu modesto entendimento que, esta transferência enferma de uma pena capital, passível de ser traduzida num aforismo popular, poder-se-á dizer “uma cabeça, duas sentenças”. Ou seja, a probabilidade da existência de conflitos perante um organismo gerido a par, com distintas autonomias e poderes instituídos, muito dificilmente poderá trazer proventos. Eis um exemplo concreto, na educação, que pode atestar esta luta bicéfala. Uma diretora(o) prevê a realização de uma determinada tarefa para um determinado assistente operacional. Por seu turno o presidente de câmara, idealiza um outro tipo de tarefa distinta num lugar distinto para esse mesmo assistente operacional. Quem tem a primazia decisória, se o bom senso institucional não imperar? Quem superintende localmente? Ou quem processa o salário?       

Independentemente da resposta à questiúncula formulada, importa ter a noção clara de que, a mais competências acresce e implica a assunção de mais responsabilidades. Terão as autarquias capacidade, meios humanos, engenho e arte para, assegurar todo este acréscimo, feito a destempo e por imposição? Seguramente haverá autarquias que terão capacidade para uma descentralização até maior do que a que é proposta, outras (provavelmente uma maioria), seguramente, com os meios financeiros e materiais que lhe serão atribuídos, não terão qualquer facilidade em cumprir essa missão. As que possivelmente terão maiores dificuldades, terão a transferência de competências apoiada na “muleta” das comunidades intermunicipais, ganhando por isso efeito escala, com uma maior estrutura e “arcaboiço” para acarretar o elevado peso desses novos encargos. Um exemplo muito prático é o caso de vários centros de saúde que servem mais do que um concelho. Essa competência deverá ser entregue à comunidade intermunicipal, em detrimento de ser apenas responsabilidade de um concelho.

Propositadamente, não abordei até outro ponto do vértice problemático que está diretamente associado com os respetivos envelopes financeiros, adstritos a cada um dos municípios e à capacidade negocial, ou não, de cada um dos presidentes dos mesmos. Este outro aspeto é uma verdadeira caixa de pandora, passível de ser perscrutada e entendida ao longo do lapso temporal do seu decurso e implementação. 

Parece-me poder haver uma elação óbvia a poder ser retirada desta análise: há maior probabilidade da obtenção de melhores resultados quanto maior for a real descentralização perspetivada para o país. Não se pode governar, solucionando problemas que têm uma escala superior a uma freguesia através do universo de uma freguesia, mas por outro lado não se pode governar/solucionar um problema de proximidade, se o olharmos através de uma escala nacional. É uma ideia obtusa, sem o mínimo de exequibilidade.

Seguramente há serviços que podem ser melhor prestados ao nível das freguesias do que ao nível de municípios (exemplos: uma limpeza de estradas, cuidado geral estético da freguesia, entre tantos outros), há outros que ao nível municipal farão todo o sentido, portanto caso seja possível, deveria ter o arrojo de defender desejável, transferir essas competências e, cuja única oposição seja o poder central, essas mesmas deveriam ser real e efetivamente efetuadas/transferidas.

A 8 de novembro de 1998 o país “foi a votos” num referendo que faz uma questão simples, porventura demasiado rebuscada, logo pouco clara: Regionalizar, sim ou não? A ala esquerda do nosso país maioritariamente defendeu o sim, a ala direita um grande e redondo não, comprovadamente o claro vencedor por larga maioria.

Acreditava-se, provavelmente com amplo discernimento, que Portugal não teria a maturidade para assumir a regionalização, porventura ainda hoje ainda não existem condições para o mesmo. Não se quer e não se sabe se a maioria de igual forma quererá. Quando mais não seja, pelo simples facto de sermos por natureza avessos a processos de mudança do status quo reinante.

Municipalização e regionalização são dois conceitos amplamente diferentes (ainda que possam ser convergentes e complementares entre si) que, não devem ser confundidos, aliás, acredito que para se atingir um grau de maturação e consolidação sólida da hipotética regionalização, o pequeno/grande passo da municipalização tem de ser bem consolidado em primeira instância, de modo a poder-se retirar o poder excessivo do Governo, arquitetando-se a  descentralização do estado, como expôs o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, atual Presidente da República e ex-líder do PSD, em declarações sobre os resultados do referendo de então.

Mais e maior proximidade, maior eficácia dos serviços públicos e aumento da participação das autarquias locais na receita pública, esta é, assumidamente a promessa do Governo. A questão que se coloca deverá ser, como pode a mesma ser cumprida se muitas vezes não é dado o devido apoio às pequenas autarquias que tentam fazer tanto com tão pouco. Como é que um pequeno município do interior se vê de repente obrigado a lidar com 3/4 áreas importantíssimas de estruturação da nossa sociedade, com fundos limitados, tentando agradar a uma população que, inúmeras vezes (de forma “leviana”, só porque sim, nas politiquices locais) manifesta discordância com qualquer tipo de decisão tomada, seja de acordo com os gostos dos mesmos ou contrário, depende das suas ações e ajuda para o dia a dia.

Observemos, a título de exemplo da Câmara Municipal do Seixal que, para cumprir com a transferência de competências e garantir o normal funcionamento dos estabelecimentos de ensino necessitaria de uma verba de 17 Milhões de euros/ano (segundo um estudo realizado) tendo em conta as necessidades reais dos estabelecimentos de ensino e que foi de forma clara transmitido ao Governo. Como, de forma transparente, expõe Paulo Silva, Presidente da Câmara do Seixal, “Os valores transferidos pelo Governo Central são claramente insuficientes. O Governo reforça o apoio com 148 000€, 1.857€/ano. No 1º semestre do ano o município do Seixal empregou mais 1 milhão de euros do que recebeu”.

Este município é apenas um, de um cem número de vários no país que, passam por estas dificuldades, e se observamos que o Seixal passa por isto o que será de Municípios como Carregal do Sal, Aguiar da Beira, Sernancelhe, perdidos no interior profundo de Portugal, nos erradamente e causticamente apelidados territórios de baixa densidade?

É, gritante e por demais evidente, a necessidade de apoio concreto (revendo por exemplo as diretrizes pré-históricas de distribuição do FEF) a estes municípios, de modo a poder dar de uma vez por todas o grande passo para a descentralização concreta e por sua vez ao patamar subsequente da Regionalização.

 

Bibliografia:

https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=2932&tabela=leis&ficha=1

https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto-lei/16-2023-207881789

https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/decreto-lei/21-2019-118748848?_ts=1700095100671

https://www.dn.pt/opiniao/transferencia-de-competencias-sim-transferencia-de-encargos-nao--17040895.html

https://eco.sapo.pt/2023/04/03/chegou-o-dia-d-na-descentralizacao-municipios-assumem-competencias-na-acao-social/

https://www.europarl.europa.eu/factsheets/pt/sheet/7/o-principio-da-subsidiariedade

https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=descentralizacao-um-caminho-que-chegou-a-bom-porto-e-pode-ir-mais-alem

https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/86619/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Duarte%20Ribeiro%20Matias.pdf

Alexandrino, José Melo (2016), “Os Processos de Reforma do Poder Local em Portugal: Desenvolvimentos Recentes”, in II Jornadas de Direito Municipal Comparado Lusófono, Lisboa/Praia, AAFDL – Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 49-63 [Alexandrino, J. M. (2016)];

Amaral, Diogo Freitas do (2014), Curso de Direito Administrativo, vol. I, 3.ª ed., Coimbra, Almedina [Amaral, D. F. (2014)]

 

Pedro Figueiredo

PB15, 68034

Sem comentários:

Enviar um comentário

Acontecimentos revolucionários no Direito Administrativo.

      Acontecimentos revolucionários no Direito administrativo:        Fazendo uma análise da evolução do direito Administrativo na sua vert...