Regionalização: uma visão perspética
Sabemos por princípio que a condição da
natureza humana é capaz de arranjar argumentário e estratégias suficientes para
causar entraves à prossecução de algo que com relativa facilidade somos capazes
de, sem grande relutância, acreditar poder constituir o melhor caminho. Facto
que, convenhamos, pode assumir um princípio evidente de contradição, isto é, ao
invés de facilitarmos colocar em prática algo em que acreditamos, criamos
barreiras e inventamos obstáculos.
Sabemos de igual forma que, em termos
genéricos somos avessos à mudança e, temos um receio incomensurável de abdicar
ou de partilhar a senda do poder.
O presente introito bem que é passível de
ser acoplado à questiúncula da problemática da discussão em torno da hipotética
e sistematicamente adiada implementação plena da regionalização no nosso
país.
Julgo, em primeira instância ser
primordial explicitar convenientemente, clarificando o conceito de
regionalização. A regionalização, constitui em primeira e última instância uma
modalidade de descentralização, implicando, por conseguinte, aquando da sua
hipotética implementação uma nova conceção do poder e do Estado, ou dito de uma
forma distinta, implicará uma nova visão/implementação política.
Como advoga o Professor Diogo Freitas do
Amaral “(…) regionalização é, portanto, a
decisão políticolegislativa que consiste em criar um certo número de regiões
administrativas (…) trata-se de dividir o território nacional (…) em, digamos,
5, 7, 9 ou mais regiões administrativas, situadas acima dos municípios – serão
autarquias supramunicipais – e abaixo do Governo e da respetiva administração
central [1]”.
Desde os primórdios em que se assumiu a
discussão em torno da regionalização, direi que invariavelmente foram
esgrimidas na praça pública, distintas opiniões, mais ou menos bem
fundamentadas, na sua maioria contraditórias, direi mesmo nos antípodas da anuência
ou da acérrima confrontação e não concordância.
Em termos práticos a criação/implementação
de órgãos em patamares intermédios entre os Municípios e o Governo,
genericamente para os defensores constituir-se-á como, muito provavelmente, a
melhor forma de ir ao encontro das legítimas aspirações das populações,
dirimindo as incontornáveis e evidentes assimetrias no território, em
particular entre a capital e o todo nacional, a que se juntam as incontornáveis
distinções gritantes, entre litoral e interior. Por seu turno, para os
detratores, tal processo constituirá uma forma de acrescer de forma substantiva
a máquina do Estado, sem que a tal acréscimo correspondam ganhos substanciais
de produtividade, proximidade e diluição das distinções, num País de, apesar de
tudo, dimensões contidas.
Admitindo de forma, tanto simplista como
otimista (deveria antes ter a ousadia ou “coragem” de escrever, de forma
realista) que “a razão fundamental para
regionalizar é promover o bem-estar das populações”[2],
tenho para meu entendimento que o passo a dar imediatamente a seguir, será o de
definir em termos concretos, os imperativos que justificam a regionalização[3], de acordo com
classificação terminológica de Alfredo Simões e Elizabeth Matos, são de três
ordens: o jurídico, o político e o de desenvolvimento.
Assim, do ponto de vista jurídico a
sustentação está enquadrada na Constituição da República Portuguesa, arts.
237.º e 238.º.
Do ponto de vista político, estamos na
presença do domínio do querer a par da força para levar por diante essa
vontade. Em concreto os designados, partidos do arco do poder, já tiveram
plasmados nos seus programas eleitorais, ainda que com terminologias distintas
e abrangências particulares, mais ou menos intrincadas e/ou conceptualmente
mais ou menos aprofundadas/desenvolvidas, laivos de pretender a sua
implementação. No entanto, a realidade coloca-nos perante sistemáticos avanços
e recuos, ao sabor das estratégias politicas e das prospetivas mais ou menos
valias da sua real implementação. A verdade, é que, se existisse a real vontade
da sua implementação, já se poderia ter arquitetado um pacto de regime com
vista à sua prossecução. O que, diga-se, a “atalho de foice”, ser de igual
forma verdade para outras realidades tão sistematicamente alterados ao saber
dos partidos, das políticas e dos governantes, como é o caso da justiça da
saúde e, o caso mais gritante, com impacto real na estrutura educacional de um
país e dos seus estudantes que, parecem ser vistos com cobaias do sistema,
sempre que se altera um Governo e o respetivo ministro com a tutela da
educação.
O imperativo adstrito à temática do
desenvolvimento é aquele que está umbilicalmente associado à génese da
implementação do ideal sonhado e de toda a implementação realista do seu
processo, uma vez que é evidente e indesmentível a permanência gritante das
assimetrias no nosso país.
Aqui chegados importa fazer duas ressalvas
enquadradoras. A regionalização, a acontecer e se acontecer será sempre um
processo moroso, gradativo e de inevitáveis, mesmo desejáveis reajustes e
rearranjos evolutivos na busca do tipo ideal, admitindo-se com grandes laivos
de otimismo que, o mesmo existe e é atingível.
É inquestionável que historicamente em
todo este processo de tentativa de operacionalização de uma visão regionalista
para o país, um passo com alguma substância já foi efetivamente dado em 2013,
com a Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, com a criação das entidades
intermunicipais e a sua dupla designação distintiva: Comunidades
Intermunicipais e Áreas Metropolitanas.
Porém, sugiram neste processo as
inevitáveis reticências, em gíria popular, os escolhos e areais na engrenagem.
A integração supostamente livre dos
municípios, não foi tanto assim, surgindo por conseguinte associações de
municípios obtusas, de muito difícil entendimento e explicação, com um alto
grau de probabilidade de não convergência territorial, geográfica e de
similitude de ideais.
Depois de constituídas, de uma forma mais
ou menos antinatural, nalguns casos, acresce-se a dificuldade na sua
operacionalização com base em distintas e por vezes anti conciliáveis visões
politicas, par das distintas capacidades de forma entre territórios concelhios
citadinos e /ou rurais, com realidades, problemas e visões diametralmente em
oposição.
Por último, a gerenciação/distribuição,
talvez mais mesmo redistribuição de verbas oriundas, naturalmente do poder
central, escassas e muito provavelmente geridas com base nas uniões politicas
ocasionais de bastidores, a que se acresce o maior ou menos poder negocial do
Presidente de Câmara, imagino que por vezes (para criar uma visão pouco
romantizada e, com o o seu quê de satírico) nos argumentos dirimidos
erroneamente com base nos decibéis.
Chegados a esta explanação, considero
importante dar um passo atrás, efetuando um retrocesso temporal, por forma a
que a partir deste se consigam perspetivar os passos futuros.
Decorria o ano de 1998 quando em Portugal
se decidir proceder a um referendo. No caso vertente o relativo à eventual
implementação da regionalização, tendo na altura sido apresentadas duas
propostas, a primeira questionava se se deveria implementar a regionalização em
Portugal; a segunda, questionava que caso fosse aprovada a regionalização, se
cada eleitor concordava com a região em que votava, ambas as propostas
mereceram um inequívoco chumbo por parte dos eleitores. A primeira questão (Concorda coma instituição
em concreto das regiões administrativas) obteve 60,87% de reprovação, enquanto
que a segunda questão (Concorda com a instituição em concreto da região
administrativa da sua área de recenseamento eleitoral?) mereceu a discordância
de 60,62€ dos eleitores. Na minha ótica estes resultados ocorreram por três
ordens de razão:
1 – As constantes redefinições, com
avanços e recuos da generalidade dos partidos, com uma divisão clara entre os
partidos que se convencionou apelidar de esquerda e de direita;
2 – A pouca clareza, para não lhe chamar
infeliz redação das questões colocadas em referendo;
3 – A inexistência da implementação de uma
cultura de referendo à população portuguesa, ao qual se junta, o alto grau de
inexistência de uma consciência cívico/democrática referendária.
A par das razões explanadas, importa de
igual modo ressalvar, evidenciando a impossibilidade prática de vinculação, uma
vez que a abstenção se cifrou em 51,71%, sabendo-se de antemão que a vinculação
da decisão só acontece perante a evidência de 50% dos eleitores se expressarem
num determinado sentido, como exposto no artigo 115º/11 da Constituição da República
Portuguesa.
Histórica e politicamente, foi-se mantendo
no limbo a vontade de levar por diante a regionalização, quase com o mesmo
fervor do seu contrário. Mais recentemente, continuaram-se a verificar estes
fenómenos. Bastará, a título exemplificativo, recordar o governo de Durão
Barroso, na coligação entre PSD/CDS, reafirmou-se e reformulou-se a remodelação
das regiões administrativas no país, com a criação de um mapa regional
constituído por unidades territoriais de três tipos: Grandes Áreas
Metropolitanas, Comunidades Urbanas e Comunidades Intermunicipais. Esta visão implementou
uma descentralização nível ministerial, com algumas Secretarias de Estado,
deslocalizadas para fora da capital. Porém em 2005 com a chegada de José Sócrates
ao poder, verificou-se mais um revés na estratégia, tendo-se voltado à “estaca
zero”.
Mais recentemente em 2021, António Costa
assumiu que o “(…) o percurso de
descentralização terá de ser avaliado nos próximos anos e «dar voz ao povo» em
2024”.[4] No entanto, um pouco mais
tarde dentro da mesma legislatura, a ministra Ana Abrunhosa, defendia que “Governo só decide em 2024 se avança para
referendo à regionalização, a ideia é fechar o processo de descentralização e
passagem de competências para as CCDR (…)”.[5]
A 3 de março de 2023 o Jornal Público
publicita mais um looping no
processo, ao afirmar Governo deixa cair referendo à regionalização por falta de
apoio do PSD.
Pelo exposto, com relativa facilidade se
pode aduzir que este processo tem tudo para poder ser considerado um “nado
morto” que muito dificilmente, poderá vir a ver a luz do dia.
À guisa de conclusão, direi que a vontade
que tenho (e que, julgo percetível antever ao longo do escrito) da
implementação do processo de regionalização no nosso país é, muito
provavelmente inversamente proporcional à possibilidade de a mesma poder a ser
uma realidade.
Oxalá possa estar redondamente enganado a bem de uma visão de desenvolvimento e, sobretudo numa desejável perspetiva de coesão nacional e do estreitamento e esbatimento das ainda demasiado evidentes e gritantes assimetrias no todo nacional.
Bibliografia:
OLIVEIRA,
Luís Valente. «Novas considerações sobre a Regionalização», Edições ASA. Porto
1997;
SIMÕES.
Alfredo e MATOS, Elizabeth. «Regionalizar – Enquadramento de Viseu num processo
de regionalização». AIRV. 1996
AMARAL,
Diogo Freitas e SILVA, Jorge Pereira. «ESTUDO APROFUNDADO SOBRE A PROBLEMÁTICA
DA REGIONALIZAÇÃO Volume I REGIÕES ADMINISTRATIVAS, DESCONCENTRAÇÃO E
DESLOCALIZAÇÃO - Volume I REGIÕES ADMINISTRATIVAS, DESCONCENTRAÇÃO E
DESLOCALIZAÇÃO Apresentado à «Comissão Independente para a Descentralização»,
2019
MIRANDA,
Jorge / MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, Coimbra
Editora, 2005
Gomes
Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa”, Anotada II
Volume 4ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2014
Pedro Figueiredo
PB15, 68034
[1] - AMARAL, Diogo
Freitas e SILVA, Jorge Pereira. «ESTUDO APROFUNDADO SOBRE A PROBLEMÁTICA DA
REGIONALIZAÇÃO Volume I REGIÕES ADMINISTRATIVAS, DESCONCENTRAÇÃO E
DESLOCALIZAÇÃO - Volume I REGIÕES ADMINISTRATIVAS, DESCONCENTRAÇÃO E DESLOCALIZAÇÃO
Apresentado à «Comissão Independente para a Descentralização», 2019 (pp 12).
[2] - OLIVEIRA, Luis Valente. «Novas considerações sobre a
Regionalização», Edições ASA. Porto 1997 (pp 17);
[3] - SIMÕES. Alfredo
e MATOS, Elizabeth. «Regionalizar – Enquadramento de Viseu num processo de
regionalização». AIRV. 1996 (43).
[4] - In Jornal Público, 11 de dezembro de 2021;
[5] - In Jornal de Negócios, 27 janeiro de 2023.
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